Por Elísio Macamo
Na semana passada
fui a Maputo participar num seminário que reuniu alguns académicos preocupados
com a situação política que se vive no País. Foi um excelente encontro que me
mostrou uma coisa muito importante: é possível discutir o País a partir de
sensibilidades políticas e ideológicas diferentes e, mesmo assim, identificar
plataformas a partir das quais sejam possíveis alguns consensos. Houve,
basicamente, duas linhas de pensamento. Uma relegou o problema político geral à
hostilidade da nossa cultura política às liberdades do cidadão, enquanto que a
outra linha responsabilizou uma cultura de Estado pouco comprometida com o bem
comum. Apesar destas posições divergentes os participantes chegaram à conclusão
de que os problemas são bem maiores do que os dois interlocutores, nomeadamente
o Governo e a Renamo. Seria do interesse desses actores que o diálogo fosse
mais includente uma vez que ele está a tratar dum problema nacional, não dum
problema entre dois partidos políticos. O Governo tem toda a legitimidade de se
mostrar céptico em relação a uma conferência nacional uma vez que ele é
legítimo e tem de defender, acima de tudo, a constituição. Ninguém pode pôr em
causa um argumento de tanto peso quanto esse, ainda por cima quando se está a
lidar com uma situação em que um partido político desafia o Estado de forma
violenta. Não obstante, as mesmas razões de Estado que exigem a defesa da
constituição tornam politicamente prudente uma outra postura. Há, no seio do
governo, muita gente de bom senso que não vai ficar indiferente à necessidade
de abertura do diálogo político.
Ontem houve uma
conferência de imprensa em Maputo durante a qual os resultados desse encontro
foram apresentados. No que se segue reproduzo excertos de algumas passagens
importantes do texto que o encontro produziu.
“Volvidos 12 anos
desde a apresentação pública da Agenda 2025, um grupo de académicos e
intelectuais, propôs-se iniciar uma reflexão sobre Moçambique, analisar a
actual situação do País e aventar caminhos para a construção e consolidação da
democracia no país.
O encontro de
reflexão assumiu um carácter tão mais pertinente, porquanto se assiste
actualmente a um clima de crescente instabilidade no País, que o coloca entre
os dois dos piores cenários perspectivados pela Agenda 2025 – o Cabrito e o
Caranguejo. O cenário do Cabrito previa uma situação de instabilidade, de
confrontação e de retorno à guerra, associados à práticas de corrupção e à
prevalência de desigualdades e exclusão social. O cenário do Caranguejo
referia-se à estagnação democrática, causada por atitudes de arrogância, de
falta de diálogo, de falta de negociação e de desconfiança. Ademais, assiste-
se a um impasse no “diálogo político” entre o Governo e Renamo que se tem
revelado pouco produtivo.
Este é o contexto
no qual seis organizações (FUNDE, IESE, CEDE, EISA, OMR e Gapi-SI), juntaram-se
e promoveram um debate entre académicos e intelectuais moçambicanos para
reflectirem sobre as razões e os factores desta conflitualidade (...)
Assim, num
ambiente de debate franco e aberto, os participantes, reflectindo diferentes
pontos de vista, escolas de pensamento, matizes políticas e ideológicas,
identificaram virtudes e imperfeições no processo democrático em Moçambique que
interpelam a nossa consciência cidadã e nos impelem a contribuir na busca de
caminhos para a consolidação da democracia. A riqueza do debate que este
encontro produziu, e cujas ideias principais se enumeram abaixo, deveu-se à
convivência de diferenças de ideias e opiniões, sobre questões centrais como,
por exemplo, o papel do Estado, com uns mais favoráveis a um papel
intervencionista do Estado e outros a uma maior limitação dos poderes do Estado
na esfera privada do cidadão, que reflecte diferentes opiniões na sociedade.
(...)
