O escritor sueco Henning Mankell um dos romancistas mais lidos no mundo, um pé em Moçambique e outro na Suécia, concedeu uma entrevista exclusiva à revista francesa “Le Nouvel Observateur” (que aqui reproduzimos integralmente) e onde fala da sua querida África, dos seusenvolvimentos, do seu sogro, Ingmar Bergman, e do romance policial “O Chinês” que acaba de terminar, um olhar desapaixonado e muito crítico sobre o que, na sua óptica, se está a passar em Moçambique e no continente africano.Há mais de vinte anos que você vive metade do ano em Moçambique e a outra metade na Suécia.Gosta de dizer “Tenho um pé na neve e outro na areia”.
Nada me obrigava a partir para África: era uma escolha íntima. Aos 20 anos, quando era um jovem autor, tinha a nítida impressão de procurar um outro ponto de vista sobre o Mundo além do etnocentrismo europeu. Já faz muito tempo, em 1972. Desembarquei na Guiné-Bissau, na época ainda colónia portuguesa. Foi uma experiência iniciadora. É o mesmo desejo que me empurra sempre de regresso a África: para ter uma melhor perspectiva do Mundo. Digo muitas vezes que essa experiência africana fez de mim um melhor europeu. Isso explica-se muito facilmente. Esse distanciamento permite-me ver melhor o Mundo – quer se trate da minha mulher, do meu trabalho ou do que leio no jornal — e aperceber-me de forma lúcida tanto do seu funcionamento como das suas falhas. A persistente importância para a Europa da herança dos Lumière e da Revolução Francesa, mas também os problemas que se colocam ao nosso continente. O que aprendi em África permitiu-me tornar-me numa pessoa melhor, e, por isso, espero viver uma vida melhor. Graças a África, conheço melhor o Mundo.
Ocorre-lhe algum exemplo?
O romance que acabo de escrever chama-se “O Chinês”. Há já algum tempo que estou horrorizado por ver como é que os chineses se comportam em África. Parecem-me neo-colonizadores, o que para mim é ainda mais doloroso pelo facto de ter crescido com a ideia de que a China ajudava os países africanos a libertarem-se.E se escrevi este livro é porque sobre essas atitudes eu sei coisas que em geral ignoramos. Vi os chineses na construção, em Moçambique e noutros lugares em África. A China tem um problema de excesso de população rural. Os seus 200 milhões de camponeses não param de empobrecer, e um dia correm o risco de se revoltarem e de “tomar a Bastilha”, ou seja, de se oporem ao Partido Comunista. Os dirigentes chineses prevêem portanto exportar o problema e transplantar para África os camponeses mais pobres (nada menos que 4 milhões!) para que cultivem a terra. É uma forma terrível de colonização, e é exactamente o que fizeram os portugueses antigamente em Moçambique. Pode-se sujeitar os pobres a tudo. E é claro, os dirigentes de Moçambique tirarão proveito financeiro dessa política chinesa. Nos anos 1960, durante a minha adolescência, a China gozava de um imenso prestígio. Mao tinha conseguido alimentar 1 bilião de habitantes. O meu próximo livro tem, pois, como objecto a minha própria desilusão. Há cinco anos, a China fez um donativo a Moçambique, e aproveitou-se disso para enviar a sua própria mão-de-obra. Pouco tempo depois correu um rumor segundo o qual os trabalhadores chineses maltratavam os seus homólogos africanos já instalados, mas o escândalo foi abafado. Esse incidente foi o “clic” para mim: lancei-me em pesquisas na China e em África que resultaram neste livro.
Então não é o petróleo que atrai os chineses em Moçambique?
Sim, não há petróleo, mas há outras matérias-primas que despertam o seu interesse. Há falta de tudo na China, principalmente de matérias-primas. Ela também vê nisso um meio de resolver os seus problemas exportando em massa para o mercado africano. Se apanharem o avião de Joanesburgo para Harare (Zimbabwe), podem constatar que quase todos os passageiros são chineses. Eles estão a criar uma situação sobre a qual os africanos não têm nenhum controlo. Da mesma maneira enviam para a Argélia milhares de operários, que muitas vezes eram prisioneiros na China. Isso também muitas vezes ignoramos. Este livro, que abraça muitas questões, será publicado simultaneamente em vários países em Maio próximo, dois meses antes dos Jogos Olímpicos de Pequim.
