sábado, março 14, 2015

ORIGEM DA DIVERGÊNCIA PRESIDENTE NYUSI - COMISSÃO POLÍTICA DO PARTIDO

Por Alfredo Manhiç
A explicita divergência entre a manobra do Presidente da República, Filipe Nyusi, que, para resolver a crise política pós-eleitoral, alcançou um entendimento com Afonso Dhlakama, vinculando a Renamo a submeter à Assembleia da República (AR) uma proposta de legislação tendo em vista dotar as Regiões (ou Províncias) de autonomia, e o desdobramento dos principais membros da Comissão Política (CP) da Frelimo por algumas províncias, anunciando que a Frelimo não aprovará a proposta a ser apresentada pelo partido de Afonso Dhlakama, estimulou alguns circuitos políticos e intelectuais do País a revisitar a práxis histórica do partido no poder, para fundamentar a tese segundo a qual Armando Guebuza deveria ceder a presidência do partido ao recém proclamado Presidente da República, para evitar a situação da existência de dois polos de poder.
Contrapostos (embora timidamente) aos defensores da tese de união das funções da presidência da República e da presidência do partido, são aqueles que - como o semanário Savana, no seu editorial da ed. n. 1103, de 27 de Fevereiro de 2015 - mostram-se favoráveis à ideia de separação entre as funções de líder do partido no poder e as  do Chefe de Estado.
   
