Contribuições para História de Moçambique
Por João Manuel Cabrita
Desde as últimas semanas que o nome de Joana Semião tem estado em foco na comunicação social, tanto em Moçambique como no estrangeiro. Para além dos epítetos que no passado recente lhe foram atribuídos, pouco se disse a respeito do pensamento político de Joana Semião, designadamente o projecto que defendia para o seu país.
Pouco antes de ter sido detida, em 1974, Joana havia optado por uma linha de orientação que os futuros dirigentes do Moçambique independente considerariam como constituindo crime de lesa Pátria: a de se resolver o problema colonial no âmbito da chamada política de “autonomia progressiva” enunciada por Marcelo Caetano. Se fosse vivo em 1975, Eduardo Mondlane poderia também sentar-se em Nachingwea ao lado de Joana Semião dado que uns anos antes havia participado na elaboração de uma proposta apresentada a Salazar e que recomendava, como saída para a disputa colonial, a integração de Moçambique numa “comunidade lusófona”; e nem se punha a questão de Portugal conceder a independência a Moçambique.
Joana Semião veria a sua imagem ser projectada politicamente à escala nacional na sequência do golpe de Estado de 25 de Abril desencadeado pelo Movimento das Forcas Armadas, que pôs termo ao regime de Marcelo Caetano. O golpe apanhou Semião no meio de um processo de evolução política, cujo início remonta aos finais da década de 50. Era ela, então, estudante liceal em Coimbra, Portugal.
A repressão policial contra o meio estudantil, na sequência dos acontecimentos de 1961 em Angola, levaram-na a pedir asilo político na embaixada venezuelana em Lisboa. Cerca de um ano mais tarde, atravessou a fronteira de Espanha, seguindo depois para a Argélia onde conheceu e veio a casar com Serge Tshilenge, um congolês da linha maoísta. Em Argel, juntou-se à Frente de Libertação de Moçambique. Posteriormente, na companhia do marido, mudou-se para Paris. As ligações à Frelimo viriam a interromper-se devido, segundo Joana Semião, a divisões internas.
Depois de nove anos de casada e com três filhos, Joana separou-se do marido. Filiou-se na «Jeune Femmes Africaines», uma organização de mulheres africanas. Como presidente desta organização, viaja pelo continente africano. Num périplo realizado em 1965, a expensas da «Propagatie Fidele», uma congregação evangelista sediada no Vaticano, leva Joana Semião a Lusaka onde trava conhecimento com o COREMO, de Adelino Gwambe. Torna-se membro deste movimento e do seu Comité Central, assumindo responsabilidades ao nível do departamento de informação e segurança. Uma acção desencadeada pelos guerrilheiros do Coremo em Tete, e que resultara no rapto e subsequente execução de cinco técnicos portugueses, viria a por termo às relações de Semião com aquele movimento de libertação. Chegou a pressionar os dirigentes do movimento para que os detidos fossem postos em liberdades, mas sem sucesso. Inclusivamente, escreveu ao Comité Internacional da Cruz Vermelha para que intercedesse junto do governo da Zâmbia para se conseguir a libertação dos cinco portugueses. Kenneth Kaunda lava as mãos do caso. Desiludida, e perante os apelos do pai para que regressasse a Moçambique, em 1971 pediu asilo político à embaixada portuguesa em Paris.
De regresso a Moçambique, onde passou a leccionar francês no Liceu António Enes (actual Escola Secundária Francisco Manyanga, em Maputo), Joana Semião optou por defender o diálogo como forma de se solucionar o problema colonial. Assume-se como pacifista, e aposta trabalhar no âmbito da política de “autonomia progressiva” traçada por Marcelo Caetano, para atingir um fim há muito almejado: o da independência de Moçambique. Em conferência de imprensa realizada em Lisboa a 19 de Janeiro de 1974, declarou o seguinte:
“Defendi num passado recente o uso da violência como o único meio para resolver os conflitos com vista à obtenção dos mais elementares direitos humanos dentro do Estado de Moçambique. Atitude que se coadunou com as condições sócio-políticas da época”.