Você diz: “Sabemos como morrem os africanos, mas nunca como vivem”.
Cada vez que regresso à Europa e assisto ao Telejornal, só vejo imagens de morte. Mas os africanos também vivem: amam, lutam, sonham, trabalham. E nunca sabemos nada sobre isso. Tento, portanto, oferecer uma outra imagem de África diferente daquela; maioritariamente negativa, veiculada pelos media a quem culpo bastante. Porquê uma tal situação? Hoje, a África não representa grande coisa para nós, económica e politicamente. Mas estamos enganados: neste contexto de globalização, não podemos fazer de conta que a África não existe. É um imenso mal-entendido. E espero que os jovens acabem por se revoltar contra essa situação.
A Europa e a África
Quais os deveres da Europa para com a África?
Antes de mais deveríamos fazer com que o africano fosse tão bem alimentado como o resto do mundo. Se perguntamos onde se encontra o centro da Europa, alguns responderão Bruxelas (centro político da União Europeia), Londres (centro económico e financeiro), Paris ou Berlim (na qualidade de centros culturais). Para mim, o centro simbólico da Europa é a pequena ilha de Lampedusa, ao sul da Itália. Porque é aí que encalham diariamente os cadáveres de imigrantes clandestinos vindos de África. Acho isso repugnante (dégeulasse – em francês no texto). E esse escândalo obriga-nos a perguntarmo-nos: podemos aceitar um mundo assim? Não há outro modo de prever a imigração? Tenho um sonho simples: construir uma ponte entre Marrocos e a Espanha. Sabemos bem que precisamos desses imigrantes.
Os imigrantes e o seu destino desempenham um papel importante nas suas peças de teatro e nos seus romances.
É a imigração que faz a Europa. A história europeia é um assunto de imigração e de emigração. Há um século, muitos suecos partiram para os Estados Unidos em busca de uma vida melhor, e encontraram-na. Nós temos a memória curta! Os europeus conservadores têm medo que os imigrantes lhes venham roubar o seu trabalho. Balelas! Eles vêm fazer o trabalho que nós não queremos fazer. Essa hostilidade corre o risco de nos causar problemas: daqui a vinte anos, quando formos muito velhos, quem se irá ocupar de nós? Coloco, portanto, muita esperança na juventude actual, porque a nossa geração perdeu a batalha. Vivemos num mundo terrível, em que as pessoas não tiram nenhuma lição da sua memória e da sua experiência. Pergunto-me o que diria Voltaire se visse a Europa de hoje. Acho que exclamaria: “É mais do que tempo de recomeçar as Luzes!”.
Quando volta à Suécia como é que vê a evolução do seu país? O modelo sueco, esse paraíso social-democrata de Olof Palme, é um mito ou uma realidade?
Continuo a acreditar que a Suécia é uma sociedade justa, comparada com outras. Mas estou consciente que é confrontada com problemas que não existiam há quinze anos. Assistimos a uma evolução perigosa de Estado-providência. Claro que é preciso proceder a reformas, mas muitas delas têm efeitos negativos. Estou, portanto, inquieto quanto ao futuro. Mesmo se ainda hoje os imigrantes que chegam à Suécia se creiam no paraíso, em comparação com a sua vida anterior. Mas é preciso estar atento para não perder o espírito de solidariedade, que é o fundamento da nossa sociedade. É preciso estar pronto a lutar para conservá-lo.
Mas nos seus romances policiais a Suécia não tem nada de paraíso.
