Por Elísio Macamo
Conheci o jovem director das Alfândegas ainda bébé e vi-o crescer. Uma e outra vez deixei-o jogar à bola connosco. Fiquei recentemente orgulhoso de ler o seu nome em conexão com a neutralização dum acto ligado a uma possível fuga de capitais. Fiquei estarrecido e aterrado ao ver a sua foto a ilustrar a notícia sobre a morte violenta dum alto funcionário das Alfândegas. Lembrei-me dele ainda miúdo, pequenino, sempre asseiado, a caminho ou de volta da escola. Tive até a crueldade de esperar que se tratasse de outra pessoa, não do Orlando de Xai-Xai, qualquer pessoa, menos ele, menos esse jovem que chutou a bola na areia quente do bairro quatro de Xai-Xai, em frente à Igreja da Missão Suíça com a minha permissão. Os meus irmãos rebentaram com essa esperança confirmando que se tratava mesmo dele. Do Orlando.
A reacção normal nestas circunstâncias, uma reacção que é característica entre nós, foi de amaldiçoar o que nos torna tão vulneráveis. No fundo de mim mesmo amaldiçoei as nossas instituições, a sua vulnerabilidade perante o crime. Não fui tão longe como muitos outros o estão a fazer – e com legitimidade – isto é, tão longe ao ponto de culpar, como sempre, o governo e as suas possíveis ligações com o crime organizado. A indignação que gente de bem sente em relação a este crime hediondo é enformada, com certa razão, pela constatação da nossa vulnerabilidade geral em relação a gente do mal. Ninguém, em Moçambique, está seguro, nem mesmo aqueles que pensam que mandam no país. O que aconteceu ao Orlando pode acontecer a qualquer um de nós, incluindo àqueles que pactuam com o crime. Estamos entregues.
Mas a questão é de saber em que medida estamos entregues e que dimensões é que o crime em Moçambique envolve. Não vai ressuscitar o Orlando, mas ajuda neste momento de consternação repensar a nossa maneira de falar sobre o crime no país. Talvez encontremos nesse repensar outras abordagens e outros vocabulários mais úteis ao seu combate. O repensar impõe-se, sobretudo, em relação à extensão do problema e à natureza da fragilidade ou cumplicidade do poder. Este repensar impõe-se já há muito tempo. Contudo, tem sido difícil concentrar a nossa atenção porque os acontecimentos não nos dão nenhuma trégua. Não nos dão nem trégua, nem nos permitem discernir a sua verdadeira natureza porque assim que nos visitam socorremo-nos imediatamente de frases feitas e lugares-comuns que apenas nos dão conforto, mas pouco explicam ou clarificam.
O QUE SABEMOS SOBRE O CRIME?
Comecemos pela extensão do problema. Infelizmente, o Ministério do Interior e seus órgãos de garantia da lei e ordem não dispõem de dados úteis. Os que devem combater o crime sabem pouco acerca dele ou se sabem não partilham connosco. Cada um de nós depende apenas da sua própria sensação para determinar os níveis de crime. Embora saibamos quantos homicídios ocorrem no país, as estatísticas que fazem parte do informe do Ministro do Interior no Parlamento são duma generalidade arrepiante. Não nos dizem se a nossa Polícia sabe que proporções de homicídios têm a ver com ajustes de contas entre grupos de criminosos, que proporções têm a ver com descuidos na execução dum outro crime, que proporções têm a ver com retaliações, vinganças, avisos, silenciamento de testemunhas, etc. Nenhuma desta informação vai devolver à vida os que foram vítimas de homicídio, mas o seu conhecimento exacto e partilhado com o resto da sociedade pode ajudar de duas maneiras importantes.
A primeira pode ser de desdramatizar parcialmente a situação. Na verdade, a falta de informação exacta promove a ideia duma violência generalizada que não me parece ser o caso. Para um país com instituições tão frágeis como o nosso parecem ser poucos os homicídios como o que acaba de ceifar a vida do Orlando, isto é de pessoas íntegras e honestas ao serviço do Estado. O ideal seria que não acontecessem, mas o ideal não se compadece com a fragilidade das nossas instituições. Todavia, na falta de informação qualquer morte violenta desta natureza tem o condão de exagerar o fenómeno. E num contexto de exagero é difícil pensar friamente no que é preciso fazer.
Neste caso particular parece haver problemas graves de articulação entre os vários órgãos de segurança. Se os órgãos de segurança tivessem uma ideia mais discriminada da morfologia do crime violento não constituiria problema criar mecanismos de protecção dos funcionários do Estado sob forte risco. Se se conhecesse a morfologia do crime teria sido instintivo activar os mecanismos de protecção ao Orlando, dada a natureza das coisas que o ocuparam últimamente. Isso não teria impedido a gente do mal de tentar chegar a ele, mas a ideia da protecção não é de tornar a violência impossível, mas sim de a tornar mais difícil ainda.
A segunda maneira que o conhecimento discriminado do fenómeno do homicídio teria de ajudar consistiria em orientar melhor a discussão do que falhou e distribuir responsabilidades. Neste momento é difícil fazer isto senão duma forma generalizada, como é costume entre nós. O que falhou? Quem falhou? É nas alfândegas que devemos procurar pela responsabilidade olhando mais de perto para a forma como ela protege os seus quadros? É nos serviços de segurança que, talvez, deveriam ter ficado de sobre-aviso assim que o jovem director provocou a gente do mal? É na esquadra local da Polícia que, provavelmente, não dispõe de nenhum sistema claro de prevenção do crime, nem de reacção rápida nestas circunstâncias? É no Ministério do Interior que aparentemente não faz a mínima ideia do que é preciso fazer para estar à altura do crime? É na falta de meios? O que revolta nestas circunstâncias não é tanto o crime em si quanto a ausência de alguém a quem responsabilizar. E quando é assim alguma coisa não está bem no nosso sistema político e na nossa estrutura social.
