Em entrevista ao “O
País”, a professora catedrática e docente na Universidade Eduardo Mondlane e
Universidade Pedagógica, Hildizina Dias, deixa o seu parecer perante o
estágio actual do ensino no país.
Qual é o
entendimento que tem de fracasso escolar? Em que circunstâncias estamos perante
uma situação de fracasso escolar?
Estamos perante
uma situação de fracasso escolar quando o aluno não consegue atingir as metas
que foram definidas, ou seja, quando o aluno reprova.
Um ou
vários? Em que percentagens?
Percentagem acima
de 50 por cento de reprovações, nós já ficamos muito preocupados, porque,
quando o aluno começa as aulas, o que nós queremos é que ele seja aprovado. Mas
em determinados contextos, até 30 por cento de reprovações já nos preocupa, 20
por cento já nos preocupa também. Aos 50 por cento, questionamos: o que se
passa? É alarmante, e o professor deve ficar muito preocupado. Mesmo num teste
simples, se metade da turma não consegue ter positiva, o professor deve parar
e pensar no que estará a acontecer e analisar se o problema está com o
estudante ou com o professor. A intenção do professor é que 100 por cento dos
alunos sejam aprovados. Esse é o nosso ideal.
E o que
determina esse fracasso escolar?
São muitas
variáveis. Podemos encontrar variáveis ligadas ao professor, ao aluno, ao
programa, às metodologias, aos materiais didácticos, às próprias condições de
ensino e aprendizagem, infra-estruturas, acervo bibliográfico, e até podemos
sair da escola, porque o fracasso escolar não é só uma questão de problemas
que acontecem na sala de aula, na escola, mas também fora dela. E aí
olharíamos para o acompanhamento dos pais, a própria sociedade, porque a
escola não é uma organização isolada, ela está no meio da sociedade e é
afectada por tudo o que acontece fora.
Doutora
Hildizina enfatiza, também, nos seus estudos, a questão das desigualdades sociolinguísticas.
Como é que se constroem essas desigualdades?
As desigualdades
estão fora da escola. Elas vêm da sociedade. São desigualdades provocadas, por
um lado, por diferenças sociais. Em Moçambique, temos várias classes sociais e
a nossa escola tem um currículo que vai privilegiar as classes dominantes,
aquelas que são mais elevadas. Isso acontece não só no nosso país, mas em todo
o mundo. Quem faz o currículo são especialistas que, normalmente, pertencem a
essas classes e priorizam isso.
Isso para
dizer que, de alguma forma, o currículo é também um instrumento reprodutor das
desigualdades no país?
É. No país e fora
dele, porque esta questão de reprodução social, reprodução cultural, vem sendo
estudada desde os anos 60. Se nós não tínhamos este fenómeno após a
Independência, é porque estávamos num regime socialista. Mas neste momento em
que estamos no neoliberalismo, já podemos notar que temos classes sociais bem
definidas, classe mais baixa, classe dos operários e camponeses, classe média,
classe elevada. E o que vemos também é que o filho do doutor tem mais
possibilidades de ser doutor, como o pai, e o filho do carpinteiro, se calhar,
venha a ser carpinteiro também.
Isso é
uma projecção do futuro ou essa afirmação parte de um estudo já feito
actualmente e que traduz que todas as oportunidades vão a favor das elites já
bem posicionadas no mercado?
São conclusões
dos estudos que eu faço e de uma realidade que assistimos todos os dias. Se nós
olharmos, por exemplo, para as questões do fracasso escolar e se perguntarmos
quem está a fracassar mais, sabemos que são as crianças das classes mais baixas,
porque são estas que neste momento não estão a ter muita oportunidade de ter
acesso ao conhecimento.
Até que
ponto o ensino bilingue é uma resposta positiva à diversidade
sociolinguística?
É uma estratégia
curricular muito boa, porque, se nós temos de incluir todos, temos também de
pensar em todos aqueles meninos que falam uma língua diferente da língua
oficial em Moçambique. O que eu não gosto de ver neste momento é o que está a
acontecer na prática, não é a política.
E onde é
que se distanciam a política e a prática?
Há muita coisa
que devia ser mais cuidada. A educação bilingue já foi introduzida. Temos os
professores, que estão a dar aulas, têm alguns livros, mas é necessário cuidar
muito mais da formação de professores para o ensino bilingue. Por que o professor
de ensino bilingue, aquele que vai ensinar changana, macua, maconde, tem
apenas um curso de capacitação? Qual é a diferença? Ele é apenas falante nativo
da língua, por isso, julgo que há uma série de cuidados que é preciso ter.