“Sem renunciar num ápice às opções políticas pelas quais não pactuo nem pactuarei com os violadores sistemáticos da Lei Fundamental do País - a Constituição Portuguesa - e cuja violação facilitou a eclosão da violência no citado território, quero afirmar ao mundo que reformulei com absoluta independência e com profundo sentido de responsabilidade, os termos dessas mesmas exigências.”
Joana Semião salienta na sua declaração que essa “reformulação não traduz uma traição dos meus ideais de juventude, mas encontra plena satisfação numa análise fria da geopolítica moçambicana e numa interpretação realista de certas medidas decididas e tomadas pelo governo do Professor Marcelo Caetano relativamente a Moçambique.”
Para a antiga militante da Frelimo e do Coremo, essa “reformulação responde - também - ao desejo e à vontade de responder com um presente a minha quota de responsabilidade para com a juventude do Estado de Moçambique.” Uma juventude que, na opinião de Joana Semião, “tem o direito de receber de nós uma herança íntegra.”
Voltando a referir-se aquilo que havia ditado a “reformulação” do seu pensamento político relativamente ao problema moçambicano, Joana Semião fala da “experiência vivida em terras estrangeiras, da observação in loco de exageros praticados em outros países, e da evolução da política internacional”, para depois concluir que “as super-potências (China, Estados Unidos, União das Repúblicas Socialistas Soviéticas) estão mais interessadas no controlo de espaço geográfico potencialmente importante no campo económico e estratégico do que na evolução real do povo moçambicano.”
Para pôr em pratica o plano que idealiza, Joana Semião apela para a “constituição de uma frente interna formada por elementos lúcidos calmos e frios das comunidades étnicas presentes em Moçambique (negra, mestiça, branca e asiática).”
Em colaboração com o Governo de Marcelo Caetano, acrescenta Semião, “essa frente dinamizará a participação de elementos mais representativos dos citados grupos étnicos na gestão dos assuntos públicos”. Numa clara referência à Frelimo e ao Coremo, assim como a outras forças “externas”, Joana salienta que essa frente “será a voz autêntica vinda do interior de Moçambique e que imporá ao exterior a solução nossa a problemas nossos.”
Este é um processo que Joana designa de “moçambicanização”, o qual não se deverá desenrolar de “uma maneira catastrófica”. Semião pretende uma “reestruturação político-administrativa” para Moçambique, e que a mesma “se processe de uma forma contínua, sem pânicos nem traumatismos”, em que “os anseios profundos da população moçambicana sejam satisfeitos.” Joana Semião remata a sua declaração à imprensa, afirmando que “moçambicanizar Moçambique, viver a multiracialidade no dia a dia, participar na gestão económica do Estado constituem as linhas de força do meu pensamento político e traduz a minha firme decisão de dar um apoio franco e aberto aos elementos mais lúcidos e dinâmicos da equipa governamental dirigida pelo Professor Marcelo Caetano.”
Não obstante a colagem óbvia ao regime de Marcelo Caetano, a declaração de Joana Semião constitui algo sem precedentes na política colonial até então definida por Lisboa. É uma declaração que choca com as mentes tidas como progressistas do regime, mormente Baltazar Rebelo de Sousa, então ministro do «Ultramar», mas que na prática pôs em andamento um processo irreversível e que inevitavelmente conduziria à independência de Moçambique.
Os “elementos lúcidos calmos e frios” a que Joana Semião se referiu como constituindo a frente interna são vários e, de acordo com Máximo Dias, com quem Joana Semião vem a formar posteriormente o Grupo Unido de Moçambique («Gumo»), incluía figuras como Domingos Arouca, João Reis, Mário da Graça Machungo, Salomão Munguambe, Luís Bernardo Honwana, entre outros.
