domingo, março 06, 2016

Verdades, mentiras e omissões de Kapise

Verdades, mentiras e omissões de Kapise

Kapise é o nome que leva o espaço malawiano que está a albergar alegados refugiados moçambicanos, o qual encerra em si uma imensidão de verdades, mentiras e omissões. A nossa Reportagem percorreu aquele local, ouviu vários populares que para ali afluíram que narraram que estão a sofrer bastante e querem regressar às suas casas.

Entretanto, ninguém revela o que deu origem àquele êxodo com contornos políticos e criminais. Mas, domingo esteve lá e desvenda o véu.

O surgimento do centro de acolhimento de Kapise tem a sua gênese em Fevereiro de 2014, numa altura em que se intensificavam as hostilidades militares na região centro do país, com particular ênfase para o troço rio Save-Gorongosa, com epicentro em Muxúngue, na província de Sofala.

Naquela altura, começaram a ser audíveis, de forma meio tímida, alguns casos de sequestro de líderes comunitários no norte da província de Tete, mas o centro das atenções do país, e do mundo, era Muxúngue, pelo que o esclarecimento destes casos tardou a chegar.

Tanto é que estes episódios se sucederam em regiões remotas do interior do distrito de Moatize, onde a presença da polícia era quase imperceptível, o que alimentava um certo clima de impunidade e de “deixa-andar”.

Este quadro viria a agravar-se logo após a assinatura do Acordo de Cessação das Hostilidades Militares, de 5 de Setembro de 2014, pelo punho do então Presidente da República, Armando Guebuza, e do líder da Renamo, Afonso Dhlakama, na Presidência da República.

Enquanto aquele entendimento era rubricado sob o olhar atento de todos os moçambicanos, e quiçá, do mundo inteiro, a liderança da Renamo orientava mais de uma centena das suas milícias armadas, que actuavam ao longo da Estrada Nacional Número Um (EN1), a se transferirem para a região norte da província de Tete, mais concretamente nas bases de Ndande, Mondjo e Cabongo.

Estas bases estão localizadas no interior do distrito de Moatize, posto administrativo de Zóbwe, lodalidade de Nkondedzi. Para uma fácil inserção deste grupo, o seu comando distribuiu-os pelas aldeias em grupos de sete homens.

Às populações locais cabia o dever de acolhe-los, alimentar e oferece-los guarita, o que deu origem a casamentos, compadrios e outras afinidades entre as comunidades e as milícias que se camuflavam de população a cada dia que passava.

Porque toda esta acção decorreu em período pré-eleitoral, foram estes grupos que pregaram naquela população que “desta vez, nós e o nosso líder, Afonso Dhlakama, vamos ganhar as eleições”, com juras e promessas à mistura.

Por exemplo, assumiam o compromisso de, logo depois do anúncio dos resultados, iniciar com o processo de distribuição de tractores pelos camponeses e um vencimento de, pelo menos, 3 mil meticais para os líderes comunitários por si destacados, contra um subsídio menor que o governo oferece mensalmente aos líderes tradicionais por si acreditados.

Perante estas garantias, sustentadas em juramentos, a população local anuiu sem pestanejar. Tanto é que aquela região (norte de Tete) sempre esteve sob a influência política da Renamo, o que facilitou a aceitação daquelas promessas.

Por outro lado, trata-se de regiões onde o acesso à informação só acontece por via das emissoras de rádio malawianas que emitem em chichewa, língua falada em ambos os lados da fronteira. De televisão não se fala. Jornais, pior ainda.

LISTA DE ATROCIDADES E DE VÍTIMAS

No interior de Nkondedzi pairava um clima de impunidade total que era agravada pela ausência física das autoridades da Lei e Ordem. Assim sendo, enquanto uns disparavam contra pessoas e bens em Muxúngue, na província de Sofala, outros intimidavam e sequestravam líderes comunitários residentes em cinco povoados de Nkondedzi.

Trata-se dos povoados de Monzo, Ndande, Macululua, Magalauande e Cabongo que coincidem com as bases da Renamo que, na verdade, nunca estiveram desactivadas desde o fim do conflito armado dos 16 anos que terminou com o Acordo Geral de Paz de 4 de Outubro de 1992.