Esse paraíso é um mito criado por vocês e não por nós. São os estrangeiros que ficaram fascinados por esse “modelo sueco” e... pelo loiro das suecas! A Suécia não é responsável pela mitologia que a envolve. E naturalmente ela conhece a sua dose de problemas, nomeadamente aquele de que falo nos meus livros: a relação entre democracia e sistema judicial. Se a justiça funciona mal, a democracia não pode funcionar. A Suécia conheceu vários escândalos, que levam a pensar que a corrupção e o crime organizado estão a desenvolver-se. Constatamos mesmo tendências racistas, com certeza muito menos pronunciadas que noutros países. Os suecos seguiram com atenção os tumultos nos subúrbios franceses. Ainda não chegámos a esse ponto, mas corremos o risco de isso acontecer se não formos vigilantes. Porque a Suécia tem o mesmo tipo de subúrbios, exclusivamente povoados de imigrantes pobres, e onde o sistema educativo é sacrificado. Há algumas semanas foi organizada uma viagem para permitir a adolescentes dos subúrbios da Estocolmo filhos da imigração descobrirem a zona suburbana parisiense. No regresso, todos eles disseram estar mais bem servidos! Mas é preciso estar atento. O maior problema é um problema de pobreza, ao mesmo tempo económica e cultural. A Europa inteira sofre hoje de ignorância. Precisamos de uma nova era das Luzes, uma nova Renascença. Estou assustado pela falta de cultura dos adolescentes. Um jovem sueco, interrogado recentemente sobre as causas da Segunda Guerra Mundial respondeu que Hitler e Estaline disputavam entre si Marilyn Monroe! É muito engraçado, mas é também consternador... Os jovens não compreendem que a democracia pode ser ameaçada por um regresso do fascismo.
Em que é que os seus romances policiais são um bom espelho da sociedade sueca?
Creio que o recurso a uma intriga criminal é um dos mais antigos processos literários. Basta pensar em “Medeia”, uma peça escrita há 2.500 anos, em que a heroína mata os seus filhos por ciúme. É um policial em que não me reconheço! Quando me perguntam qual é a melhor intriga policial jamais escrita, respondo sempre “Macbeth”. O crime como espelho da sociedade não data portanto de Edgar Poe ou de Conan Doyle. Um crime, um conflito mortal actua como revelador dos pensamentos das personagens, das reacções da sociedade. E, depois, todo o mundo gosta de ler um bom policial! A intriga criminal é um bom meio de captar a atenção do leitor, de seduzir os jovens dos subúrbios, por exemplo. Na Suécia, tenho muitos leitores entre os imigrantes recentes. E estou orgulhoso disso, porque isso significa que os meus livros os ajudam a aprender o sueco. Estou convencido que, dentro de vinte ou trinta anos, um autor de romances policiais acabará por receber o prémio Nobel. É um género de tal maneira vivo! E quem ousaria negar que um autor como John le Carré nos ensina coisas importantes sobre o nosso mundo?
Teatro em Moçambique
A sua vida literária é muito variada: escreve romances policiais, romances “literários”, peças de teatro, livros para crianças. Para além disso, é editor e director de teatro em África. Como é que consegue conciliar todas essas actividades?
Trabalho muito! Um dia só tem vinte e quatro horas, e é impossível pedir emprestado cinco anos de vida a alguém... Portanto, a única solução é decidir o que “não” vamos fazer. Por exemplo, se diariamente vir uma hora a menos de televisão que o resto das pessoas, isso far-me-á ganhar 365 horas por ano, o que deixa tempo para fazer muitas outras coisas. Um escritor deve amar todos os seus livros com o mesmo amor, como um pai ama os seus filhos. Não pode renegar nenhum. E creio profundamente que todos os meus livros têm um ar de família.
Definir-se-ia como um escritor comprometido?
Sim! Para mim, é uma evidência. Quando me levanto de manhã, sei que me vou encontrar num mundo do qual não posso abstrair. Por exemplo: hoje, estamos a falar de literatura, enquanto que há no mundo milhões de crianças que nunca terão a possibilidade de aprender a ler e a escrever. Para eles, um livro não é nada. É terrível. Mas o mais terrível é que teríamos podido remediar esse problema há anos. Há dois ou três anos, uma organização britânica, creio, avaliou o custo de uma erradicação completa do analfabetismo. Isso seria muito caro, mas não mais do que o que gastamos anualmente em comida para gatos e para cães... Isso revolta-me, pensar que milhões de crianças jamais conhecerão essa maravilhosa experiência que é a leitura. O analfabetismo é uma epidemia ao mesmo nível que a SIDA.