... [O] processo
de construção de uma sociedade democrática em Moçambique e suas respectivas
instituições ao longo destas duas décadas tem enfrentado dificuldades, e
sobretudo, tem gerado práticas que limitam o seu próprio fortalecimento. Neste
quadro, destacam-se os seguintes aspectos:
1. Uma cultura
política patrimonialista gera autoritarismo e paternalismo e limita as
possibilidades da cidadania, constrangendo a liberdade dos indivíduos. Quais
são os limites do poder legítimo do Estado sobre os seus cidadãos? Ou, dito de
outro modo, quais são os limites da liberdade e dos direitos dos cidadãos
dentro do Estado? Embora existam pontos de vista diferentes sobre como melhor
responder a estas perguntas pode-se sugerir que a cidadania em Moçambique
carece de ser melhor articulada com a questão da liberdade. Pode-se afirmar que
o principal valor inspirador da nossa História foi a liberdade, que se
consubstancia na procura individual e colectiva de emancipação e dignidade
humana. Contudo, o patrimonialismo, o autoritarismo e o paternalismo, que
permeiam a cultura política no nosso país, constituem um edifício hostil à
cidadania, ao cristalizar, por exemplo, a ideia de que o protagonismo histórico
de alguns conferiria qualidades especiais e uma aptidão única para interpretar
a ‘vontade do povo’. Entende-se que a emancipacão do cidadão passa por uma
ruptura inequívoca com tal cultura. Isso impõe uma contínua reflexão sobre as
condições de possibilidade da garantia de dignidade humana no contexto duma
sociedade que se constitui historicamente como a nossa sociedade o fez.
2. O princípio de
gradualismo, no qual a descentralização se baseia, gera direitos diferenciados
de participação. Por um lado, o quadro legal exclui uma grande parte dos
moçambicanos da participação democrática concebida pela criação das autarquias
locais. Por outro, olhando para os espaços de participação local criados a
nível dos distritos, constata-se que a sua dinâmica de funcionamento é
estruturada de um modo que não reflecte a diversidade politica do país.
3. A debilidade
do vínculo institucional entre o Estado e o cidadão, produzido seja pelas
práticas centralizadoras do Estado ou pelo padrão de acumulação extrativo
centrado no exterior. A realização do desígnio democrático de que “a soberania
reside no povo” requer ou supõe a existência de vínculos institucionais entre o
Estado e o cidadão muito robustos, que está ainda muito longe de ser o caso em
Moçambique. Ao histórico Estado centralizador, hoje junta-se, na economia
nacional, um padrão de acumulação extrativo centrado no exterior, tendendo,
ambos, a excluir o cidadão no modo como o Estado concebe e implementa políticas
públicas.
4. A distância
institucional entre o Estado e o cidadão, que é um legado histórico das
condições da construção do Estado moderno em Mocambique e legado de uma cultura
política menos libertária do que se tem proposto. O conceito de distância
institucional usa-se aqui tanto para denotar a distância física entre os
cidadãos e pontos de tomada de decisão (por exemplo, o acesso físico aos órgãos
do Estado é diferenciado entre quem vive nas cidades de Maputo ou Matola e quem
vive em Malema ou Pebane) como também a falta de harmonia nos procedimentos
institucionais. A distância física provoca grandes problemas de acesso a
recursos e diferenças cada vez maiores de oportunidades entre cidadãos que
vivem mais próximos e aqueles que vivem mais longe dos órgãos centrais do
Estado. O conceito também aborda questões de coordenação inter-institucional,
ao problematizar a falta da universalidade de procedimentos de identificação e
certificação de pessoas e bens no acesso a bens públicos ou quase-públicos
(tramitação e validação de documentos entre banca, empresas públicas, e
repartições do Estado).
5. O carácter
limitado do debate público sobre as regras do jogo político, que é muitas vezes
restrito aos dois maiores partidos políticos. A questão da paridade nos órgãos
eleitorais, ou pelo menos o modo como foi colocada na fase inicial do “Diálogo
Político” entre o Governo e a Renamo ilustra de modo muito claro uma insistente
tendência da política nos últimos 20 anos, de limitar o processo decisório à
Frelimo e à Renamo. Acontece porém que a gestão transparente do processo
eleitoral, entre outras grandes questões da actualidade, dizem respeito não
apenas aos principais protagonistas do Acordo Geral de Paz, mas a todos os
partidos e à sociedade civil em geral.
6. O sistema
eleitoral em vigor privilegia o vínculo entre partido e deputados eleitos em
detrimento do vínculo entre deputados eleitos e seus eleitores. O crescimento
significativo da abstenção eleitoral pode ser revelador de um processo de
desengajamento dos cidadãos em relação ao sistema político, muito provavelmente
devido ao fraco vínculo entre deputados eleitos e seus eleitores, sendo,
portanto, um sintoma de crise do processo democrático. Isto é agravado pelo
facto de, dado o sistema eleitoral em vigor, não existir nenhuma vinculação
forte entre os deputados eleitos e os eleitores, o que impede estes últimos de
se aperceberem do efeito do seu voto. Uma tal situação cria um problema na
forma como a representação política é percebida e é vivida.
