Por Alfredo Manhiça
Acredito que quando, na década Oitenta, no seu imaginário colectivo, os camaroneses cunharam a expressão "politique du ventre" (política do ventre), para descrever, de forma satírica, o principal determinante das opções e acções políticas dos seus governantes, não imaginavam que a censura que eles faziam aos seus dirigentes políticos podia encontrar a sua aplicação também na "pérola do índico", mais de vinte anos depois da introdução do processo da democratização.
Já em 1989, quando Jean François Bayart publicou o seu livro - L'etat en Afrique: La politique du ventre –, utilizou o adágio camaronês para definir o tipo de Estados (administração pública) que, gradualmente, haviam emergido na África negra pós-colonial.
O Estado que, segundo a concepção moderna-contemporânea, devia ser entendida como uma “empresa institucional ou agrupamento político que reivindica com êxito o monopólio do constrangimento físico legítimo, em função da observação do Direito” (Max Weber, Economia e Sociedade), na África pós-colonial, ele (o Estado) reivindica o monopólio do uso absoluto da força, em função – não da observação do Direito, mas da exploração dos recursos económicos disponíveis e o controlo exclusivo dos meios de produção, por parte das elites dirigentes, preocupadas em perpetuar a própria hegemonia sobre os restantes estratos sociais.
O Estado que, segundo a concepção moderna-contemporânea, devia ser entendida como uma “empresa institucional ou agrupamento político que reivindica com êxito o monopólio do constrangimento físico legítimo, em função da observação do Direito” (Max Weber, Economia e Sociedade), na África pós-colonial, ele (o Estado) reivindica o monopólio do uso absoluto da força, em função – não da observação do Direito, mas da exploração dos recursos económicos disponíveis e o controlo exclusivo dos meios de produção, por parte das elites dirigentes, preocupadas em perpetuar a própria hegemonia sobre os restantes estratos sociais.
Segundo a análise de Bayart, este tipo de Estado afirmou-se graças à introdução progressiva, de facto, da política de redistribuição clientelar da riqueza e regalias dosados e ponderados de acordo com as circunstâncias, isto é, cada "ventre" passou a ser saciada, ou em função da sua periculosidade (o exército porque pode organizar e realizar um golpe de estado militar), ou em função da sua importância (as pessoas ou grupos mais influentes) ou em função da lealdade (os "lambebotistas") aos detentores do poder.
O conceito de “política do ventre” presta-se como chave interpretativa da campanha de persuasão dos deputados eleitos pela Renamo, levada a cabo pela imprensa controlada pelo Estado e, sobretudo, por alguns membros do governo central da Frelimo, desde que aquele partido (a Renamo) - num gesto extremo de protesto contra os resultados das eleições gerais de 15 de Outubro de 2014 - anunciou e materializou o boicote das cerimónias de tomada de posse nas Assembleias provinciais e na Assembleia da República (AR).
O governo da Frelimo recusa-se, deliberadamente, a utilizar os vários instrumentos habitualmente utilizados pelos países de democracias consolidadas – como a concertação – para ultrapassar crises como a que, actualmente, afecta a política nacional, e prefere recorrer às manobras que visam cooptar a Renamo para entrar na lógica da "política do ventre". Pelos vistos, a Frelimo recusar-se-ia também, por exemplo, a admitir a hipótese segundo a qual, o gesto da Renamo, indica igualmente que o diferendo que induziu o partido no governo e o maior partido de oposição a um segundo conflito armado, nos últimos dois anos, não encontrou uma justa ou adequada solução nos negociados do Centro Cultural "Joaquim Chissano" e, portanto, a existência duma forte exigência de um repensamento, a partir de base, de toda a questão política nacional.
Uma ilustração do discurso acima sustentado vem dos pronunciamentos de Gabriel Muthisse, ministro dos Transportes e Comunicações, e chefe-adjunto da delegação governamental no diálogo entre o governo da Frelimo e a Renamo, quando, reagindo à interpelação do jornal "Notícias" sobre a ausência dos membros da Renamo nos actos de investiduras das Assembleias Provinciais, e a ameaça de boicotar a tomada de posse na AR , apressou-se a declarar que "os membros da AR possuem regalias, de entre as quais subsídios e salários que resultam do facto de o País estar a produzir riqueza. E quanto maior for a riqueza que o País produz maior são essas mesmas regalias" (Notícias, ed. De 08. 01. 2015).
Uma leitura entrelinha do acima citado discurso do ministro Muthisse - feita na base do retro-cénico do conceito de Estado nos países da África pós-colonial, segundo Bayart - induz a concluir que o governo da Frelimo percebeu que a Renamo havia se tornado - quer com a longa experiência de enganos, quer com os resultados obtidos nas presentes eleições - um perigo para o sistema e por isso a necessidade de encher cada um dos “ventres” dos membros relevantes deste partido, para calar-lhes as bocas e assegurar a tranquilidade. De facto, o recado de Muthisse, dirigido aos deputados eleitos pela Renamo é subtil, mas claro: o que está em causa não é se as eleições foram ou não foram justas; nem a consolidação do modelo e as instituições democráticas. O que está em causa é ter acesso ao pasto. Além disso, Muthisse faz transparecer que o grupo que controla a economia (o partidão dominante) está também disposto a aumentar as regalias dos novos deputados, na condição que eles renunciem a decisão de boicotar a tomada de posse. Eis a sentença mágica: "E quanto maior for a riqueza que o país produz maior são essas mesmas regalias".
o mito do crescimento económico foi veiculado principalmente no segundo mandato do presidente Armando Guebuza e, pelos vistos, a moda pegou. Ora, Muthisse, na frase acima citada, evidencia que o crescimento económico e o aumento da riqueza não é para beneficiar o País e os seus cidadãos, enquanto tais, mas para aumentar as regalias (encher sempre mais os ventres) daqueles que têm acesso na governação do País ou para servir de moeda de compra daqueles que a um dado momento tornaram-se uma ameaça para o sistema.
