Por Marcelo Mosse
No panorama cinzento do nosso debate público, o sociológo Elísio Macamo é dos poucos que se destacam pelas suas abordagens geralmente condutendes e esclarecedoras. Respeito-o por isso e, na maior parte das vezes, concordo tacitamente; nalgumas hesito bastante e até torço o nariz. Como quando ele fala sobre corrupção.
Na edição desta segunda feira do Notícias (20 de Março de 2006), Macamo voltou ao tema fazendo um desconcertante elogio à corrupção. Ele propõe que desistemos de tentar controlar a corrupção, porque ela, diz ele, traz “previsibilidade e eficiência” na relação entre o Estado e os seus utentes ( ou, como se depreende do artigo, na relação entre os agentes do Estado e os utentes do Estado).
Eu recuso plenamente o convite. Porque aceitar tal desafio é aceitar várias injustiças, é anicharmo-nos no conformismo. É aceitar que o Estado trate os cidadãos de forma diferenciada. E isso é uma injustiça, que infelizmente persiste na nossa sociedade. No fundo, no artigo convida-se a que recusemos a essência do Estado tal como a burocracia weberiana o concebe.
O argumento proposto é o de que a corrupção traz eficiência e previsilibilidade porque i) no pagamento de subornos ao funcionário público rectificam-se “desequilíbrios estruturais exigindo o verdadeiro preço do serviço que o Estado cobra” e todos ficam a saber quanto devem pagar; ii) a corrupção só é má se o suborno pago não traz o benéficio esperado para quem suborna. Ou seja, a corrupção só é má quando, tendo-se subornado para se agilizar um processo, ela “não agiliza nenhum processo”.
Este é um discurso paternalista sobre a corrupção que vingou no anos 70, numa corrente onde se evidenciou Huntignton com um artigo em que ele se referia justamente aos aspectos “positivos” da corrupção em termos de que essa prática, em situações de pobreza exterma e de insegurança social, possibilitava uma certa paz social, uma determinada redistribuição da riqueza. Hoje, é difícil concordar com esta maneira de pôr as coisas. Na verdade, o discurso funcionalista da corrupção caíu em desuso.
Muitas abordagens sobre corrupção cometem a falha de olharem apenas para as práticas confinadas na pequena corrupção; na corrupção burocrática. Deixam de lado outras práticas, também elas perniciosas, como as que configuram a grande corrupção. No caso vertente do argumento exposto, compreende-se a corrupção apenas como uma troca entre dois actores (e é verdade), mas não se tem em conta a relação de um dos actores para com Estado - no caso do funcionário público -, a chamada relação entre o Principal (o Estado) e o Agente (o Funcionário). Como explicar a legitimação da corrupção em face das regras que norteam essa relação? Ou privatizamos o Estado, como parece ser a substância que resta do argumento e como, aliás, tem sido a prática quotidiana de boa parte das nossas elites? E como enquadrar, então, a noção de bem público?
Do argumento proposto não se percebe como é que se rectificam “desequilíbrios estruturais” e nem o que isso significa. Podemos conceber, no contexto do artigo, os desiquilíbrios estruturais como a antítese da eficiência do Estado; mas como recuperar a eficiência se, com as trocas corruptivas, as rendas e subornos cobrados não entram para os cofres do Estado?
E do ponto de vista de modernização e funcionamento da administração pública, os pagamentos corruptos têm consequências claras: ii) aumento da despesa pública desproporcionalmente às receitas (por via de reduções de impostos, fugas fiscais); iii) aumento da ineficiência e morosidade burocráticas, pois cria-se um estímulo para procura de novas e mais rendas ilícitas; impedimento da modernização da burocracia e cristalização do nepotismo e dos sistemas clientelares de gestão da coisa pública, etc.
Por outro lado, a relação entre Investimento Directo Estrangeiro (IDE) e corrupção não tem apenas a ver com os custos burocráticos do investimento, como se propõe, mas com todo o efeito de distorção que a corrupção causa em termos de concorrência. Não é a retórica anti-corrupção que afasta o IDE de Moçambique...até porque muitas empresas estrangeiras prefeririam investir num âmbiente onde a corrupção fosse regra porque nesse cenário: aumentam os mercados paralelos; a inflacção é menor graças ao contrabando e ultrapassa-se o óbice da burocratização excessiva, da regulamentação deficiente e discricionária, etc.
Por estas e outras razões, a corrupção não traz eficiência nem previsibilidade à administração pública como defende o respeitado sociológo; é, isso sim, um sintoma da ineficiência do sistema. Se um advogado compra uma sentença, ou suborna para que o seu caso corra ou gatinhe - conforme o interesse - ou um doente suborna para que seja atendido mais depressa que todos os outros, isso significa que o sistema não funciona de forma igualitária para todos e é madrasta de quem não pode subornar.
É, em suma, recomendável que se decline o convite formulado. Porque é, ao fim e ao cabo, um convite para negarmos o Estado moderno, para abominarmos a Democracia e as suas instituições, pese embora todas as suas dificiências. Duvido que seja essa a intenção da maioria.
Fonte: Savana
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