Por Alfredo Manhiça
A
explicita divergência entre a manobra do Presidente da República, Filipe Nyusi,
que, para resolver a crise política pós-eleitoral, alcançou um entendimento com
Afonso Dhlakama, vinculando a Renamo a submeter à Assembleia da
República (AR) uma proposta de legislação tendo em vista dotar as Regiões (ou
Províncias) de autonomia, e o desdobramento dos principais membros da Comissão
Política (CP) da Frelimo por algumas províncias, anunciando que a Frelimo
não aprovará a proposta a ser apresentada pelo partido de Afonso Dhlakama,
estimulou alguns circuitos políticos e intelectuais do País a revisitar a práxis
histórica do partido no poder, para fundamentar a tese segundo a qual Armando
Guebuza deveria ceder a presidência do partido ao recém proclamado Presidente
da República, para evitar a situação da existência de dois polos de poder.
Contrapostos
(embora timidamente) aos defensores da tese de união das funções da presidência
da República e da presidência do partido, são aqueles que - como o semanário Savana,
no seu editorial da ed. n. 1103, de 27 de Fevereiro de 2015 - mostram-se
favoráveis à ideia de separação entre as funções de líder do partido no poder e
as do Chefe de Estado.
Na minha
modesta opinião, a reflexão não deve limitar-se exclusivamente às duas
alternativas: ou união dos cargos de presidência da República e presidência do
partido no governo, ou separação destes dois cargos. É sobretudo importante
insistir na diferenciação entre o partido no governo e o Estado, não
necessariamente obtenível pela atribuição do cargo de presidente do partido a
uma pessoa física diferente daquela que exerce o cargo de Presidente da
República. A responsabilidade que pesa sobre todos e cada um dos cidadãos,
independentemente da sua cor partidária ou condição social (pela qual a
história e as futuras gerações julgarão o presente) é aquela de estabelecer
alicerces seguras de um Estado de Direito, capaz de garantir – como dizia Karl
Popper - a rotação (substituição) das classes dirigentes sem o derramamento de
sangue.
Infelizmente,
para os que terão a sorte de viver por longos anos, quando a Frelimo será
substituída por um outro partido na governação do País, o nó a ser desmanchado
não será o da união ou separação das funções de presidente do partido e
Presidente da República, mas o da separação entre o que é propriedade comum de
todos os moçambicanos e o que é propriedade privada do partido Frelimo ou
dos dirigentes deste partido. Em Junho do ano em curso o País celebra o seu
quadragésimo aniversário de independência da administração colonial portuguesa
e da fundação do Estado moçambicano, que é também o quadragésimo aniversário da
promiscuidade entre o partido Frelimo e o Estado moçambicano, e também o
quadragésimo aniversário de todos e cada um dos vícios que ao longo destes
quarenta anos foram tolerados e distanciaram o País sempre mais do ideal do
Estado de Direito.
Por
conseguinte, tenho a impressão que a razão da divergência de estratégia na
resolução do conflito pós-eleitoral, entre o Presidente Nyusi e a CP do partido,
não reside no simples facto de Armando Guebuza não ter ainda cedido a
presidência do partido ao recém-proclamado Presidente da República, mas na
promiscuidade entre o partido e o Estado que, desde sempre, caracterizou o
partido Frelimo.
Quando
Armando Guebuza ascendeu à presidência da República, o predomínio partidário
deu espaço a um sistema híbrido autocrático-partitocrático. Purgando da
Comissão Política e do Comité Central do partido as figuras que exerciam a
função de "contrapesos" dos diversos focos de influência, Guebuza
substituiu-os por aquele tipo de membros cuja modalidade existencial é
comparável aos vagões, sempre dispostos a seguir qualquer cabeça-motor capaz de
puxa-los para onde quiser porque, por si, são incapazes de formular uma própria
opinião. Guebuza promoveu esta categoria de membros e atribuiu-os altos cargos
no partido e no governo, não para servir os interesses do partido, muito menos
os da nação, mas para actuar a transição, de
facto, do regime partitocrático ao regime híbrido
autocrático-partitocrático.
A partir
da altura em que a Comissão Política começou a abundar dos “membros vagões”, as
competências daquele órgão deixaram de ser aquelas - como regem os Estatutos do
partido - de "velar pelo cumprimento das deliberações dos órgãos
superiores do partido" (no caso o Congresso e o CC), Art. 65. 1.a, de
"realizar análises sobre questões da vida nacional, internacional e do
partido, (...), Art. 65. 1.b, e passaram a ser aquelas de adular o autocrata
que lhes tinha confiado altos cargo, sem merecimento. E, por sua vez, o autocrata
presidente do partido, para retribuir as adulações que recebia, abriu espaço
para todo o tipo de abusos, desmandos e impunidade.
