Das disputas políticas
Retirado do Zambeze[27-04-2006]
A 7 de Junho de 1982, após longos e penosos dias de reuniões com os chamados comprometidos com o colonialismo, Samora Machel mandou deitar por terra as placas que identificavam os respectivos grupos no salão nobre da Escola Secundária Josina Machel, para depois dizer bem alto: “Já não há comprometidos”
”. E como isso não podia explicar tudo, o marechal declarou que aqueles homens e mulheres passavam a gozar de todos os direitos consagrados pela Constituição então vigente. Isto porque os comprometidos não podiam, até aí, eleger ou serem eleitos, a exemplo do que aconteceu em 1977 no primeiro exercício eleitoral em Moçambique. Hoje, vinte e quatro anos depois, podemos dizer que muito caminho percorremos no campo das liberdades individuais, a ponto de já gozarmos da liberdade de exprimir livremente um pensamento, mesmo quando contrário a quem governa. É certamente uma conquista a preservar a todo o custo.
O intróito tem a ver com uma das coisas que li e ouvi sobre a disputa de uma casa envolvendo o primogénito da nossa primeira-ministra e um cidadão chamado Faruk Gadit. Com efeito, muito se tem dito e escrito acerca do assunto e a profusão desses pronun-ciamentos só resulta, quanto a mim, pela relutância do poder político em produzir paradigmas de conduta social, moral e ética que nos apontem saídas para casos similares ou que sirvam de charneira para as nossas atitudes. Fala-se, acusa-se, diz-se de tudo, mas ninguém assume a responsabilidade de nos vir dizer, com rapidez, de que lado se encontra a razão. E como alguém dizia há dias, no auditório privilegiado do antigo Clube Inglês, do deixa andar se passou para o deixa falar...que nada acontecerá. E é de facto triste viver num país em que nada acontece!
Provavelmente por força de acreditar que as realidades se evidenciam nas coisas mais pequenas, como poderemos ver o sol numa gota de orvalho, não terei deixado de achar que o tremendo vazio das jurisprudências firmadas(mas sempre afirmadas) talvez pudesse ser contemplado no recente posicionamento de Adelino Buque sobre o conflito acima referido, num artigo publicado a semana passada(Correio da Manhã – 20.04.06): “...ambos jogaram com base em influências para conseguir o mesmo bem. Só que, neste caso, o lobby do Faruk que era o Mocumbi já não está e ele saiu a perder, haja fair play! Nenhum dos dois disputou a casa recor-rendo à fila de espera na APIE”.
Conheço, compreendo e até aceito o silêncio resultante da dificuldade que se experimenta quando se pretende opinar numa situação em que estão em causa nomes do nosso establishment governativo. Afinal, vivemos numa sociedade em que muitas vezes o simples pão que comemos pode esvair-se por um estalar de dedos de um dirigente que acorda mal disposto. Mas já não posso aceitar que aqueles que se dispõem a opinar não cuidem, no mínimo, de serem coerentes, em vez de se afundarem no mar encrespado das contradições. De que contradição padece afinal o excerto do artigo do meu amigo Adelino Buque?
Embora não explique como Mocumbi teria sido pivot de um lobby por receber o expediente vindo de um cidadão reclamando um direito que entende ter sido violado, remetendo-o de seguida ao chefe do pelouro respectivo(no caso o Ministro das Obras Públicas e Habitação) para deslindar o caso, o conhecido articulista admite que os contendores usaram de jogos de influência para tentarem conseguir a posse do imóvel, o mesmo que dizer que agiram à margem do que as nossas leis preconizam para a obtenção de uma casa à guarda da APIE. No entanto, logo a seguir Buque apela ao “perdedor” para se comportar com fair play. Ora, como pode imperar um princípio nobre(o fair play) num jogo em que, segundo o próprio articulista, decorre sem as regras legalmente estabelecidas?
Era só esta contradição que queria trazer ao sol do debate, mas longe de pretender fazer um juízo de valor sobre o imbróglio propriamente dito, por entender que já muito foi escalpelizado para merecer mais considerandos da minha parte. Mas creio que há algo do pronunciamento da Dra. Luisa Diogo nas televisões que me mereceria um pequeníssimo reparo, sendo aliás neste modestíssimo reparo onde reside a relação com a reunião de Samora Machel com os comprometidos, em Junho de 1982. Nada mais do que isso.
Como que a dizer que não lhe assistirá razão por isso, a nossa governante revela-nos que Gadit foi Administrador colonial. Não importando a veracidade de tal afirmação(embora tudo leve a crer que sim e até pelas declarações mandadas publicar na imprensa pelo próprio visado), o facto relevante é que o ter-se exercido funções na administração colonial não determina o cerceamento dos direitos consagrados pela Constituição de Moçambique. E tanto é assim que até, ao que se diz, Gadit é correligionário político da primeira-ministra. E já gozava desses direitos na primeira República, pelo menos a partir da célebre frase de Samora Machel: “Já não há comprometidos”. Tal como passaram a gozá-los os antigos agentes da PIDE-DGS, os Comandos, os Grupos Especiais, os Grupos Especiais de Pára-quedistas, as Madrinhas de Guerra ou os antigos filiados da Acção Nacional Popular. Declarou-o o próprio fundador desta República.
A declaração de Machel não terá caído em saco roto, porque ao longo dos anos temos até visto antigos integrantes do exército português a ascenderem a cargos ministeriais e não só, ou outros ainda que, mesmo tendo sido voluntários para integrarem as mais tenebrosas ramificações do exército colonial, como os GE’s e GEP´s, não os deixamos de ver em altas poses nos corredores e palácios do poder sem que ninguém lhes aponte o que quer que seja. Que direitos teriam mais do que os outros?
Para ser mais expressivo no meu reparo, não deixaria aqui de apontar os inúmeros casos de antigos generais dos exércitos do Apartheid, do Ian Smith ou mesmo do colonia-lismo, que vêm recebendo ou até emparceirando com altos membros da nomenclatura política moçambicana em empreendimentos económicos de relevo. E se porventura e à luz do Direito moçambicano se queixassem teríamos que lhes recordar a canga que trazem, carregada do seu passado?
Lembro-me que numa visita à cidade de Tete levaram-me a jantar num restaurante explorado por um antigo piloto de Mirages rodesianos que, em plena confrontação com a “soldadesca” de Smith e vendo o fogo cerrado contra o seu bombardeiro, passou por debaixo da ponte que divide a cidade, escapando assim à morte certa. E se calhar antes ou depois massacrou centenas de moçambicanos com a sua máquina em Témbuè, Inhazónia ou Chicualacuala. E porque é que a um moçambicano, por ter sido Administrador colonial, se lhe deveria retirar o simples direito de reclamar? Não tem razão? Então diga-se-lhe que não a tem e ponto final. Recordar-lhe que foi isto ou aquilo é reanimar feridas que todos julgávamos terem sido sara-das há vinte e quatro anos.
Não queria terminar sem antes dizer que a sensação que tenho é de que a maior vítima de todo este desaguisado é o jovem Nelson Diogo Silva, que passará a ser visto, mesmo que por hipótese não seja esse o caso, como beneficiário de uma disputa desigual, principalmente entre aqueles com quem viverá o Mundo que lhes entregaremos amanhã. Penso que lutar e subir na vida a pulso, tal como muitos de nós o fizemos, deveria ser o maior legado dos nossos filhos. Te-nhamos pois a coragem de emendar a mão e livrar os jo-vens das nossas disputas.
Luís Loforte
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