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quinta-feira, agosto 14, 2014

A PERVERSIDADE DO INSTRUMENTO DA “LEI DE AMNISTIA”

Por  Alfredo Manhiça 

Durante o período de cerca de doze ou treze anos, a contar a partir da realização das primeiras eleições multipartidárias, em Outubro de 1994, Moçambique serviu de único exemplo de Estado da África subsaariana que, a seguir a uma longa guerra civil, tinha conseguido restabelecer o estado de paz, graças a um acordo político rigorosamente observado e respeitado por ambos ex-beligerantes; o único país da região onde os ressentimentos e o desejo de vingança (que em muitos outros países do subcontinente têm estado à base das violações dos acordos de paz) tinham sido dominados.
Juntamente com outros nove ou dez países da região, Moçambique servia também de modelo de sucesso do processo de democratização, introduzido na alvorada da década Noventa.   De facto, a pérola do Índico, além das eleições de 94, tinha realizado em períodos regulares, duas subsequentes eleições gerais substancialmente consideradas justas e livres, segundo os critérios universalmente consensuais e, além disso, o primeiro presidente da República democraticamente eleito tinha renunciado – contrariamente a muitos outros chefes de Estado da África negra - a manobra da revisão constitucional que lhe teria permitido concorrer para o terceiro mandato.