Prova ulterior da existência, não confessada, da intenção de promover a cooptação dos deputados eleitos pela Renamo, no acima citado pronunciamento do ministro Muthisse, é a incoerência do seu discurso. Não se pode, por um lado, afirmar que "os partidos políticos têm responsabilidade [...] de lutar pela consolidação do Estado de Direito democrático e empenhar-se pela estabilidade do País...." e, por outro lado, persuadir os deputados eleitos pela Renamo a tomar posse no Parlamento, porque se não vão perder as regalias - não obstante aleguem que as eleições gerais foram manchadas por graves irregularidades. Diante da existência de uma alegação de irregularidades, em qualquer tipo de processo político, a atitude coerente de um governo ou de um governante que está engajado na luta pela consolidação do Estado de Direito, é aquela de procurar esclarecer as alegações, e não aquela de aliciar, com regalias, os denunciantes das irregularidades.
A incoerência do discurso de de Muthisse e a sua batalha para convencer os deputados eleitos da Renamo a pautar pela lógica da "política do ventre", encontrou o seu eco nas declarações da ministra da Administração Estatal, Carmelita Namachulua, citada pelo jornal "O País", ed. do dia 08. 01. 2015.
Namachulua acusou os deputados eleitos pela Renamo de "desrespeitar os votos que foram confiados pelo eleitorado, ao não tomarem posse" nas respectivas Assembleias. Uma outra incoerência! Soa cacofônico ouvir um membro do governo central, daquela Frelimo que nas mesmas eleições gerais de 2015 caracterizou-se pelo desrespeito absoluto da vontade expressa pelos eleitores, a falar da necessidade de respeitar os votos dos eleitores. A incoerência consiste em apelar pelo respeito unicamente daqueles votos proclamados arbitrariamente (sem os editais que possam servir de prova) pela Comissão Nacional de Eleições (CNE) e validados (também em circunstâncias obscuras) pelo Conselho Constitucional (CC), e ignorar absolutamente os votos que foram vítimas das várias irregularidades reconhecidas quer pela CNE come pelo CC.
Uma análise retrospectiva dos acontecimentos importantes que, nos últimos dois anos, interessaram o governo de Armando Guebuza, no seu relacionamento com os membros do partido e com o maior partido de oposição, a Renamo, sugere que a pressão política e psicológica que se exerce sobre os deputados eleitos pela Renamo para tomar posse nas respectivas Assembleias - mesmo em desobediência às orientações do seu histórico líder, Afonso Dhlakama -, representa o ponto de chegada de uma precisa agenda de utilização do poder político e o controlo da economia nacional para reforçar o regime e para recuperar o domínio de tipo absoluto que durante a presidência de Armando Guebuza conheceu o seu declínio sem precedentes.
No relacionamento do governo com a Renamo foram significativos os episódios das circunstâncias nas quais foi concordado e assinado o Protocolo sobre a Revisão da Lei Eleitoral e a extensão do período do recenseamento, e o envio de uma brigada especial para recensear Dhlakama e o seu exército, no lugar que se dizia incerto.
Já na altura do acordo e assinatura do Protocolo sobre a Revisão da Lei Eleitoral a opinião pública moçambicana achou estranho que governo da Frelimo e a Renamo que, depois de 24 rondas de negociações, sem sucessos, e depois de um intervalo de cerca de três meses, durante o qual a Renamo boicotava os encontros agendados para todas as Segundas-feiras, no Centro de Conferências Joaquim Chissano (CCJC), alegando a necessidade de facilitadores e observadores, capazes de aproximar as posições das partes, de modo a evitar impasses registados nas anteriores 24 rondas, de “improviso”, no encontro da 26ª ronda, realizado no Sábado, dia 1 de Fevereiro de 2014, os históricos inimigos tenham conseguido – não no CCJC, mas nas salas anexas da AR e em contactos secretos - ultrapassar os principais obstáculos que lhes dividia, e em condições de convocar uma sessão extraordinária, antecipada à sessão ordinária da AR, para prosseguir com a Revisão da Lei Eleitoral que visava acomodar as exigências da Renamo.
Uma leitura paralela da campanha da pressão política e psicológica que se exerce sobre os deputados pela Renamo para tomar posse nas devidas Assembleias, e do episódio do acordo “secreto” e assinatura do Protocolo sobre a Revisão da Lei Eleitoral, e da extensão do período de recenseamento para permitir a inclusão de Dhlakama, induz a pensar que o partido no governo, não só preparou cautelosamente o “golpe eleitoral”, mas também criou todas as condições para que a realização das eleições não falhasse porque a sua simples e material realização – não as circunstâncias nas quais elas se realizavam, nem o modo em que os resultados fossem obtidos – deviam legitimar a manutenção, pela força, do poder político e o controlo institucional, e aplacar a ira daquele “deus” omnipotente chamado “doadores internacionais” que é alérgico à não realização das eleições.
A bola está agora no campo da Renamo. O partido no governo já declarou que os deputados deste partido iriam, todavia, tomar posse porque, na verdade, o que conta não é o exercício da democracia, mas as regalias que se adquirem com o membership nas várias Assembleias.
A Renamo tem uma grande responsabilidade (maior do que aquela que tem a Frelimo) porque a sua caída na armadilha que a Frelimo lhe preparou é equivalente a um decreto do fim da democracia em Moçambique; um golpe final, mesmo para aqueles que ainda sonhavam com um possível renascimento.
Alfredo Manhiça
Fonte: mural de Alfredo Manhiça – 15.01,2015
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