Por Mia Couto
Na véspera das eleições para três municípios em Moçambique, uma troca de correspondência tornou-se pública entre um conhecido jornalista e um jurista que já ocupou lugar de topo na hierarquia do governo da Frelimo. O jornalista defende que se deve continuar a votar na Frelimo porque ela é uma organização que representa a «esquerda» enquanto a oposição (no caso o MDM) representa uma força de «direita». Para o jurista essa tipologia não tem, no caso de Moçambique, nenhum sentido. Ele declara que lhe apetece votar na oposição.
O jurista argumenta haver uma diferença sensível entre eleições para os municípios ou eleições a nível nacional. Mais do que discursos políticos, uma cidade necessita de bons gestores. E será que um país não precisa do mesmo? O jornalista argumenta que não se pode mudar de camisa no meio da corrida, há que salvar a coerência das antigas opções.
Ambos concordam, contudo, que o discurso inovador e revolucionário que a Frelirno já teve no passado se esgotou e que agora os seus militantes vivem de uma vida e uma prática que nada tem a ver com o socialismo de que inicialmente se proclamavam. Tornaram-se todos parecidos: para além das vestes festivas que parecem diversas, mora a mesma ganância, o mesmo interesse de ganhar à custa de quem se deveria servir. Ou pode ser que não, pode ser - argumenta o jurista - que um jovem de um partido novo queira mostrar que a diferença é possível.
Experimentemos novas propostas, encoraja ele. O debate suscitou em mim tema para esta crónica. Na realidade, esbateu-se em Moçambique (como no resto do mundo) a linha divisória entre «esquerda» e «direita». Elas são hoje as duas metades de uma mesma porta. Nenhuma delas abre para um caminho novo. A casa é a mesma, mudam os tapetes e os cortinados. A casa já não é um abrigo: é um refúgio. Lá fora, prevalece um ambiente dominado por monstros e ameaças. Não há voto, não há eleição que altere este clima. O cerco é total e os muros que foram erguidos roubam-nos a visão de qualquer alternativa.
Não vivemos apenas num mundo com mais velhos. O nosso mundo envelheceu, tem vergonha e medo de mostrar a sua idade. O que faz a idade não é o tempo mas a vontade de mudar o tempo. Resta-nos ensinarmos os meninos a serem pequenos velhos. E a serem felizes não por gerarem mas por gerirem.
Na realidade, a falta de opções é alimentada por um clima de medo que foi sendo globalmente criado: o nosso mundo já não tem que mudar. Tem apenas que sobreviver. É isso que nos dizem. Podemos melhorar um bocadinho a miséria. Mas pouco mais podemos. É a isso que foram reduzidas as nossas esperanças. À força de tanto não podermos deixamos mesmo de querer.
Os que ainda são assaltados por esse querer são os que sobram dessa grande massa que dá pelo nome de «opinião pública» e que cada vez é menos pública e há muito que apenas tem a opinião dos outros. Há que ter cautela com esses irrealistas que insistem que há qualquer coisa para além do muro. E porque há perigosos jogos de sedução entre a palavra e o sonho, o próprio vocabulário se tornou pobre e sombrio: a crise, o défice, as ameaças, os desequilíbrios - eis o que domina o nosso léxico. O planeta vive um momento tão melindroso que há que entregar os nossos destinos (ou o que deles ainda resta) na mão de especialistas: os economistas, os financeiros, os políticos (que perdem terreno nesta tríade de feiticeiros).
Quem manda, afinal, são sempre outros. Esses outros assinam com o nome genérico de «o mercado». Nunca as televisões deram tanto espaço ao que dizem os donos dos bancos. A fronteira entre o caráter nacional ou internacional destas instituições bancárias esbateu-se mais do que as categorias de «esquerda» e «direita». E vamos percebendo que algo de divindade devem ter esses grandes banqueiros porque estão acima das crises e porque debatem algo que se afastou do domínio dos comuns mortais: o futuro. Já que mandam mais do que os governos, devia haver eleições para os donos dos bancos.
Haja democracia!
Fonte: Raiz Africana - 08.01.2012
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