Todavia, como os túmulos que por fora estão decorados de flores, enquanto por dentro acumulam a podridão e o seu cheiro infernal, a boa imagem que Moçambique e os moçambicanos vendiam para o exterior era contraposta por eloquentes injustiças cometidas contra todos aqueles que tinham sido os verdadeiros vítimas do conflito armados dos dezasseis anos. A estratégia adoptada pelos mediadores de paz de Roma, os quais privilegiaram a abordagem que conduzia a um acordo político, sem passar pela responsabilização dos crimes arbitrariamente cometidos em nome da guerra, acabou premiando aqueles que, em nome de combate aos “bandidos armados”, tinham, sistematicamente, mandado fuzilar os próprios opositores políticos nas praças públicas e confiscado as suas propriedades, e aqueles que, em nome da “luta contra o comunismo”, tinham saqueado e carbonizado inteiras aldeias e povoações, obrigando seus habitantes a viver como prisioneiros nas bases militares ou a refugiar-se nos países confinantes.
O preço que custou a Moçambique a hora de ser o país africano exemplar na resolução de conflitos internos foi, portanto, pago exclusivamente pelos vítimas inocentes da luta pelo poder político entre a Frelimo e a Renamo. Em contrapartida, os dividendos continuam a ser canalizados unicamente às classes dirigentes destas duas formações políticas. De facto, já que o Acordo Geral de Paz (AGP) não previa nem a responsabilização pelos crimes de guerra, nem pelos crimes contra a humanidades cometidos pelos beligerantes, e nem previa a compensação às vítimas dos abusos e excessos de uns  e de outros, a maior parte das populações que vivia nas zonas de fogo cruzado continuou na penúria mesmo depois do cessar fogo e restabelecimento da ordem política porque não tinha nem meios nem forças suficientes para reconstruir o próprio património.  Contrariamente, as classes dirigentes valendo-se do estado de paz, do bom nome que o país tinha conquistado, das posições que ocupavam na administração pública, e do património público sob a sua administração, criou e acumulou riqueza privada, desinteressando-se sempre mais do bem comum e desprezando as críticas populares.
A mão militar que combateu a guerra dos dezasseis anos, tanto para conquistar o poder (Renamo), como para conserva-lo (Frelimo) tinha sido recrutada maioritariamente nas zonas de fogo cruzado e entre as famílias pobres das regiões periféricas. Os filhos e descendentes dos dirigentes políticos e das elites económicas do país estavam nos Colégios e Universidades ocidentais a fazer a carreira académica. Terminada a guerra civil a maior parte dos combatentes foram desmobilizados e devolvidos à casa paterna. Enquanto os filhos dos dirigentes regressavam das Universidades ocidentais para herdar a riqueza que, graças ao estado de guerra, os seus progenitores tinham facilmente adquirido e acumulado, os guerrilheiros desmobilizados regressavam à casa para herdar a condição miserável na qual o estado de guerra tinha deixado os seus progenitores. Estes jovens ex-guerilheiros não podiam, nem sequer, recorrer ao mercado de trabalho porque a única profissão que tinham aprendido nos anos de guerra  era assassinar e fazer guerra. E, as empresas públicas e privadas criadas depois do AGP não precisam de ninguém com esta especialidade.
Examinando o conceituado documento dos cinco pontos – AGP; Defesa e Segurança; Processos Eleitorais; Questões Económicas e Despartidarização do Aparelho de Estado – que a Renamo enviou ao Gabinete do Primeiro Ministro, Alberto Vaquina, no dia 22 de Outubro de 2012, solicitando a abertura de um diálogo entre o governo da Frelimo e a Renamo, e cuja recusa ou manobra dilatória, da parte da Frelimo, provocou o reinício das hostilidades, poder-se-ia concluir que depois de vinte anos da assinatura do AGP, a Renamo deu-se conta que as negociações de Roma, que tinham sido conduzidas de modo a premiar os mentores da guerra de ambas partes, tinham acabado premiando unicamente os da Frelimo. Daí a necessidade de una renegociação. A classe dirigente do partido Frelimo, que pensava ter já conseguido apoderar-se da totalidade das vantagens do Acordo, tentou inutilmente recorrer à força das armas para desanuviar as exigências da Renamo.
Reeditando a situação criada pelas negociações de Roma em 1992, as negociações do Centro de Conferências “Joaquim Chissano” (CCJC) terminaram com o consenso para submeter à Assembleia da República (AR) um projeto de “Lei de Amnistia” que, mais uma vez, irá premiar os mentores da guerra e ignorar, por completo, os seus mais direitos vítimas. A perversidade do instrumento da “Lei de Amnistia” consiste no seu paradoxo de proteger, por um lado, os autores de crimes de guerra e de crimes contra a humanidade e, abandonar, por outro lado, os vítimas à própria sorte. De facto, a guerra dos quinze meses, embora nunca tenha sido oficialmente reconhecida como tal, além da destruição de muitos bens materiais, ceifou muitas vidas humanas e semeou muitas viúvas e órfãos. A recusa do governo de reconhecer e declarar o estado de guerra fez sim que muitos dos soldados que tombaram a perseguir os homens armados da Renamo fossem negados um funeral digno e o acompanhamento pelas suas famílias e amigos.
A “Lei de Amnistia” é cruel enquanto ela declara oficialmente que não será feita nenhuma justiça aos vítimas inocentes da guerra dos quinze meses e, em contrapartida, assegura proteção e prémio àqueles que para reivindicar a parte a eles atribuída pelo AGP não se importaram de sacrificar a vida de muitos inocentes no troço da EN1 que liga o Rio Save e a localidade de Muxùngué e, em muitos outros pontos do país. De facto, alguns dos reivindicadores – graças ao derramamento de sangue dos inocentes - já começaram a receber os profícuos prémios resultantes da guerra dos quinze meses: para acomodar os interesses da Renamo, o Secretariado Técnico da Administração Estatal (STAE) foi obrigado a recrutar três mil novos membros que custarão aos cofres do Estado 1, 8 biliões de meticais. Na mesma ótica, o acordo obtido nas negociações do CCJC sobre a “Integração das Forças residuais da Renamo nas Forças Armadas e na Polícia” ou a “sua reintegração  económica e social” também visa fundamentalmente, premiar os mentores da guerras dos quinze meses. 
