sábado, novembro 05, 2016

Receita para um "jet-set" nacional

Por Mia Couto

Já vimos que, em Moçambique, não é preciso ser rico. O essencial é parecerrico. Entre parecer e ser vai menos que um passo, a diferença entre umtropeço e uma trapaça. 
No nosso caso, a aparência é que faz a essência. Daí que a empresa comecepela fachada, o empresário de sucesso comece pelo sucesso da sua viatura, afelicidade do casamento se faça pela dimensão da festa. A ocasião, diz-se, éque faz o negócio. E é aqui que entra o cenário dos ricos e candidatos aricos: a encenação do nosso "jet-set".

O "jet-set" como todos sabem é algo que ninguém sabe o que é. Mas reúne agente de luxo, a gente vazia que enche de vazio as colunas sociais. Ojet-set moçambicano está ainda no início. Aqui seguem umas dicas que,durante o próximo ano, ajudarão qualquer pelintra a candidatar-se a umjet-setista. Haja democracia! As sugestões são gratuitas e estão dispostasna forma de um pequeno manual por desordem alfabética: 

Anéis - São imprescindíveis. Fazem parte da montra. O princípio é: quem temboa aparência é bem aparentado. E quem tem bom parente está a meio caminhopara passar dos anéis do senhor à categoria de Senhor dos Anéis Ojet-setista nacional deve assemelhar-se a um verdadeiro Saturno, tais osanéis que rodeiam os seus dedos. A ideia é que quem passe nunca confunda ojet-setista com um magaíça*, um pobre, um coitado. Deve-se usar jóias dotipo matacão, ouros e pedras preciosas tão grandes que se poderiam chamar depenedos preciosos. A acompanhar a anelagem deve exibir-se um cordão de ouro,bem visível entre a camisa desabotoada.

Boas maneiras - Não se devem ter. Nem pensar. O bom estilo é agressivo, oarranhão, o grosseiro. Um tipo simpático, de modos afáveis e que se preocupacom os outros? Isso, só uma pessoa que necessita de aprovação da sociedade.O jet-setista nacional não precisa de aprovação de ninguém, já nasceuaprovado. Daí os seus ares de chefe, de gajo mandão, que olha o mundointeiro com superioridade de patrão. Pára o carro no meio da estradaatrapalhando o trânsito, fura a bicha**, passa à frente, pisa o cidadãoanónimo. Onde os outros devem esperar, o jet-setista aproveita para exibir asua condição de criatura especial. O jet-setista não espera: telefona. Emanda. Quando não desmanda.

Cabelo - O nosso jet-setista anda a reboque das modas dos outros. O que vemdos americanos: isso é que é bom. Espreita a MTV e fica deleitado com unsmoços cuja única tarefa na vida é fazer de conta que cantam. Os tipos sãofantásticos, nesses video-clips: nunca se lhes viu ligação alguma com otrabalho, circulam com viaturas a abarrotar de miúdas descascadas. A vida éfácil para esses meninos. De onde lhes virá o sustento? Pois esses queridosfazem questão em rapar o cabelo à moda militar, para demonstrar a suaagressividade contra um mundo que os excluiu mas que, ao que parece, lhesabriu a porta para uns tantos luxos. E esses andam de cabelo rapado. Porenquanto. 

Cerveja - A solidez do nosso matreco vem dos líquidos. O nosso candidato ajet-setista não simplesmente bebe. Ele tem de mostrar que bebe. Parece umreclame publicitário ambulante. Encontramos o nosso matreco de cerveja namão em casa, na rua, no automóvel, na casa de banho. As obsessões do matreconacional variam entre o copo e o corpo (os tipos ginasticam-se bem). Vazamcopos e enchem os corpos (de musculaças). As garrafas ou latas vazias sãodeitadas para o meio da rua. Deitar a lata no depósito do lixo é uma coisademasiado "educadinha". Boa educação é para os pobres. Bons modos são paraquem trabalha. Porque a malta da pesada não precisa de maneiras. Precisa degangs. Respeito? Isso o dinheiro não compra. Antes vale que os outros tenhammedo.