Conforme apuramos, estas áreas coincidem com as estradas que ligam a cidade de Tete às estratégicas vilas de Angónia e de Zóbwe que, durante o primeiro conflito armado só eram trafegáveis sob forte escolta militar. Apuramos que quando as Nações Unidas organizaram o acantonamento dos militares antagonistas, muitos homens da Renamo não se deixaram desmobilizar e permaneceram nas cercanias das bases, disfarçados de camponeses.

Como forma de manter a sua hegemonia nestes povoados, homens armados da Renamo que não foram deslocados a Muxúngue iniciaram uma campanha de perseguição aos líderes comunitários tidos como favoráveis ao partido no poder e a primeira vítima foi Armando Sandifuna, do povoado de Magalauande.

Armando Sandifuna era líder de segundo escalão e foi raptado em sua residência no dia 13 de Fevereiro de 2014, por volta das 23 horas por quatro homens armados e nunca mais regressou. O governo do distrito assume que deve estar morto porque nunca mais se ouviu falar dele.

A seguir foi o líder de primeiro escalão da comunidade de Tsuende, conhecido por Walace Comulane Diace que foi raptado a uma hora da madrugada do dia 3 de Março de 2014.

Porque as incursões criminosas não eram reprimidas, sete homens armados da Renamo sentiram-se tão desafogados a ponto de se deslocarem para a sede da localidade de Nkondedzi para disparar contra a casa do chefe da localidade, casa essa que funciona como sede da localidade, em cujo quintal funciona o tribunal comunitário, entre outros. Felizmente, ninguém foi atingido.

Depois destas três incursões, consta que houve um relativo abrandamento deste tipo de operações, pese embora decorressem outras acções de intimidação contra todos os que demonstrassem alguma simpatia pelo partido Frelimo.

Entretanto, com o regresso dos mais de 100 homens armados que actuavam em Muxúngue e com o calor da campanha eleitoral, a barbárie atingiu o apogeu. Prova disso é que na noite de 10 de Novembro de 2014, sete homens armados raptaram Fandessone Devaissone Ndeure, líder de segundo escalão de Chidocoe. Este foi torturado durante três dias numa base da Renamo e depois posto em liberdade.

No dia 27 do mesmo mês de Novembro de 2014, quatro homens armados raptaram o líder de segundo escalão de Nagulo, de nome Fernando David Ncueza. Esta deve ter sido a vítima mais brutalizada por aquelas milícias.

Conforme apuramos em Nkondedzi, localidade que visitamos ao longo da semana passada, “Fernando David Ncueza foi espancado até à exaustão e transportado com as mãos e os pés atados, como se faz com leitões e cabritos, com uma estaca a atravessar os membros”, contam testemunhas oculares que sublinham que este viria a ser solto, mas a sua vida virou de avesso porque vive apavorado e traumatizado.

Na senda das atrocidades, no dia 27 de Janeiro de 2015, por volta das 16 horas, quatro homens armados estabelecidos no povoado de Magalauande raptaram Mose Sustene Nguetse e, enquanto este estava em cativeiro, o seu celeiro foi assaltado. Depois mandaram-no de volta para casa.

No dia seguinte, 28 de Janeiro, as 22 horas, sete homens raptaram dois líderes do povoado de Mutuagalu (cabeça de cão). São eles Durege Razão Sole e Armindo José Almeiro que foram mantidos em cativeiro durante quatro meses.

A 28 de Setembro de 2015, um líder de segundo escalão do povoado de Ndande, conhecido por Camphete Eduene Chathina foi levado da sua casa e nunca mais regressou ao convício familiar. É tido como morto.

No mês de Outubro, dia 21, foi raptada uma líder comunitária de terceiro escalão, de nome Joaquina Donongue que nunca mais foi vista. Assume-se que tenha sido assassinada pelos seus algozes da Renamo.

Porque ninguém lhes fazia frente, as milícias da Renamo também raptaram pessoas singulares e influentes, como é o caso do comerciante Francisco Chamuachale, entre outros que conseguiram regressar vivos e outros de que nunca mais se ouviu falar.