Na sequência do golpe de Estado de 25 de Abril, Joana Semião empenhou-se em dar forma ao plano anteriormente delineado. Mas as regras do jogo mudaram, o que permitiu a definição clara de posições por parte dos “elementos lúcidos calmos e frios”. Menos de três meses após o golpe, Máximo Dias anuncia o fim das actividades do «Gumo» e a destituição de Joana Semião do cargo que ocupa. Dias optou por actuar conjuntamente com a Frelimo de modo a se acelerar o fim do colonialismo em Moçambique. Numa inversão de posições, Máximo Dias afirmaria que a ideia do «Gumo» foi sempre a de ser uma força interna complementar da Frelimo, se bem que ao solicitar a Marcelo Caetano a legalização do «Gumo» (num encontro organizado pelo então director do Expresso, Pinto Balsemão, em Lisboa no mês de Setembro de 1973) ele defendera a ideia de se estabelecer uma força interna que fizesse frente à Frelimo.
Joana Semião preferiu manter-se firme na posição há muito defendida. Estabeleceu assim a Frente Comum de Moçambique, «Frecomo», com o objectivo de unificar todas as forças políticas não conotadas com a Frelimo, nomeadamente o Congresso Nacional Africano de Moçambique, o Coremo e diversos outros grupos estabelecidos no interior de Moçambique após o 25 de Abril. A tão almejada unificação ocorreria na Beira a 23 de Agosto de 1974 sob a designação de Partido de Coligação Nacional (PCN). O novo partido definia como princípios basilares “a garantia da independência nacional através de um processo democrático em que as populações se pronunciem livremente num clima de paz e sem intimidação”, e que não fosse “comprometido o futuro de Moçambique em acordo negociado e firmado entre o governo de Lisboa e qualquer organização ou grupo político com a exclusão de outros porque a nenhuma organização se pode atribuir a legitimidade da representação exclusiva do povo moçambicano sem passar a prova do processo democrático.”
O projecto PCN morreu quase que à nascença. Se bem que o objectivo do MFA (Movimento das Forças Armadas) fosse a restauração da democracia em Portugal, relativamente às colónias o programa dos golpistas traduz-se na manutenção do status quo político, dando cobertura à onda de repressão que poucos meses depois de Abril foi desencadeada em Moçambique.
Dos relatos de Nachingwea tiveram os moçambicanos conhecimento que sobre Joana Semião pesava a grave acusação de traição, precisamente por ter pretendido negociar o futuro de Moçambique no âmbito da política traçada por Marcelo Caetano, e de integrar o país numa comunidade lusófona.
Quando comparada com a posição anteriormente defendida por Eduardo Mondlane, é de concluir que a de Joana Semião não divergia muito da do primeiro presidente da Frelimo.
Em Julho de 1965, Mondlane havia-se reunido na Embaixada dos Estados Unidos em Dar es Salaam com Robert Kennedy e funcionários de alta-patente do Departamento de Estado, mormente Wayne Fredericks, sub-secretário de Estado para os assuntos africanos. O presidente da Frelimo confidenciou a Fredericks que “caso Portugal concordasse com um plebiscito sobre o futuro das colónias, os termos desse plebiscito seriam menos importantes do que o processo político que ele iria despoletar.” Efectivamente, Mondlane admitia que “uma eventual independência de Moçambique não necessitaria de fazer parte do plebiscito.” Para o presidente da Frelimo, “uma escolha simples entre Moçambique permanecer como província ultramarina portuguesa ou como membro duma comunidade lusófona era por si só um significativo passo em frente.”
Na sequência das conversações secretas realizadas em Dar es Salaam entre Mondlane e os representantes do governo norte-americano, os Estados Unidos apresentaram a Salazar uma poposta com base na tese defendida pelo primeiro presidente da Frelimo. O decrépito ditador rejeitou a ideia. Nove anos mais tarde, Caetano, um pouco menos tímido do que Salazar, aceitou que Joana Semião viesse a público despoletar o processo político que antes Mondlane pretendera por em marcha.
Em 1975, se ainda fosse vivo, Mondlane provavelmente seria “julgado”, tal como Joana Semião, por “alta traição”. E quem sabe se hoje, sob o serôdio olhar da PGR, não teríamos um magistrado judicial a subverter a lei, tentando dar Eduardo Mondlane como “residindo em parte incerta”.
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