A história que parece retirada dos cenários de Hollywood retrata o drama de alguns jovens recrutados na cidade da Beira e que viveram um inferno nas matas de Gorongosa. @Verdade conversou com um jovem que decidiu contar a sua história, mas recusou mostrar o rosto. As feridas de um acto inquinado de ilegalidade vão levar tempo a cicatrizar. Ainda assim, a vida de Joaquim* jamais será a mesma... Não foi fácil arrancar palavras de um jovem que sobreviveu ao recrutamento militar compulsivo e à densa mata da província de Sofala.
“Não quero voltar para onde eu estava nem falar sobre o que passei. Já não confio em ninguém e se eu falar convosco eles hão-de vir-me buscar. E eu não quero voltar para aquele inferno”, disse convicto ao nosso repórter um jovem que vamos tratar por Joaquim para esconder a sua real identidade e proteger a sua integridade física. Volvida meia hora de insistência, Joaquim aceitou desfiar o seu rosário. O pesadelo, conta, teve lugar no dia 26 de Novembro do ano corrente.
A voz sai trêmula e mesmo num local aparentemente seguro sente-se pouco cómodo. Os dias, passados nas profundezas do mato de Sofala, ainda não lhe saem da mente. A entrevista decorre, por exigência expressa, apenas com um bloco de notas. “Gravador? Nem pensar”, refere.
“Eu saí da empresa onde trabalhava para comprar refrigerantes. Eram 12 horas e estávamos para almoçar”, conta. O local de trabalho fica ao lado de um mercado informal. No regresso, explica, foi interpelado por três jovens que lhe exigiram o Bilhete de Identidade. Aquilo que parecia, no princípio, um acto rotineiro deu lugar à agressão física quando Joaquim disse que residia no rebelde bairro da Munhava. Em pouco tempo já estava algemado e dentro de uma viatura que saiu disparada. “Nem conseguia levantar a cabeça”.
O pesadelo
Joaquim só sabe dizer que passou o dia fechado num compartimento escuro com outros 29 jovens. É-lhe difícil precisar o local, mas garante que não estava fora da cidade da Beira. Mal escureceu saiu com os restantes jovens para apanhar um helicóptero na base aérea, com o qual foram levados para um lugar que identifica como “matas da Gorongosa”. Nove elementos com fardamento das FADM controlavam “os nossos movimentos”.
Quando Joaquim e outros jovens recrutados chegaram às matas de Gorongosa foram instalados em cavernas, onde não tinham a possibilidade de ver o sol e muito menos manter contacto com os demais. Havia apenas uma lâmpada instalada no local e a primeira coisa que foi feita quando os mesmos jovens chegaram às referidas cavernas foi despirem- se para fazer exames e a respectiva inspecção militar, e cortar o cabelo. Os indivíduos aptos foram incorporados num grupo de militares no dia seguinte.
“Não houve tempo para descanso”, diz com o olhar perdido num ponto longínquo. “No mesmo dia fizemos testes de resistência física”, acrescenta. O primeiro trabalho consistiu no carregamento de pedregulhos para a construção de casotas onde deviam, assegura, passar a viver.
Fuga em três actos
Quando o sol se pôs, no dia 28 de Novembro, Joaquim fez parte de um grupo de jovens que tentou fugir do acampamento. A fuga, que devia tomar o caminho das montanhas, foi prontamente interrompida pela morte. Ou seja, o jovem que liderava o grupo e que dominava os cantos do acampamento morreu quando uma pedra caiu sobre o seu peito. E como um mal nunca vem só, a tentativa de fuga foi descoberta mal regressaram à caverna onde pernoitavam. O castigo por tal acto foi exemplar. “As palmas das minhas mãos ainda doem só de imaginar o que tive de aguentar”, conta.
Como o desejo da liberdade é maior do que a força do medo, no dia seguinte, o mesmo grupo de jovens voltou a tentar fugir do local. O azar mais uma vez voltou a bater à porta. O jovem que devia liderar o grupo tentou comunicar com os seus familiares através de um telefone que não se sabe como conseguiu esconder dos militares. Foi abatido no mesmo momento em que tentava comunicar-se com alguém de fora. A terceira foi de vez. Porém, um jovem ficou ferido quando a corda rompeu para tristeza do grupo. “Fizemos uma corda com fiapos de um tronco e pedaços do fardamento que nos deram”, conta Joaquim.