MAIS BARBÁRIE

Referimos em parágrafos anteriores que no interior de Nkondedzi vivia-se um ambiente de “faz e desfaz que ninguém nos toca”, a ponto de a população acreditar que, de facto, a Renamo é toda e rainha por ali. Veja-se o estágio a que a situação tinha chegado.

Por exemplo, quando as autoridades do distrito de Moatize relataram que havia homens armados a atropelarem a lei e a ordem naquele distrito, o Comando Provincial mandou estabelecer uma pequena unidade policial por ali, que devia patrulhar a área, identificar e neutralizar os protagonistas daqueles actos.

Os agentes destacados chegaram ao local e se dirigiram aos locais de onde vinham os relatos de atrocidades. Uniformizados, armados e transportados em viaturas, foram abordando as populações com quem cruzavam nas vias. “Homens armados aqui? Nunca vimos. Devem estar lá mais adiante. Nas aldeias que estão para além daquelas montanhas”, diziam os populares.

Sem imaginar o que lhes espera, os agentes seguiram adiante e começaram a ser fustigados com balas pelas costas. Este quadro se repetiu várias vezes. Afinal, aqueles camponeses que conversavam tranquilamente nas bermas da estrada, nas machambas, nos mercados das aldeias, nas áreas de exploração, entre outros locais, vestidos a puros camponeses, civis e desprotegidos, que a polícia pretendia proteger a qualquer custo, eram os tais homens armados.

Outras tantas unidades foram sendo enviadas ao local e a estratégia mantinha-se a mesma. “Homens armados aqui? Nem sonhar! Mas ouvimos dizer que andam por ali naquelas árvores. Vão lá ver”. Mal a polícia virava as costas, eram regados com balas impiedosas.

Com as coisas colocadas desta maneira, foi realizado um trabalho de inteligência que permitiu perceber que havia informantes posicionados em Nkondedzi-sede que forneciam detalhes sobre o número de agentes, tipo de meios que transportavam, entre outros.

Com os meios a seu alcance, e porque a situação já escapava ao controlo das autoridades policiais de protecção e de intervenção rápida, foram accionadas unidades das Forças Armadas de Defesa de Moçambique (FADM) que neutralizaram os informantes posicionados em Nkondedzi e penetraram para Ndande, Mondjo e Cabongo sem pré-aviso.
Colhidos de surpresa com a presença dos militares do Estado, as milícias da Renamo iniciaram uma intensa troca de tiros que viria a culminar com a saída em debandada daqueles locais, levando consigo a população que os acobertava. Há relatos que apontam para a recuperação de bastante armamento, pesado inclusive, que era mantido em esconderijos naquelas bases.

Com medo do dia 1 de Março

O estabelecimento de unidades da Polícia da República de Moçambique (PRM) em Nkondedzi, localidade com 19 povoados, justificava-se pelo facto de não só ocorrerem sequestros, torturas aos opositores, como também porque havia relatos de estabelecimento de tribunais comunitários geridos por homens armados e até estruturas administrativas controladas por estes.

Daqueles 19 povoados, apenas cinco apresentavam sinais evidentes de stress devido à intensa actividade política e também criminosa dos homens da Renamo. Nos restantes locais, a vida continua numa boa. É importante realçar que Nkondedzi tem cerca de 31 mil habitantes e os cinco povoados problemáticos concentravam à volta de 10 mil habitantes.

Parte das estruturas e tribunais montados pela Renamo terão sido estabelecidas depois do anúncio dos resultados eleitorais e favorecidos pelos discursos do líder da Renamo, Afonso Dhlakama, o qual apregoa(ava) que vai governar seis províncias da região centro e norte a parte deste mês de março.

Estes pronunciamentos animaram ainda mais aquela população que vivia sob a liderança dos homens armados que, por seu turno, sempre apregoaram um ódio visceral pelas autoridades do Estado, com particular destaque para a PRM e FADM. Aliás, apuramos que alguns residentes de Nkondedzi assumem que Tete não é cidade para pisar, porque tem agentes da polícia pelas ruas. Fazem tudo no Malawi.

