Espinhos da Micaia
Por Fernando Lima
Transportando para os Estados Unidos o debate local sobre as nacionalidades, Barack Obama, o putativo candidato a inquilino da Casa Branca, estaria agora a enfrentar um problema bicudo. Esconderia ele no fundo do baú o passaporte queniano, embaraçado pela sua paternidade africana? Ou manteria orgulhosamente o legado materno que lhe dá a “nacionalidade originária americana”?
Atalhando pelo absurdo, se Obama quisesse concorrer a presidente em Moçambique estava tramado. Mas Obama não é moçambicano e o seu país, apesar de ser um jovem de 232 anos (ou exactamente por causa disso)não está para entrar num debate esquisofrénico.
Aqui para as nossas paragens, a nacionalidade, mais propriamente a nacionalidade da nossa simpática Primeira Ministra levou à Procuradoria de Maputo três jornalistas que, esgrimindo o emaranhado legal produzido depois de 1975, permite questionar o que à partida se afigura como outro absurdo.
Eu sugeria ao tal procurador Otávio, se de facto quer levar com zelo a sua missão até ao fim, que chame às exíguas instalações da Procuradoria todos os deputados da defunta Assembleia Popular até 1990, mais os membros da Assembleia da República que aprovou a Constituição de 2004.
De caminho poderia também arrolar os membros do Comité Central da Frelimo que no Tofo, em 1975, aprovaram as primeiras leis do Moçambique, Estado independente.
Durante largos anos vivemos a inconstitucionalidade da desigualdade das mulheres perante o casamento, quando a lei mátria lhes reconhecia a igualdade.
Perante as inúmeras aberrações que se foram registando, incluindo o facto de moçambicanas serem colocadas na situação de apátridas, uma vez que nem sempre o casamento garante o acolhimento automático de uma nova nacionalidade, o legislador emendou depois a mão. Tardia e parcialmente.
Acabou a perda da nacionalidade, mas ao contrário dos moçambicanos, os homens, as moçambicanas não podiam dar a nacionalidade aos seus maridos se estes assim o pretendessem. Eu estava lá no parlamento quando a sra. Graça Machel, um dos nossos “ícones à esquerda” e habitualmente identificada com as causas femininas, concedeu que “nas nossas casas” nós sabemos quem é o chefe. Na minha casa não sou e espero bem que as minhas filhas batam bem o pé no chão para mandarem para o lixo mais este “deixa andar”.
Nas mesma linha de inquirições, o procurador Otávio devia ouvir aquele presidente que, antes do artigo 33 da nova constituição que permite mais que um passaporte aos moçambicanos, mandou distribuir passaportes moçambicanos no consulado de Pretória. O nosso magistrado maior ficou chocado ao aperceber-se do absurdo dos seus compatriotas “bicharem” na embaixada para obterem visto para visitarem a sua própria terra. Porque na defesa do pão, na defesa das suas famílias, dos seus interesses, tinham passaportes sul-africanos.
Tudo o resto é mais recente e mais mediático. Um dos jornalistas moçambicanos mais ortodoxos questionava estas semanas o absurdo de a uma senhora negra nascida em Tete serem levantadas dúvidas à sua nacionalidade.
Mas há uns anos atrás, o nosso compatriota Artur Vilanculos tinha a sua nacionalidade questionada porque tinha um passaporte americano. Sobretudo porque simpatizava com a Renamo. Logo os parâmetros de aferição de nacionalidade funcionam pelo crivo partidário. Não perguntei ao nosso mais velho Domingos Arouca se ainda tem um passaporte português. Mas isso não o torna menos moçambicano nem lhe retira os galões de ser o respeitado nacionalista que mais anos passou nas prisões do colonialismo. Esgrime-se a nacionalidade da Dra. Diogo por causa de uma casa. Mas umas semanas antes, por causa de uma outra casa, o moçambicaníssimo Eusébio da Silva Ferreira (que também tem sangue angolano) já era português.
Mesmo aqui ao lado, por causa destes absurdos, Kenneth Kaunda, o “pai da nacionalidade zambiana” não pode contestar as eleições presidenciais porque de repente se tinha transformado em malawino. Ele que nasceu no tempo da confederação das Rodésias e Niassalândia. O meu amigo de algumas décadas, Trevor Ncube, o actual proprietário do jornal Mail & Guardian teve que contestar a sua nacionalidade no Tribunal Supremo de Harare. Ele não gosta de Mugabe e Mugabe não gosta dele. Como este é mais forte e manipula a lei decidiu que Ncube era zambiano.
Ironicamente, o discurso fundamentalista das nossas paragens é idêntico ao discurso da extrema-direita europeia e dos seus grupos mais retrógrados e xenófobos.
Moral da estória. Para além de considerarmos a possibilidade de um passaporte moçambicano para o Barack Obama, pelo bom desempenho na actual campanha eleitoral americana, temos de encarar os nossos próprios debates com mais abertura, frontalidade e despreconceito. Para enterrarmos alguns dos fantasmas das nossas cabeças.
O procurador Otávio poderá concluir, sem grande margem de erro, que há muito mais esqueletos no armário que os três repórteres que lhe mandaram meter na ordem.
