Mais uma vez trago aqui um artigo de um dos meus cronistas mais favoritos. Deliciem, caros leitores do reflectindo sobre Mocambique
A talhe de foice
Por Machado da Graça
Neste nosso bizarro mundo político estamos a assistir a um fenómeno interessante: Por um lado, temos as duas principais figuras do Estado, o Presidente da República e o Presidente do Parlamento, a fazer análises políticas, de alguma forma auto-críticas, das razões que levaram às manifestações de Fevereiro e à onda de linchamentos a que continuamos a assistir.
Por outro lado temos uma quantidade de gente, na área do Poder (no Estado ou no partido Frelimo), a dizer uma série de disparates para justificar os mesmos acontecimentos, em que aparecem sempre, com destaque, as famosas mãos estranhas.
Segundo o Canal de Moçambique, Guebuza terá dito: “As manifestações que aconteceram em Maputo no passado dia 5 de Fevereiro e que certamente todos acompanhámos, e que alguns chamaram de greve e outros de tumultos sociais se devem ao facto de o povo estar cansado de sofrer e servem de lição para que se redobrem esforços na mitigação dos problemas de que padece o país..”
Por seu lado Eduardo Mulembué terá dito: “As questões relacionadas com a pobreza urbana têm recebido pouca atenção em Moçambique, embora a taxa de pobreza urbana seja elevada e a desigualdade urbana esteja a subir. Nos bairros de Maputo o desemprego, criminalidade e altos custos da alimentação, habitação e terra inibem os pobres de converterem o progresso na educação e saúde em rendimento e consumo melhorados. Num contexto onde o dinheiro é uma parte integrante da maioria das relações sociais, os mais destituídos tornam-se marginalizados sem ninguém a quem recorrer. A subida da pobreza urbana e desigualdade em Maputo causam também um impacto adverso nas relações vitais urbano-rurais e podem por em perigo a estabilidade política.”
Outras vozes, do lado da Frelimo, se fizeram igualmente ouvir. Uma delas foi a do antigo Ministro da Saúde, Dr. Fernando Vaz, que afirmou: “Só quem não olha muito profundamente para os problemas do povo é que pode ter fé que isto está bem. Nada disso. Na verdade nada está bem e o país vai mal. Se pretendermos explicar a génese do problema, veremos que não há um factor só para este tipo de manifestações. (...) Penso que os sociólogos já disseram tudo e avançaram com algumas ideias. Não há outra hipótese se não o governo olhar para as condições sociais das pessoas. Têm que se criar políticas sociais e para isso os governantes devem ter criatividade. Isto não é tarefa fácil e que se resolve do dia para a noite, com o pagamento de gasolina aos chapas. As manifestações são produto de um movimento espontâneo e não orquestrado. As pessoas reclamam porque não têm e nunca sabem quando as terão.
Como é óbvio não se trata de vozes de marginais irresponsáveis. Trata-se de pessoas que olham para os problemas sem os simplismos de quem nem sequer reconhece a existência de problemas quanto mais ter capacidade para encontrar soluções para esses problemas.
E aqui acabamos por encontrar um dilema que poderá estar na base de tudo isto: Por um lado o actual sistema político exige a existência de um partido forte que permita ganhar eleições e manter o Poder político para implementar estratégias e tentativas de solução.
Por outro lado a organização partidária da Frelimo foi destruída e transformada numa mera máquina de conquistar votos, seja lá como for. Sem consistência ideológica e sem quadros dedicados a uma causa que não seja o seu próprio enriquecimento pessoal. A reflexão política foi substituída pelo arrivismo, pela procura dos benefícios pessoais e pelo desprezo pelos problemas dos outros. Pelos problemas da maioria dos moçambicanos.
E, quando ouvimos comentários como os que se transcrevem acima, já estranhamos, já nos parecem coisas de um outro mundo há muito ultrapassado e esquecido.
Ao contrário dos primeiros anos da Independência, em que nos diziam para pensarmos e encontrarmos soluções, agora dizem-nos para não pensarmos muito e votarmos em quem nos dá camisolas, bonés ou pasta para os dentes. Mesmo que esses produtos cheguem ao país em contentores contendo contrabando para algumas figuras do partido.
Isto para além de haver locais onde, para ganhar as eleições, se expulsam os fiscais da oposição e se atulham as urnas com votos a favor do partido dirigente. E fique toda a gente impune apesar de estes dislates serem denunciados e provados.
A sensação que fica é que a direcção da Frelimo teve muito trabalho a rodear-se de gente que não faz ondas, obedece e cumpre o que lhe mandam, afastando assim as cabeças pensantes mais solidamente formadas em termos ideológicos.
Se tivéssemos uma oposição capaz eu diria que era tempo de a Frelimo passar um mandato ou dois fora do Poder para se voltar a encontrar e voltar a saber o que quer e como lá quer chegar.
Como não temos, não vejo solução a curto prazo. Sou francamente pessimista.
A terceira força não surgiu e, portanto, continuamos sem saber se devemos ficar na frigideira ou se devemos saltar fora e ir cair no fogo.
Só que, continuando as coisas assim, tenho a desagradável sensação de que vamos viver cada vez mais momentos de desassossego e violência no nosso dia-a-dia.