Aparentemente, o instrumento da “Lei de Amnistia” si apresenta como se tivesse sido desenhado para garantir a integridade física e a reintegração na vida pública de Afonso Dhlakama e dos membros do braço armado da Renamo que estão ainda algures nas matas de Gorongosa. Na verdade, o instrumento foi concebido também, e sobretudo, para proteger e irresponsabilizar o presidente da República, Armando Guebuza, o seu executivo e a AR das violações constitucionais por eles cometidas, e da negligência e incompetência por eles demonstradas na questão do novo diferendo com a Renamo
Não obstante a documentação histórica tenha já começado a associar a origem da guerra dos quinze meses com as reivindicações da Renamo formuladas em cinco pontos no documento apresentado ao Gabinete do Primeiro-Ministro, Alberto Vaquina, no dia 22 de Outubro de 2012, na verdade, os restantes quatro pontos forma incluídos posteriormente, resultantes da degeneração de uma única reivindicação que não recebeu acolhimento no fórum da AR: a solicitação da revisão do pacote eleitoral.
Em conformidade com a natureza e as dinâmicas dos sistemas democráticos, solicitando a revisão da Lei Eleitoral, a Renamo estava no pleno e legítimo exercício do seu direito de iniciativa legislativa, enquanto partido de oposição com maior representação na AR. Da parte sua, o Governo e a bancada maioritária da Frelimo que nos precedentes pleitos eleitorais se tinham servido da Lei contestada e de outros instrumentos para viciar o processo eleitoral e influenciar os resultados a seu favor, temendo que a revisão pudesse dificultar a manobra necessária para garantir a manutenção do controlo do poder político, só viriam a aceitar a votação em Parlamento da revisão reivindicada pela Renamo depois do derramamento de sangue de muitos cidadãos, em consequência dos confrontos entre as Forças de Defesa e Segurança (FDS) e os homens armados da Renamo.
Despudoradamente, o presidente da República e presidente do partido no poder, Armando Guebuza, colhendo a ocasião a ele dada pelas reivindicações da Renamo, procurou (sem sucessos) assassinar Dhlakama para depois, presume-se, suprimir a Renamo do cenário político e instaurar um regime autocrático, construído sobre o fundamento de um partido hegemónico, a Frelimo. Os alicerces desta agenda tinham sido já lançados através dum processo progressivo do esvaziamento dos princípios e das regras democráticas, controlo submisso da AR e castramento do sistema judiciário. A tentativa de livrar-se do obstáculo constituído pela Renamo e seu líder, Dhlakama, provocou a intensificação das campanhas militares da Renamo na região centro do país e, o presidente Guebuza não hesitou nem sacrificar a sorte daqueles que ele tinha jurado tutelar, nem empregar enormes recursos económicos para a compra do material bélico, sem a necessária autorização do Parlamento.
Estas são as instituições e as pessoas concretas que são direitos responsáveis pela guerra dos quinze meses que, agora, serão premiadas pelo instrumento da “Lei de Amnistia”.
Se até aqui faltasse matéria para provar que as Instituições públicas moçambicanas estão – não ao serviço da nação – mas dos   interesses da classe dirigente do partido no poder, a “Lei de Amnistia” proporciona provas evidentes: a presidente da AR, Verónica Macamo, que, para sanar as violações constitucionais cometidas pelo presidente da República e seu executivo, sabe convocar, em menos de 24 horas uma “sessão específica para debater a proposta de ‘Lei de Amnistia’ submetida pelo presidente da República, foi a mesma que impediu o acolhimento, no fórum da AR, da solicitação da Renamo sobre a revisão da Lei eleitoral, constringindo, dessa forma, a este partido a recorrer ao uso da força para fazer valar o próprio direito. O presidente da República e presidente do partido no poder, Armando Guebuza, não obstante o seu título de “Visionário”, só autorizou o seu partido a votar o novo pacote eleitoral e a aceitar a “revisão da Política Nacional de Defesa” quando o que estava em causa era salvaguardar os interesses próprios e os do próprio partido. Não foi capaz de aviar tempestivamente uma estratégia política capaz de evitar o derramamento do sangue do povo.
Receio que o instrumento da “Lei de Amnistia” (o qual não toma em consideração a situação dos vítimas da guerra dos quinze meses), seja mais uma prova daquela verdade que sempre recusei-me a aceitar, segundo a qual, na sua política externa na África negra – a qual visa fundamentalmente procurar matéria prima para alimentar as próprias indústrias – as potências ocidentais privilegiam a estratégia da promoção e financiamento de conflitos armados por procuração (prox wars) de tipo tribal, étnico, ideológico, religioso ou de natureza económico, porque as classes dirigentes africanas, além da incapacidade de determinar o valor real dos recursos naturais dos seus países, são também culturalmente incapazes de atribuir um valor moral objectivo à vida dos seus cidadãos. O valor da vida de todos e de cada um dos cidadãos da África negra é determinado unicamente em função dos interesses do chefe.



                                                                                                                                                                  Alfredo Manhiça 

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