Os abalos psicológicos do conflito de 16 anos nunca foram resolvidos e
já são "ressuscitados" com a atual tensão político-militar. Os
primeiros traumas sempre foram ignorados, tal como os que nascem agora, diz
terapeuta.
Durante a guerra civil, que opôs a RENAMO e o Governo da FRELIMO e
terminou em 1992, cerca de 900.000 pessoas morreram e 250.000 crianças ficaram
órfãs. A sociedade e a comunicação social pouco falaram sobre o que foi feito
para minimizar os traumas de guerra dos moçambicanos. O fantasma do medo da
guerra acordou e as populações fogem deseperadas das zonas de grande tensão. A
DW África entrevistou Boia Efraime, psicoterapeuta e membro da Associação
Reconstruindo Esperança.
DW ÁFRICA: Foi uma falha o facto de Moçambique
nunca ter tido uma comissão da verdade para se falar das atrocidade da guerra
civil?
Boia Efraime (BE): Eu penso que sim. O que está em causa é
revisitar os erros cometidos no passado, num processo em que cada um assume a
culpa individual e coletiva pela guerra, pela destruição e pelas atrocidades
cometidas. E penso que é possível começar a ver o outro como um ser humano,
como cidadão, como alguém útil no processo de construção e consolidação de um
futuro comum. A não haver isto, não se estabelece a confiança.
Eu
trabalhei com crianças-soldado. Não houve, por exemplo, o reconhecimento das
atrocidades cometidas na guerra e das responsabilidades individuais e coletivas
pelo que aconteceu. Houve uma tentativa de acusar o regime do Apartheid na África
do Sul, o regime socialista na União Soviética e na RDA (ex-República
Democrática da Alemanha), mas não houve um reconhecimento de que isto foi feito
em primeira pessoa por nós moçambicanos.
DW ÁFRICA: E qual é a consequência desta situação
não abordada?
BE: Penso que se continua
a ver o outro como como um inimigo. É disseminado o pensamento de que a
destruição do outro poderia ser a solução dos conflitos que temos em
Moçambique. Isso nos mais variados níveis: psíquico, político, material. Esse
cenário leva à situação que estamos agora a evidenciar.
DW África: Será que a aposta
da RENAMO em símbolos bélicos, com o regresso do seu líder Afonso Dhlakama à
base em Gorongosa, foi como brincar com fogo num país que ainda não ultrapassou
os traumas de guerra?
BE: Penso que sim. Se
invertêssemos a equação e colocássemos a FRELIMO no lugar da RENAMO,
possivelmente, teríamos o mesmo resultado. A FRELIMO não tem confiança na
RENAMO e vice-versa. E penso que esteve sempre presente a utilização do recurso
da pressão militar. Se a RENAMO teve algum protagonismo na história moçambicana
é porque manteve sempre o seu exército. Se não tivesse um exército, não seria
vista pelo Estado como alguém que deve ser ouvido. Isso quer dizer que a
Constituição do país passa pela integração de todos os moçambicanos e não pela
partidarização das forças armadas, da polícia e dos mecanismos de distribuição
de riqueza.
DW África: Como
o trauma dos 16 anos de guerra civil se manifesta numa situação de conflito
como a que Moçambique vive atualmente?
BE: Uma pessoa do Parlamento
dizia-me que muitos debates políticos no próprio Parlamento eram de certa
maneira irracionais, porque nas bancadas da FRELIMO e da RENAMO estavam
presentes pessoas que, durante a guerra, combateram em lados diferentes e foram
responsáveis por atos militares que levaram à morte de familiares de deputados
de outra bancada. Vinha-lhe ao de cima sentimentos de raiva, confusão e
agressão, porque, para ela, aquelas pessoas continuavam a ser responsavéis pelo
que aconteceu.
DW África: Acha
que a sociedade moçambicana e o Governo tomaram ou tomam em conta a questão do
trauma?
BE: Não. Pretendeu-se fazer uma
tábua rasa, fazer de conta que o conflito não existiu e que não houve
responsáveis. No fim do conflito, não houve um reconhecimento da existência de
crianças-soldado, não houve um processo oficial de desmobilização dessas
crianças. Houve tentativas de reintegrá-las no exército, mas por não se querer
aceitar que elas tinham combatido como soldados, houve um processo de continuar
a negar a responsabilidade individual e coletiva do que aconteceu no passado.
De certa maneira, essa responsabilidade é agora virada para os atores
políticos, numa tentativa de demonização do outro.
Fonte: DW.DE – 08.11.2013
1 comentário:
So agora esta reflexao depois do caldo se ter t entornado porque?
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