Não
estando o ensino na língua local estruturado, qual é o grau de sucesso
esperado?
Talvez seja o que
está a acontecer. O que eu estou a ver, de acordo com a pesquisa que efectuámos
há cerca de três anos, notamos que a criança que tem problemas de leitura e
escrita na língua portuguesa, também tem os mesmos problemas na sua língua
local. Até quando começamos a estudar as redacções das crianças, ficamos surpreendidos.
Por que elas não conseguem escrever em nyanja? Vamos comparar as duas redacções,
português-nyanja, português-changana, e encontramos os mesmos problemas de
leitura e escrita.
Introduziu-se
há alguns anos as passagens semi-automáticas no ensino primário, amplamente
criticadas por vários intervenientes. Qual era o
objectivo deste modelo de ensino?
Em termos
teóricos, a aprovação semi-automática surge no âmbito da avaliação formativa,
que nós fazemos ao longo do ano. Podemos fazer também em forma de testes. É
aquela que nós fazemos todos os dias e vemos se o nosso aluno está bem ou não,
para que não cheguemos aos exames e nos surpreendamos. Portanto, dentro do
ciclo, a pessoa não reprova. Em termos teóricos, é o que nós temos de melhor.
Quais
foram os pecados deste modelo e em que medida contribuiu para o insucesso
escolar?
O problema é que
viemos aplicar uma política curricular que não está adequada às condições que
nós temos no ensino básico. Esta política pode ser aplicada em escolas mais
pequenas, numa turma de 15, 20 a 25 alunos no máximo, onde é possível fazer
análise das necessidades de cada aluno. O que acontece é que nós estamos a
aplicar a aprovação semi-automática numa turma de 80.
As
reprovações em massa no ano passado foram atribuídas pelo Governo a diferentes
intervenientes: professores, alunos, pais. Na sua óptica, como é que explica
esta realidade? São todos culpados ou há alguns mais culpados que os outros?
O que mais me
preocupa é pensar como é que estão estes jovens? O que é que está a ser feito
para eles recuperarem as matérias todas. Porque ainda não ouvi onde é que eles
falharam nos exames, por exemplo. Em segundo lugar, ver o que os alunos
responderam, onde é que eles falharam mais. Com
amostras significativas, podemos chegar a uma conclusão generalizada.
Faz parte
dos académicos que defendem o uso das tecnologias de informação nas salas de
aula. Entretanto, o Ministério da Educação e Desenvolvimento Humano pretende
criar um diploma ministerial que limita o uso dos celulares pelos alunos e
professores nas salas de aula. Como é que entende esta medida no processo de
aprendizagem? Até que ponto as tecnologias podem ser um problema ou uma
vantagem?
Eu gostaria,
também, de entender por que está a proibir-se o uso dos telefones. Eu julgo
que o Ministério tenha feito um estudo para chegar à conclusão de criar um
documento neste sentido. Eu só posso dar a minha opinião. Considero que o
celular pode ser um meio de ensino e aprendizagem. Agora, cabe ao professor, de
forma muito criativa, usar aquele celular para o ensino e aprendizagem. O professor
é que deve controlar isso. Se o Ministério decidiu confiscar os celulares, tudo
bem, mas vamos criar estratégias de ensino motivadoras. Porque se eles hoje
não têm celulares, podem dormir durante a aula, podem desenhar, porque o problema
para mim não é o celular, é a motivação. É tarefa do professor criar
estratégias motivacionais para estes adolescentes.
Passando
para o Ensino Superior no país, quais são os seus desafios?
Penso que o
grande desafio são as tecnologias de informação. Entrarmos em todo este mundo,
em toda esta sociedade tecnológica, sociedade de comunicação, que é muito
importante; novas tecnologias de ensino e aprendizagem, infra-estruturas
adequadas ao ensino. Termos laboratórios, acervos bibliográficos actualizados.
Mudança de metodologias de ensino e aprendizagem, investigação e produção de
conhecimento.
O Governo
deseja que 75% dos docentes universitários sejam detentores de graus de mestrado
ou doutoramento. Até que ponto serão suficientes para salvaguardar a qualidade
e quem os vai formar?
Nós vamos
formá-los, nós estamos a formar. É certo que, em algumas áreas, ainda é
necessário mandarmos os nossos estudantes para fora, porque ainda não temos
algumas especialidades no país. Mas nas que já tivermos doutores internamente,
vamos formar. Estamos a trabalhar nesse desafio.
Fonte: O País – 01.04.2016
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