Chapéu - É fundamental. Mas o verdadeiro jet-setista não usa chapéu quandotodos os outros usam: ao sol. Eis a criatividade do matreco nacional: chapéuele usa na sombra, no interior das viaturas e sob o tecto das casas. Deveser um chapéu que dê nas vistas. Muito aconselhável é o chapéu de cowboy, àla Texana. Para mostrar a familiaridade do nosso matreco com a rudeza dosdomadores de cavalos. Com os que põe o planeta na ordem. Na sua ordem.

Cultura - O jet-setista não lê, não vai ao teatro. A única coisa que ele lêsão os rótulos de uíque. A única música que escuta são umas "rapadas ehip-hopadas" que ele generosamente emite da aparelhagem do automóvel paratoda a cidade. Os tipos da cultura são, no entender do matreco nacional, unsdesgraçados que nunca ficarão ricos. O segredo é o seguinte: o jet-setistanem precisa de estudar. Nem de ter Curriculum Vitae. Para quê? Ele não vaiconcorrer, os concursos é que vão ter com ele. E para abrir portas basta-lheo nome. O nome da família, entenda-se. 

Carros - O matreco nacional fica maluquinho com viaturas de luxo. É quaseuma tara sexual, uma espécie de droga legalmente autorizada. O carro não épara o nosso jet-setista um instrumento, um objecto. É uma divindade, ummeio de afirmação. Se pudesse o matreco levava o automóvel para a cama. E,de facto, o sonho mais erótico do nosso jet-setista não é com uma Mercedes.É, com um Mercedes. 

Fatos - Têm de ser de Itália. Para não correr o risco do investimento ser emvão, aconselha-se a usar o casaco com os rótulos de fora, não vá a origem daroupa passar despercebida. Um lencinho pode espreitar do bolso, a sugerirque outras coisas podem de lá sair.
 

Simplicidade - A simplicidade é um pecado mortal para a nossa matrecagem.Sobretudo, se se é filho de gente grande. Nesse caso, deve-se gastar à largae mostrar que isso de país pobre é para os outros. Porque eles (os meninosde boas famílias) exibem mais ostentação que os filhos dos verdadeiros ricosdos países verdadeiramente ricos. Afinal, ficamos independentes para quê?

Óculos escuros - Essenciais, haja ou não haja claridade. O style - ou emportuguês, o estilo - assim o exige. Devem ser usados em casa, no cinema,enfim, em tudo o que não bate o sol directo. O matreco deve dar a entenderque há uma luz especial que lhe vem de dentro da cabeça. Essa a razão dochapéu, mesmo na maior obscuridade.

Telemóvel - Ui, ui, ui! O celular ou telemóvel já faz parte do braço domatreco, é a sua mais superior extremidade inferior. A marca, o modelo, asluzinhas que acendem, os brilhantes, tudo isso conta. Mas importa,sobretudo, que o toque do celular seja audível a mais de 200 metros. Quem disse que o jet-setista não tem relação com a música clássica? Volume nomáximo, pelo aparelho passam os mais cultos trechos: Fur Elise de Beethoven,a Rapsódia Húngara de Franz Liszt, o Danúbio Azul de Strauss. No entanto, amelodia mais adequada para as condições higiénicas de Maputo é o Voo do Moscardo. Última sugestão: nunca desligue o telemóvel!

 
O que em outro lugaré uma prova de boa educação pode, em Moçambique, ser interpretado como umsinal de fraqueza. Em Conselho de Ministros, na confissão da Igreja, nofuneral do avô: mostre que nada é mais importante que as suas inadiáveiscomunicações. 
Você é que é o centro do universo

Nota: publicado em 2004 

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