PROTEGER A SOBERANIA
Assim, passo agora para o segundo aspecto que devíamos repensar, o mais cômodo é lançar todas as culpas ao poder. Se é verdade que é para isso que temos o poder institucionalizado, não é menos verdade que essa é também a maneira mais rápida de evitar pensar seriamente o problema. Teoricamente, o que define o poder institucionalizado é o monopólio do uso de meios da violência. Isto é, o poder institucionalizado que, por definição – pelo menos no contexto do Estado de direito – reserva a si próprio o uso da violência contra os seus sujeitos. A noção de legitimidade deriva parcialmente daí, na medida em que o monopólio da violência implica, em grande medida, que nós os cidadãos conferimos esse poder ao aparelho estatal. Esta é a teoria. A prática é um pouco complicada. Deter o monopólio da violência não significa que a violência criminosa não possa acontecer. Nem significa que todos vão aceitar a legitimidade desse monopólio.
Não obstante, a mera existência desse monopólio implica necessariamente que todo o acto de violência que ocorre fora do poder institucionalizado constitui um desafio aberto ao Estado. Portanto, todo o crime violento é um atentado à nossa soberania. Neste sentido, importa saber até que ponto é que a nossa classe política está comprometida com a nossa soberania e de que maneira é que, pela sua acção ou inacção, ela pode encorajar atentados à sua própria integridade. Isto não significa ainda responsabilizar o governo por todo o crime que acontece, mas dá algumas indicações sobre os factores que podem tornar o Estado frágil.
Um desses factores pode ser o envolvimento dos seus funcionários com o mundo do crime. Não somos o primeiro e único país no mundo onde isso acontece. Seria até bastante estranho se o nosso país fosse o único sem esse tipo de ligações perigosas. Essas ligações não precisam de ter cunho ou motivação política, basta apenas que haja um número suficiente ou estratégico de gente disposta a vender a sua integridade e a soberania do país em troca do conforto material. E não só. Basta que haja criminosos suficientemente determinados a ameaçar gente íntegra para que essas ligações se consumam, quer por conluio ou por medo.
O que isto quer dizer é que talvez fosse oportuno não apenas deplorar as ligações perigosas e refugiarmo-nos na cômoda posição de acusar o governo ou o partido no poder de estar feito com o mundo do crime; nem tão pouco basta rezar para que nasça uma geração de políticos íntegros ou limpos para substituir os que temos agora. Talvez o que é necessário é discutir se a natureza do nosso sistema político permite que o Estado se proteja da infinita artimanha e do poder aparentemente superior que o crime organizado detém. Será que a concentração do poder em poucas mãos e poucas instâncias ajuda a proteger o nosso Estado das investidas da gente do mal? Eu duvido, e se calhar é aqui onde devemos começar a procurar pela responsabilidade do poder.
Seria talvez até do interesse do próprio poder delegar, desconcentrar e descentralizar como forma de evitar estar na carreira de tiro quando crimes forem cometidos. A separação clara de poderes pode ser, nestas circunstâncias, um trunfo. A independência dos tribunais e da Procuradoria, a autonomia da Polícia, a responsabilidade dos escalões mais baixos são tudo questões que importaria reflectir agora. O jurista francês Gilles Cistac, professor na faculdade de Direito da Universidade Eduardo Mondlane, lançou um debate sobre os poderes do Chefe de Estado que, infelizmente, alguns sectores próximos do poder tentaram transformar em ingerência em assuntos moçambicanos, ao invés de o acolher como uma oportunidade para repensar o sistema político e o que o pode fragilizar. Um Chefe de Estado que, por inerência constitucional, controla tudo e dirige um governo que, por essa mesma razão, também controla tudo não é forte, pelo menos nas condições actuais do nosso país. É apenas forte no sentido de distribuição patrimonial de prebendas, mas extremamente vulnerável à chantagem daqueles que se insinuam ilicitamente do poder e sujeito sempre à crítica mesmo quando não tenha feito nada irrepreensível.
É bem possível que esta estrutura de poder que nós temos se erga como obstáculo à procura e captura dos que mataram o Orlando. E isso não será porque o poder esteja feito com o crime organizado. Alguém que devia investigar vai pensar que talvez não seja do interesse do poder investigar; alguém que sabe, viu ou suspeita vai pensar que o melhor é ficar calado; alguém vai ficar indeciso por não saber como interpretar os discursos políticos que vão prometer a investigação: é a sério ou apenas para a imprensa? E porquê? Porque talvez ainda não começamos a reflectir na possibilidade de proteger a nossa soberania distribuindo responsabilidades. A moral desta história é simples: o país não precisa duma classe política íntegra; nunca nenhum país precisou disso. O país precisa apenas duma classe política precavida que procura em arranjos institucionais que salvaguardem a nossa soberania a melhor maneira de se proteger a si própria, de si própria e do longo alcance da gente do mal.
Nada disto vai ajudar o Orlando. Mas há tantos outros Orlandos e Orlandas fazendo o seu trabalho com brio e integridade à extensão do país. Poderíamos começar a pensar neles e nelas repensando a forma como abordamos o crime na nossa sociedade. É tarde para alguns, mas nunca para a maior parte de nós.
•Elísio Macamo
Fonte: Jornal Notícias - 29.04.2010
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