Na minha modesta opinião, a reflexão não deve limitar-se exclusivamente às duas alternativas: ou união dos cargos de presidência da República e presidência do partido no governo, ou separação destes dois cargos. É sobretudo importante insistir na diferenciação entre o partido no governo e o Estado, não necessariamente obtenível pela atribuição do cargo de presidente do partido a uma pessoa física diferente daquela que exerce o cargo de Presidente da República. A responsabilidade que pesa sobre todos e cada um dos cidadãos, independentemente da sua cor partidária ou condição social (pela qual a história e as futuras gerações julgarão o presente) é aquela de estabelecer alicerces seguras de um Estado de Direito, capaz de garantir – como dizia Karl Popper - a rotação (substituição) das classes dirigentes sem o derramamento de sangue.
Infelizmente, para os que terão a sorte de viver por longos anos, quando a Frelimo será substituída por um outro partido na governação do País, o nó a ser desmanchado não será o da união ou separação das funções de presidente do partido e Presidente da República, mas o da separação entre o que é propriedade comum de todos os moçambicanos e o que é propriedade privada do partido Frelimo ou dos dirigentes deste partido. Em Junho do ano em curso o País celebra o seu quadragésimo aniversário de independência da administração colonial portuguesa e da fundação do Estado moçambicano, que é também o quadragésimo aniversário da promiscuidade entre o partido Frelimo e o Estado moçambicano, e também o quadragésimo aniversário de todos e cada um dos vícios que ao longo destes quarenta anos foram tolerados e distanciaram o País sempre mais do ideal do Estado de Direito.
Por conseguinte, tenho a impressão que a razão da divergência de estratégia na resolução do conflito pós-eleitoral, entre o Presidente Nyusi e a CP do partido, não reside no simples facto de Armando Guebuza não ter ainda cedido a presidência do partido ao recém-proclamado Presidente da República, mas na promiscuidade entre o partido e o Estado que, desde sempre, caracterizou o partido Frelimo.
Quando Armando Guebuza ascendeu à presidência da República, o predomínio partidário deu espaço a um sistema híbrido autocrático-partitocrático. Purgando da Comissão Política e do Comité Central do partido as figuras que exerciam a função de "contrapesos" dos diversos focos de influência, Guebuza substituiu-os por aquele tipo de membros cuja modalidade existencial é comparável aos vagões, sempre dispostos a seguir qualquer cabeça-motor capaz de puxa-los para onde quiser porque, por si, são incapazes de formular uma própria opinião. Guebuza promoveu esta categoria de membros e atribuiu-os altos cargos no partido e no governo, não para servir os interesses do partido, muito menos os da nação, mas para actuar a transição, de facto, do regime partitocrático ao regime híbrido autocrático-partitocrático.
A partir da altura em que a Comissão Política começou a abundar dos “membros vagões”, as competências daquele órgão deixaram de ser aquelas - como regem os Estatutos do partido - de "velar pelo cumprimento das deliberações dos órgãos superiores do partido" (no caso o Congresso e o CC), Art. 65. 1.a, de "realizar análises sobre questões da vida nacional, internacional e do partido, (...), Art. 65. 1.b, e passaram a ser aquelas de adular o autocrata que lhes tinha confiado altos cargo, sem merecimento. E, por sua vez, o autocrata presidente do partido, para retribuir as adulações que recebia, abriu espaço para todo o tipo de abusos, desmandos e impunidade.
O relacionamento doentio entre o presidente do partido Frelimo e a sua CP manifestou-se com toda a sua notoriedade na forma como este partido reagiu à marcha história realizada no dia 31 de Outubro de 2013, nas cidades de Maputo, Beira e Quelimane, em protesto contra a intolerância polícia do partido no governo, a governação desastrosa do então Presidente da República, Armando Guebuza, o aspecto da guerra que se estava alastrando por todo o País, o fenómeno de raptos e crime organizado, e o crescimento galopante do fenômeno da corrupção ao alto nível. Em vez de chamar Guebuza e o seu executivo para receberem uma puxada de orelhas (afinal era o que mereciam), a CP organizou, em Janeiro de 2014, uma marcha de exaltação de Armando Guebuza e apresentou-o - paradoxalmente - qual "promotor de paz e desenvolvimento", numa altura em que o País estava precipitando numa segunda guerra civil e registava uma descida no índice de desenvolvimento social; qual "filho mais querido de Moçambique", numa altura em que, só em Maputo, mais de 30 mil pessoas haviam saído às ruas para protestar contra a sua intolerância política e a utilização do cargo político a ele confiado para promover negócios privados.
Em conformidade com os episódios históricos acima recordados e interpretados, o comportamento adverso dos membros influentes da CP e da bancada parlamentar da Frelimo face ao entendimento alcançado entre o Presidente da República e o líder da Renamo induz a suspeitar que exista (no seio da Frelimo) um certo receio que o Presidente Nyusi tenha, efectivamente, a intenção de ocupar-se do interesse nacional, como prometeu no seu Discurso Inaugural e que, para isso, tenha também em mente lançar uma verdadeira negociação com a Renamo, capaz de permitir uma distensão política e conferir-lhe a legitimidade que não teve através do sufrágio de 15 de Outubro de 2014. 
Esta provável intenção genuína, da parte de Filipe Nyusi, de consagrar a sua presidência da República ao serviço de interesse nacional tem um potencial de representar uma ameaça para os “membros vagões” do parido, os quais serviram-se sempre da governação desastrosa para ocultar a própria preguiça mental e pobreza de espírito, e para saquear o Estado. Jogando a conhecida carta de baixo capital político, da parte do Presidente Nyusi, a campanha contra a eventual proposta legislativa a ser apresentada pela Renamo à AR, mais do que ser um recado dirigido ao partido de Afonso Dhlakama, ela visa conduzir Nyusi para dentro da gaiola da CP do partido. O seu principal objetivo é aquele de criar ciúmes no Nyusi pelo facto de não poder fazer-se tratar de “filho mais querido de Moçambique” pelos membros mais influentes do seu partido. Sentindo a necessidade do carinho dos membros prestigiosos do partido, espera-se que ele “entre na linha”.
Pelos vistos, os eventos prosseguirão o seu curso normal, até que se defina quem é mais forte. Trata-se duma luta implacável pela sobrevivência e Nyusi não pode sacrificar a sua prioridade de legitimar-se, favorecendo os vícios dos membros da CP. O quadro político continua a ser desfavorável para a Frelimo: no seu périplo destinado a explicitar o conceito de governação autónoma, Dhlakama, continua a arrastar grandes multidões que manifestam o próprio apoio às suas reivindicações; em contrapartida, a quantidade e qualidade dos participantes dos comícios destinados a anunciar que a Frelimo não aprovará a proposta a ser apresentada pela Renamo, sobre Regiões (ou Províncias) Autónomas, faz recordar as turmas de alfabetização, dos fins da década Setenta e princípios da década Oitenta, constituídas por aquelas mamãs vestidas de capulanas e sentadas no chão sem, nem motivação, nem capacidades para aprender.
Mas a CP não vai desistir de fazer pressão sobre Nyusi. Embora possa ter reconhecido o fracasso da estratégia das digressões pelas províncias, com certeza, a CP vai orquestrar uma outra. Não se exclui, por exemplo, que o assassinato, na manhã do dia 03 de Março de 2015, do constitucionalista Gilles Cistac – o homem que argumentou de forma convincente a constitucionalidade da proposta da criação de “Regiões Autónomas” - seja um recado dirigido ao recém-proclamado Presidente da República, para avisá-lo que, para legitimar-se, poderá inventar um outro modo que não comprometa os interesses da classe dirigente do partido.

                                                                                                       Alfredo Manhiça 

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