A ideia de que Afonso Dhlakama poderá governar a partir do dia 1 de Março foi tão propalada na província de Tete que alguns pais e encarregados de Educação, residentes na capital provincial, recearam levar os filhos à escola naquela data temendo eventuais tumultos.

No posto fronteiriço de Zóbwe, por exemplo, agentes ali destacados revelaram que o movimento de viaturas e até mesmo de peões cessou. “Poucas pessoas saíram à rua. Pior à noite”, contaram-nos. Entretanto, e como testemunhamos, não passou disso. A vida voltou à normalidade.

“Queremos regressar às nossas casas!”

Depois de percorrer a localidade de Nkondedzi, a nossa equipa de Reportagem deslocou-se ao centro de acolhimento criado espontaneamente em Kapise, no Malawi, mas a escassos metros da linha de fronteira com Moçambique. Aqui, a Organização das Nações Unidas para os Refugiados (ACNUR) afirma para todos os que chegam que estão concentradas cerca de 10 mil pessoas, mas que registadas de forma oficial andam por ali umas oito mil pessoas.

A oficial de campo da ACNUR, Elsie Mills-Tettey, impos uma série de regras que pareciam visar impedir a nossa visita, debalde. Até quis saber se o jornal domingo, por exemplo, era um órgão pró governamental ou não. Depois exigiu que as fotos e filmagens fossem feitas em ângulos que não permitissem ver quem está naquele campo.

Um dos dados que salta à vista é que os números de pessoas ali albergadas parecem não bater com a realidade. Dez mil ou até mesmo oito mil pessoas parecem demasiada gente para os presentes. Aliás, a administradora de Moatize, Maria José Torcida, também torce o nariz perante estes números e apela à necessidade de se fazer um registo conjunto daquela população.

Ao contrário do que Elsie Mills-Tettey esperava, foram aqueles deslocados que se aproximaram e pediram para serem entrevistadas ao que anuímos. Um deles apresentou-se como sendo Betinho, mas depois disse que podia ser tratado por Adelino, de 42 anos de idade, que disse que estava a organizar a sua vida e futuro em Nkondedzi, mas a situação virou do avesso e foi obrigado a abandonar tudo.

“Não tenho nenhum problema em voltar. Quero ir para casa. Mas, tenho algum receio em relação à presença da polícia e de militares. Só quero paz. É isso que a maior parte das pessoas que aqui estão querem. Paz. Eramos pessoas prósperas lá porque produzíamos feijão-boer e tínhamos dinheiro para viver tranquilamente. Hoje estamos aqui feitos mendigos e nossos filhos não podem ir à escola”.

Fassitone Paulo Chamuala também acercou-se de nós e pediu encarecidamente para dizer “vocês que são chefes, façam algo pela paz. Estamos muito mal aqui. Só nos dão milho, óleo e feijão para um mês. As condições de vida são precárias. Vivemos em cabanas quando temos casas e bens em Moçambique. Queremos regressar às nossas casas”.

Depois vieram muitos mais que não se importavam em ser fotografados e de falar para vários microfones que lhes eram colocados à boca pelas diferentes equipas de reportagem de órgãos nacionais que para ali se deslocaram.

Elsie Mills-Tettey queixa-se da falta de espaço para acolher mais deslocados, lamenta a falta de redes mosquiteiras e a proliferação de malária, a ameaça de doenças diarreicas por falta de higiene individual e colectiva.

Há delegados da Renamo entre os deslocados

Um dado que deixa qualquer um espantado no Centro de Kapise é que não há um único professor ou enfermeiro entre aquela população. Nem um para amostra. Quando se sabe que nas cinco povoações de onde aquela gente procede há escolas e unidades sanitárias. A própria oficial de campo da ACNUR, Elsie Mills-Tettey confirma esse dado.

O que apuramos de fontes que ali encontramos é que no meio daquela população se escondem delegados da Renamo cujos nomes nos foram fornecidos e aqui se seguem, sabendo-se que alguns destes são bastante violentos e terão sido os mentores de alguns actos relatados nesta Reportagem:
Texto de Jorge Rungo, Kapise, Malawi

Fonte: JORNAL DOMINGO – 06.03.2016

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