O
relacionamento doentio entre o presidente do partido Frelimo e a sua CP
manifestou-se com toda a sua notoriedade na forma como este partido reagiu à
marcha história realizada no dia 31 de Outubro de 2013, nas cidades de Maputo,
Beira e Quelimane, em protesto contra a intolerância polícia do partido no governo,
a governação desastrosa do então Presidente da República, Armando Guebuza, o
aspecto da guerra que se estava alastrando por todo o País, o fenómeno de
raptos e crime organizado, e o crescimento galopante do fenômeno da corrupção
ao alto nível. Em vez de chamar Guebuza e o seu executivo para receberem uma
puxada de orelhas (afinal era o que mereciam), a CP organizou, em Janeiro de
2014, uma marcha de exaltação de Armando Guebuza e apresentou-o -
paradoxalmente - qual "promotor de paz e desenvolvimento", numa
altura em que o País estava precipitando numa segunda guerra civil e registava
uma descida no índice de desenvolvimento social; qual "filho mais querido
de Moçambique", numa altura em que, só em Maputo, mais de 30 mil pessoas
haviam saído às ruas para protestar contra a sua intolerância política e a utilização
do cargo político a ele confiado para promover negócios privados.
Em
conformidade com os episódios históricos acima recordados e interpretados, o
comportamento adverso dos membros influentes da CP e da bancada parlamentar da Frelimo
face ao entendimento alcançado entre o Presidente da República e o líder da
Renamo induz a suspeitar que exista (no seio da Frelimo) um certo receio que o Presidente Nyusi tenha,
efectivamente, a intenção de ocupar-se do interesse nacional, como prometeu no
seu Discurso Inaugural e que, para isso, tenha também em mente lançar uma
verdadeira negociação com a Renamo, capaz de permitir uma distensão
política e conferir-lhe a legitimidade que não teve através do sufrágio de 15
de Outubro de 2014.
Esta
provável intenção genuína, da parte de Filipe Nyusi, de consagrar a sua
presidência da República ao serviço de interesse nacional tem um potencial de representar
uma ameaça para os “membros vagões” do parido, os quais serviram-se sempre da
governação desastrosa para ocultar a própria preguiça mental e pobreza de
espírito, e para saquear o Estado. Jogando a conhecida carta de baixo capital
político, da parte do Presidente Nyusi, a campanha contra a eventual proposta
legislativa a ser apresentada pela Renamo à AR, mais do que ser um
recado dirigido ao partido de Afonso Dhlakama, ela visa conduzir Nyusi para
dentro da gaiola da CP do partido. O seu principal objetivo é aquele de criar
ciúmes no Nyusi pelo facto de não poder fazer-se tratar de “filho mais querido
de Moçambique” pelos membros mais influentes do seu partido. Sentindo a
necessidade do carinho dos membros prestigiosos do partido, espera-se que ele
“entre na linha”.
Pelos
vistos, os eventos prosseguirão o seu curso normal, até que se defina quem é
mais forte. Trata-se duma luta implacável pela sobrevivência e Nyusi não pode sacrificar
a sua prioridade de legitimar-se, favorecendo os vícios dos membros da CP. O
quadro político continua a ser desfavorável para a Frelimo: no seu périplo destinado a explicitar o conceito de
governação autónoma, Dhlakama, continua a arrastar grandes multidões que manifestam
o próprio apoio às suas reivindicações; em contrapartida, a quantidade e qualidade
dos participantes dos comícios destinados a anunciar que a Frelimo não aprovará a proposta a ser apresentada pela Renamo, sobre Regiões (ou Províncias)
Autónomas, faz recordar as turmas de alfabetização, dos fins da década Setenta
e princípios da década Oitenta, constituídas por aquelas mamãs vestidas de
capulanas e sentadas no chão sem, nem motivação, nem capacidades para aprender.
Mas a CP
não vai desistir de fazer pressão sobre Nyusi. Embora possa ter reconhecido o
fracasso da estratégia das digressões pelas províncias, com certeza, a CP vai
orquestrar uma outra. Não se exclui, por exemplo, que o assassinato, na manhã
do dia 03 de Março de 2015, do constitucionalista Gilles Cistac – o homem que
argumentou de forma convincente a constitucionalidade da proposta da criação de
“Regiões Autónomas” - seja um recado dirigido ao recém-proclamado Presidente da
República, para avisá-lo que, para legitimar-se, poderá inventar um outro modo
que não comprometa os interesses da classe dirigente do partido.
Alfredo
Manhiça
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