domingo, março 06, 2016

Há cada vez mais “consciência política e participação cívica” em Moçambique (Na íntegra)

São da geração pós-independência. Estudaram fenómenos como a imigração ou os sistemas políticos. Iniciamos hoje uma série de entrevistas a cinco pensadores de países africanos de expressão portuguesa para reflectir sobre as suas áreas. Começamos em Moçambique, com o politólogo Jaime Macuane.

José Jaime Macuane, 42 anos, politólogo, professor na Universidade Eduardo Mondlane, tem escrito sobre sociedade civil, governação, corrupção e outros temas. É associado da consultora MAP, centrada na área de gestão pública, governação e desenvolvimento, que tem como um dos clientes o governo. Doutorado pelo Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro, da Universidade Cândido Mendes, é autor de vários artigos científicos e do livroGovernos Locais em Moçambique: desafios de Capacitação Institucional, em co-autoria com Bernhard Weimer (2003).

No seu escritório em Maputo, falou dos desafios da política moçambicana. A conversa tinha como objectivo reflectir para além do quotidiano e do momento político. Mas em pano de fundo estiveram os rescaldos do conflito partidário da Frelimo e da Renamo entre 2012 e 2014, que levou o líder da Renamo Afonso Dhlakama, a regressar à antiga base do partido na zona da Gorongosa e a anunciar o fim do Acordo de Paz de 1992. Embora tenha sido anunciado o fim do conflito, as eleições gerais de 2014 foram contestadas por Dhlakama. Recentemente, o líder da Renamo ameaçou, aliás, governar à força a partir de 1 de Março as seis províncias onde ganhou.
O conflito acordou fantasmas antigos, sobretudo da guerra civil de 16 anos a seguir à independência, desencadeada pelos dois partidos, quando Moçambique adoptou um sistema marxista-leninista liderado pela Frelimo. As primeiras eleições multipartidárias aconteceram em 1994, vencidas por Joaquim Chissano, que ficou dois mandatos até 2004. Sucedeu-lhe Armando Guebuza e, em Outubro de 2014, Filipe Nyusi assumiu o cargo, também pela Frelimo.

Em Moçambique houve descolonização ou transferência de poder?


Acho que houve descolonização, mas depende de como a entendemos. O principal desafio depois da independência foi transformar o estado naqueles elementos mais repressivos representantes do regime colonial - pelo menos foi o que esteve na retórica política pós-independência. Transformar em termos da sua função e do seu sentido instrumental, ou seja: o estado está voltado para quê? O estado pós-independência tinha como foco, por razões óbvias, ser instrumento de materialização da auto-determinação dos moçambicanos. Isso na perspectiva política. Mas se formos olhar para o seu sentido formal em termos da sua organização, e mesmo da divisão administrativa, a estrutura que herdámos, em grande medida, tem muito da concepção que existia no estado colonial. Houve também continuidade, pelo menos nos elementos formais. De tal forma que alguns dispositivos normativos como o código penal e mesmo as leis da noção pública só foram reformadas nos últimos 10/20 anos – só no ano passado substituímos o nosso código penal e só há cinco/seis anos substituímos o nosso código comercial, e tantas outras leis de administração pública, finanças.  
As várias identidades regionais forjam a identidade moçambicana. Nessa luta de libertação e processo de independência como é que os partidos trabalharam a questão da identidade nacional para mobilizar a sociedade civil?
Esta questão da identidade e diversidade sempre foi muito tensa. Se olharmos para a história, a Frelimo surge de movimentos que tinham algum cunho regional. Daí que a questão da unidade nacional seja um assunto recorrente, importava justamente construir a identidade nacional moçambicana num contexto de diversidade. Essa ideia foi e tem sido muito presente no discurso político mas tenho sérias dúvidas de que tenha vingado quando olhamos para o país hoje e para o padrão de voto no contexto democrático. Ela vingou aparentemente num certo tempo durante o mono-partidarismo. Sempre foi um discurso de elite e do topo para a base. Havia esta ideia de matar a tribo para construir a nação – matar ou reduzir o sentimento de identidade de tribo a favor de uma identidade nacional mais ampla. Isto não deu certo, tentou-se eliminar um sentimento que nem precisa de ser necessariamente contrário à ideia de construção de uma nação. Quando eclode a guerra civil e começa o período multipartidário fomos vendo que esta ideia não desapareceu, ela volta e hoje vemos de forma tão clara que se reflecte no padrão de votos. Quando olhamos para o eleitor tipo Frelimo é mais forte na zona Sul, em parte da zona Norte, em Cabo Delgado, por exemplo, berço da luta armada; a Renamo tem mais apoio na zona centro e na zona Norte. O MDM (Movimento Democrático de Moçambique) tem os seus nichos, mas é um pouco mais ambíguo – tem algum apoio na zona centro e também alguma simpatia do eleitor urbano. É necessário entender que o eleitor urbano tem grande mobilidade, não se poder dizer se ele representa alguma região ou grupo étnico. Quando olhamos para o discurso político, mesmo dentro de alguns partidos como a Frelimo, sentimos que há um sentimento localista crescente. Este discurso pode ter sido aparentemente bem-sucedido numa certa fase da história, mas não foi completamente debelado – o erro foi tentar dicotomizar um sentimento de identidade local, com um sentimento de identidade nacional. Pode ser possível construir alguma identidade nacional sem ter que contrapô-la ou eliminar uma identidade local e o que estamos a sentir hoje, e até certo ponto chega a ser motivo de tensão, é justamente isto.
Fonte: Público.Pt – 01.03.2016

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