SAVANA – 16.05.2008
Retirado na sua íntegra do Mocambique para todos
Por Fernando Lima
Transportando para os Estados Unidos o debate local sobre as nacionalidades, Barack Obama, o putativo candidato a inquilino da Casa Branca, estaria agora a enfrentar um problema bicudo. Esconderia ele no fundo do baú o passaporte queniano, embaraçado pela sua paternidade africana? Ou manteria orgulhosamente o legado materno que lhe dá a “nacionalidade originária americana”?
Atalhando pelo absurdo, se Obama quisesse concorrer a presidente em Moçambique estava tramado. Mas Obama não é moçambicano e o seu país, apesar de ser um jovem de 232 anos (ou exactamente por causa disso)não está para entrar num debate esquisofrénico.
Aqui para as nossas paragens, a nacionalidade, mais propriamente a nacionalidade da nossa simpática Primeira Ministra levou à Procuradoria de Maputo três jornalistas que, esgrimindo o emaranhado legal produzido depois de 1975, permite questionar o que à partida se afigura como outro absurdo.
Eu sugeria ao tal procurador Otávio, se de facto quer levar com zelo a sua missão até ao fim, que chame às exíguas instalações da Procuradoria todos os deputados da defunta Assembleia Popular até 1990, mais os membros da Assembleia da República que aprovou a Constituição de 2004.
De caminho poderia também arrolar os membros do Comité Central da Frelimo que no Tofo, em 1975, aprovaram as primeiras leis do Moçambique, Estado independente.
Durante largos anos vivemos a inconstitucionalidade da desigualdade das mulheres perante o casamento, quando a lei mátria lhes reconhecia a igualdade.
Perante as inúmeras aberrações que se foram registando, incluindo o facto de moçambicanas serem colocadas na situação de apátridas, uma vez que nem sempre o casamento garante o acolhimento automático de uma nova nacionalidade, o legislador emendou depois a mão. Tardia e parcialmente.
Acabou a perda da nacionalidade, mas ao contrário dos moçambicanos, os homens, as moçambicanas não podiam dar a nacionalidade aos seus maridos se estes assim o pretendessem. Eu estava lá no parlamento quando a sra. Graça Machel, um dos nossos “ícones à esquerda” e habitualmente identificada com as causas femininas, concedeu que “nas nossas casas” nós sabemos quem é o chefe. Na minha casa não sou e espero bem que as minhas filhas batam bem o pé no chão para mandarem para o lixo mais este “deixa andar”.
Nas mesma linha de inquirições, o procurador Otávio devia ouvir aquele presidente que, antes do artigo 33 da nova constituição que permite mais que um passaporte aos moçambicanos, mandou distribuir passaportes moçambicanos no consulado de Pretória. O nosso magistrado maior ficou chocado ao aperceber-se do absurdo dos seus compatriotas “bicharem” na embaixada para obterem visto para visitarem a sua própria terra. Porque na defesa do pão, na defesa das suas famílias, dos seus interesses, tinham passaportes sul-africanos.
Tudo o resto é mais recente e mais mediático. Um dos jornalistas moçambicanos mais ortodoxos questionava estas semanas o absurdo de a uma senhora negra nascida em Tete serem levantadas dúvidas à sua nacionalidade.
Mas há uns anos atrás, o nosso compatriota Artur Vilanculos tinha a sua nacionalidade questionada porque tinha um passaporte americano. Sobretudo porque simpatizava com a Renamo. Logo os parâmetros de aferição de nacionalidade funcionam pelo crivo partidário. Não perguntei ao nosso mais velho Domingos Arouca se ainda tem um passaporte português. Mas isso não o torna menos moçambicano nem lhe retira os galões de ser o respeitado nacionalista que mais anos passou nas prisões do colonialismo. Esgrime-se a nacionalidade da Dra. Diogo por causa de uma casa. Mas umas semanas antes, por causa de uma outra casa, o moçambicaníssimo Eusébio da Silva Ferreira (que também tem sangue angolano) já era português.
Mesmo aqui ao lado, por causa destes absurdos, Kenneth Kaunda, o “pai da nacionalidade zambiana” não pode contestar as eleições presidenciais porque de repente se tinha transformado em malawino. Ele que nasceu no tempo da confederação das Rodésias e Niassalândia. O meu amigo de algumas décadas, Trevor Ncube, o actual proprietário do jornal Mail & Guardian teve que contestar a sua nacionalidade no Tribunal Supremo de Harare. Ele não gosta de Mugabe e Mugabe não gosta dele. Como este é mais forte e manipula a lei decidiu que Ncube era zambiano.
Ironicamente, o discurso fundamentalista das nossas paragens é idêntico ao discurso da extrema-direita europeia e dos seus grupos mais retrógrados e xenófobos.
Moral da estória. Para além de considerarmos a possibilidade de um passaporte moçambicano para o Barack Obama, pelo bom desempenho na actual campanha eleitoral americana, temos de encarar os nossos próprios debates com mais abertura, frontalidade e despreconceito. Para enterrarmos alguns dos fantasmas das nossas cabeças.
O procurador Otávio poderá concluir, sem grande margem de erro, que há muito mais esqueletos no armário que os três repórteres que lhe mandaram meter na ordem.
SAVANA – 16.05.2008
Retirado na sua íntegra do Mocambique para todos
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