Sem que se veja a famosa luz ao fim do túnel...
SAVANA – 21.03.2008
A talhe de foice
Por Machado da Graça
Neste nosso bizarro mundo político estamos a assistir a um fenómeno interessante: Por um lado, temos as duas principais figuras do Estado, o Presidente da República e o Presidente do Parlamento, a fazer análises políticas, de alguma forma auto-críticas, das razões que levaram às manifestações de Fevereiro e à onda de linchamentos a que continuamos a assistir.
Por outro lado temos uma quantidade de gente, na área do Poder (no Estado ou no partido Frelimo), a dizer uma série de disparates para justificar os mesmos acontecimentos, em que aparecem sempre, com destaque, as famosas mãos estranhas.
Segundo o Canal de Moçambique, Guebuza terá dito: “As manifestações que aconteceram em Maputo no passado dia 5 de Fevereiro e que certamente todos acompanhámos, e que alguns chamaram de greve e outros de tumultos sociais se devem ao facto de o povo estar cansado de sofrer e servem de lição para que se redobrem esforços na mitigação dos problemas de que padece o país..”
Por seu lado Eduardo Mulembué terá dito: “As questões relacionadas com a pobreza urbana têm recebido pouca atenção em Moçambique, embora a taxa de pobreza urbana seja elevada e a desigualdade urbana esteja a subir. Nos bairros de Maputo o desemprego, criminalidade e altos custos da alimentação, habitação e terra inibem os pobres de converterem o progresso na educação e saúde em rendimento e consumo melhorados. Num contexto onde o dinheiro é uma parte integrante da maioria das relações sociais, os mais destituídos tornam-se marginalizados sem ninguém a quem recorrer. A subida da pobreza urbana e desigualdade em Maputo causam também um impacto adverso nas relações vitais urbano-rurais e podem por em perigo a estabilidade política.”
Outras vozes, do lado da Frelimo, se fizeram igualmente ouvir. Uma delas foi a do antigo Ministro da Saúde, Dr. Fernando Vaz, que afirmou: “Só quem não olha muito profundamente para os problemas do povo é que pode ter fé que isto está bem. Nada disso. Na verdade nada está bem e o país vai mal. Se pretendermos explicar a génese do problema, veremos que não há um factor só para este tipo de manifestações. (...) Penso que os sociólogos já disseram tudo e avançaram com algumas ideias. Não há outra hipótese se não o governo olhar para as condições sociais das pessoas. Têm que se criar políticas sociais e para isso os governantes devem ter criatividade. Isto não é tarefa fácil e que se resolve do dia para a noite, com o pagamento de gasolina aos chapas. As manifestações são produto de um movimento espontâneo e não orquestrado. As pessoas reclamam porque não têm e nunca sabem quando as terão.
Como é óbvio não se trata de vozes de marginais irresponsáveis. Trata-se de pessoas que olham para os problemas sem os simplismos de quem nem sequer reconhece a existência de problemas quanto mais ter capacidade para encontrar soluções para esses problemas.
E aqui acabamos por encontrar um dilema que poderá estar na base de tudo isto: Por um lado o actual sistema político exige a existência de um partido forte que permita ganhar eleições e manter o Poder político para implementar estratégias e tentativas de solução.
Por outro lado a organização partidária da Frelimo foi destruída e transformada numa mera máquina de conquistar votos, seja lá como for. Sem consistência ideológica e sem quadros dedicados a uma causa que não seja o seu próprio enriquecimento pessoal. A reflexão política foi substituída pelo arrivismo, pela procura dos benefícios pessoais e pelo desprezo pelos problemas dos outros. Pelos problemas da maioria dos moçambicanos.
E, quando ouvimos comentários como os que se transcrevem acima, já estranhamos, já nos parecem coisas de um outro mundo há muito ultrapassado e esquecido.
Ao contrário dos primeiros anos da Independência, em que nos diziam para pensarmos e encontrarmos soluções, agora dizem-nos para não pensarmos muito e votarmos em quem nos dá camisolas, bonés ou pasta para os dentes. Mesmo que esses produtos cheguem ao país em contentores contendo contrabando para algumas figuras do partido.
Isto para além de haver locais onde, para ganhar as eleições, se expulsam os fiscais da oposição e se atulham as urnas com votos a favor do partido dirigente. E fique toda a gente impune apesar de estes dislates serem denunciados e provados.
A sensação que fica é que a direcção da Frelimo teve muito trabalho a rodear-se de gente que não faz ondas, obedece e cumpre o que lhe mandam, afastando assim as cabeças pensantes mais solidamente formadas em termos ideológicos.
Se tivéssemos uma oposição capaz eu diria que era tempo de a Frelimo passar um mandato ou dois fora do Poder para se voltar a encontrar e voltar a saber o que quer e como lá quer chegar.
Como não temos, não vejo solução a curto prazo. Sou francamente pessimista.
A terceira força não surgiu e, portanto, continuamos sem saber se devemos ficar na frigideira ou se devemos saltar fora e ir cair no fogo.
Só que, continuando as coisas assim, tenho a desagradável sensação de que vamos viver cada vez mais momentos de desassossego e violência no nosso dia-a-dia.
Sem que se veja a famosa luz ao fim do túnel...
SAVANA – 21.03.2008
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