Em Maputo, você é encenador do teatro Avenida. Qual é o seu repertório?
Neste momento, estou a montar “Um eléctrico chamado Desejo” de Tennessee Williams. Mantenho o cenário de Nova Orleães, mas transponho a acção para o seio de uma família negra, em 1955. A estreia terá lugar a 3 de Fevereiro. Acontece-me encenar tragédias gregas, mas como 75% dos espectadores não sabem ler nem escrever, não se pode impor-lhes intrigas demasiado ligadas a uma outra tradição cultural. Eu poderia muito bem montar “Hamlet”: dispomos dos actores apropriados. Mas o público tem necessidade de conhecer a sua própria história. Aí está porque é que escrevo muitas das peças que encenamos.
Livros preferidos
No seu romance “Profundidades”, publicado esta semana em França, como em toda a sua obra, as personagens são, muitas vezes, depressivas. Você pertence a essa tradição escandinava da melancolia e da ansiedade, de Strindberg a Hamsun?
Se quer literatura verdadeiramente melancólica, veja em Portugal! Não estou certo de que a melancolia seja um traço dominante da cultura sueca ou escandinava. É um mito propagado pelos filmes do meu sogro, Ingmar Bergman. Ele dizia muitas vezes, a brincar, que tudo isso era culpa dele! Mas existe uma melancolia inerente à Europa que procura hoje uma nova identidade.
De que é que falava com Bergman?
Nós éramos muito chegados, muito cúmplices. Nos últimos anos, eu era uma das raras pessoas com as quais ele mantinha contacto. Falávamos muito, a maioria das vezes de música. Pode-se falar de música de mil maneiras diferentes. Ele tinha um pequeno cinema só para ele. Devemos ter visto juntos uns 150 filmes: tanto clássicos mudos como filmes recentes. Era sempre apaixonante escutar os seus comentários. Era o primeiro leitor das minhas peças. Faz-me muita falta.
Ocorre-lhe alguma lembrança?
Ele era muito feliz pelo facto de eu, como ele, amar “A Hora do Lobo”, um dos seus filmes menos conhecidos, menos amados. Acho que representava para ele o irmão que nunca teve. A última vez que o vi foi algumas horas antes da sua morte. Eu sabia que ele estava moribundo. E de facto, ele morreu à hora do lobo, entre as 4 e 5 da manhã, à hora, segundo se diz, em que as pessoas nascem ou morrem.
A música desempenha um papel importante na sua vida.
Sonho sempre em escrever como tocava Charlie Parker. Nos seus solos, ele sabia sempre onde ia, e era justamente isso que lhe permitia improvisar. Aprendi muito sobre a escrita graças ao Bird, Coltrane, mas também a Bach. Eles foram uma inspiração em matéria de técnica literária. Para mim, escutar música é sempre uma fonte de reflexão.
Quais os três livros que levaria para uma ilha deserta?
Acabámos de celebrar o cinquentenário do prémio Nobel de Camus. Foi um autor muito importante para mim quando era jovem. E ainda o releio às vezes, menos pelas histórias do que pela sua forma de contá-las. O que seria do mundo sem os escritores franceses? Um dos que mais influenciou a minha vida foi Balzac. Já faz pelo menos trinta anos que ele me acompanha. O seu talento para descrever a sociedade continua única e inigualável. Em matéria de prosa narrativa, ele é o mestre absoluto. Da sua obra eu escolheria “os Camponeses”. E levaria sem dúvida “Cem Anos de Solidão” de Gabriel Garcia Marquez, um livro fundamental. E se queremos compreender o que é ser Humano, levaria “Crime e Castigo” de Dostoïevski. Finalmente, se tenho direito a um quarto livro, escrito por um autor vivo, escolheria “Sorrisos de lobo” de Zadie Smith, que me parece marcar o início de uma obra.
* entrevista conduzida por Gilles Anquetil e François Armanet. Tradução, entre títulos da responsabilidade do
SAVANA – 18.01.2008
Retirado do Mocambique para todos.
segunda-feira, janeiro 28, 2008
Entrevista com o escritor Henning Mankell*
Subscrever:
Enviar feedback (Atom)
Sem comentários:
Enviar um comentário