7. Uma discussão
ainda muito circunscrita sobre como o País pode melhor lidar com o dilema da
eficiência e da equidade na produção e distribuição de riqueza. O conflito
entre diferentes grupos, interesses e perspectivas socias de desenvolvimento na
luta pela apropriação ou influência sobre as decisões de política pública e sua
implementação não tem sido publicamente debatido e não tem sido considerado.
8. Um padrão de
crescimento excludente da maioria dos agentes económicos (pequenos produtores
agrários, sector informal, PME’s de capital nacional) gera inequidades sociais.
A economia nacional, medida pelo tamanho do PIB, tem crescido rapidamente ao
longo das últimas duas décadas, mas este crescimento pouco contribui para
promover e organizar, por exemplo, a produção alimentar para o Mercado interno
em grande escala e a baixo preço, nem tem resultado na articulação doméstica
das actividades produtivas.
(...)
As discussões do
seminário revelaram diferentes perspectivas sobre o processo político no País
tendo, contudo, convergido na ideia de que a actual instabilidade político-
militar tem as suas causas prováveis na cultura política dominante baseada na
limitação da cidadania e no modelo económico extractivo que enfraquece o
vínculo entre o Estado e o cidadão. Nesta ordem de ideias a actual situação
exige uma reflexão mais abrangente, includente e virada para a identificação de
elementos que possam assegurar um processo político mais estável. A limitação
deste processo a apenas dois partidos políticos pode se revelar problemática para
uma solução sustentável da instabilidade.
Neste contexto,
sugere-se uma reflexão sobre outros caminhos, dos quais destaca-se o seguinte:
1. Alargar o
debate a outros sectores, partidos políticos, os diferentes grupos sociais,
religiosos e profissionais, para reforçar a cidadania e consolidar a
democracia, tornando-o mais inclusivo. Uma possibilidade seria a realização
duma Convenção Nacional, um mecanismo que tem alguma experiência de sucesso em
contextos de crise em outros quadrantes, mesmo no continente africano. Um tal
debate poderia valer-se de dois instrumentos-chave como a Agenda 2025 e o MARP
que oferecem quadros de participação abrangentes e não limitados a um domínio
político- partidário e poderia ter como alvo a construção de um Pacto Nacional
da Paz e Roteiro de Reconciliação Sólida.
2. Debater sobre
o sistema de representação, reflectindo sobre as possibilidades de adopção de
um sistema eleitoral misto, com a introdução de listas uninominais com o
objectivo de alargar a base de participação e também a promoção da cidadania. A
crescente e muito elevada abstenção nas eleições presidenciais e legislativas é
particularmente preocupante e contrasta com a tendência inversa observada em
muitos municípios. A experiência mostra, pois, que a proximidade dos candidatos
em relação aos eleitores é um factor de mobilização e um caminho para a
melhoria da qualidade de representação. Assim, uma via identificada para
facilitar uma maior participação cidadã e ao mesmo tempo uma maior
responsabilidade dos eleitos perante os cidadãos eleitores seria o
aprimoramento do sistema de representação política introduzindo uma forma de
representação local e personalizada ao actual sistema de eleição dos deputados
da Assembleia da República, ou seja o estabelecimento de um sistema eleitoral
misto proporcional em que uma parte dos deputados continuaria a ser eleita nos
moldes actuais e os restantes seriam eleitos em círculos eleitorais
uninominais.
3. Ampliar o
espaço de exercício da cidadania, agindo sobre os factores que a constrangem,
por exemplo, eliminando o gradualismo no processo de municipalização e
devolvendo mais poderes do Estado para os níveis locais.
Os participantes
no encontro de 10 a 11 de Dezembro, em Maputo, académicos e intelectuais e as
organizações que promoveram o referido encontro, comprometem- se a continuar,
individual e/ou colectivamente a contribuir para esta reflexão sobre os
caminhos para a consolidação do processo democrático no nosso País bem como a
participar e estimular a participação em outras iniciativas em prol da Paz, da
Cidadania, da Democracia e do Desenvolvimento.
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