Quatro dias no mato
Não foi fácil chegar à cidade da Beira. A viagem durou quatro dias. “Alimentávamo- -nos de mangas e de água suja que encontrávamos em pequenas poças ou nos charcos”. Joaquim conta que durante o percurso, do cativeiro para a Beira, o grupo cruzou-se com pessoas de baixo porte que não falavam português. Chegar até a vila de Nhamatanda só foi possível graças ao apoio dos camponeses com os quais depararam na longa da desesperante fuga. “Eles é que nos indicavam o percurso”.
O grupo narra ainda que dormiu numa igreja abandonada e que teve uma refeição condigna em casa de um régulo. “Jantámos e tomámos o pequeno-almoço”. No dia 7 de Dezembro conseguiram chegar ao distrito de Nhamatanda, concretamente na zona do monte Xiluvo, onde os nativos extraem pedras. No local encontraram um camionista que lhes transportou até ao bairro da Manga. Contudo, a boleia não aconteceu sem resistência da parte do camionista que temia represálias. Na Manga, os jovens conseguiram um telefone celular emprestado do qual ligaram para os seus familiares.
Estrangeiros lideram os treinos
A nossa fonte contou que nas matas de Gorongosa, para além das Forças de Defesa e Segurança também há instrutores militares estrangeiros que dirigem dois grupos de treinos dos novos recrutas, com os quais era difícil comunicar porque se expressavam somente na língua inglesa. O jovem que vive com medo de voltar para o acampamento garantiu que no local há vários helicópteros que têm sido usados para o transporte de jovens. Os mesmos meios aéreos, explica, foram usados para perseguir o grupo de desertores. Refira-se que foram nove jovens que fugiram do acampamento militar nas matas de Gorongosa. Três da Beira, cinco de Gorongosa e um de Nhamatanda. A família do jovem com o qual @Verdade conversou deslocou-se várias vezes ao Hospital Central da Beira, uma vez que suspeitava de que Joaquim poderia ter sido assassinado, sobretudo porque a empresa onde trabalhava não sabia nada sobre o seu paradeiro.
Centro de Recrutamento “preocupado”
O delegado regional do Centro de Recrutamento, Michon Carlos, fez saber, numa conferência de imprensa, que o Ministério da Defesa Nacional está preocupado com os recrutamentos compulsivos que tiveram lugar na província de Sofala.
Efectivamente, Michon afirma que há jovens que foram recrutados compulsivamente para as matas. Porém, não responsabiliza as Forças Armadas de Defesa de Moçambique ou a Polícia da República de Moçambique. Aliás, no seu entender “o recrutamento é feito por pessoas desconhecidas”. Na ocasião informou que, desde o final do mês passado (Novembro) tem recebido várias chamadas de dirigentes de “alto nível” a procurar saber da situação.
Em mãos o Centro de Recrutamento tem uma denúncia de um jovem residente na cidade da Beira que conseguiu escapulir-se das matas de Gorongosa com outros nove indivíduos, o qual afirma ter sido recrutado compulsivamente na segunda maior cidade do país. Michon Carlos acrescentou que através do jovem em questão ficaram a saber que nas manhãs os recrutados eram obrigados a tomar um chá feito com base em folhas de cannabis sativa.
O responsável pela zona norte no que ao recrutamento diz respeito prometeu apresentar o jovem publicamente nos próximos dias. A aparição pública só não aconteceu porque, diz, o jovem está traumatizado e teme represálias. Quanto aos autores do recrutamento, Michon referiu que cabe aos Ministério da Justiça e da Defesa investigar e esclarecer os moçambicanos.
Entretanto, dados em nosso poder indicam que no distrito de Chemba, em Sofala, no dia 6 de Dezembro, foram vistos camiões das FADM a recrutarem jovens nas localidades daquela circunscrição geográfica. Essa informação foi prontamente desmentida por Michon Carlos que afiançou que a única instituição vocacionada para o efeito é o Centro de Recrutamento.
* Nome fictício
Fonte: @Verdade - 13.12.2013
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