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domingo, janeiro 30, 2011

A olho nu *

Por Tomas Vieira Mario

Nos últimos tempos, nomeadamente a partir do último semestre de 2010, membros do Governo (Conselho de Ministros) e titulares de cargos governamentais a outros níveis, incluindo a nível provincial, têm-se desdobrado em declarações públicas, que procuram questionar, senão mesmo, desmentir informações documentadas de outras instituições governamentais, sobre a incidência da pobreza no País.

O fenómeno, no mínimo estranho, começou timidamente, através de apelos `a não “auto-flagelação”, assim qualificada qualquer atitude de crítica ou de auto-crítica a situações negativas ou em reconhecimento de insucessos de alguma política ou programa governamental. Atitudes críticas podem ainda ser consideradas como falta de… “auto-estima”, pervertendo-se o real sentido desta expressão, tão cara ao discurso reabilitador do Presidente Armando Guebuza.

O tom viria a assumir um contínuo crescendo, quando, em Outubro de 2010, o Ministério da Planificação e Desenvolvimento (MPD) divulga o Relatório de Avaliação da Pobreza, produzido com base nos dados do Inquérito ao Orçamento Familiar (IOF) 2008/2009 realizado pelo Instituto Nacional de Estatística (INE). De acordo com a lei que o cria, o INE é uma instituição pública autónoma, especializada na produção e difusão da informação estatística oficial do País, tutelada pelo Conselho de Ministros. Por resolução, este Órgão delegou no Ministro da Planificação e Desenvolvimento o exercício dessa tutela administrativa.

A maior conclusão que se tira dos dados recolhidos pelo IOF 2008/2009, é que, nos cinco anos a que o mesmo diz respeito (2004-2008) os pobres ficaram mais pobres, sobretudo na zona centro, onde a incidência da pobreza aumentou em 14,2 por cento, e no sul em 8,2 por cento.

De acordo com o documento, as três províncias do centro de Moçambique, nomeadamente, Zambézia, Sofala e Manica, ficaram 20 por cento mais pobres. A última consequência é que a pobreza em Moçambique mantêm-se, em média, nos 54 por cento- a mesma percentagem em que ela se encontrava em 2004. No PARPA II (2005-2009) o governo tinha fixado o objectivo de reduzir a incidência da pobreza até 45 por cento em 2009. Os dados de incidência da pobreza obtidos com base nos dados do último IOF mostram, assim, que o PARPA II ficou bem aquém dessa meta. Visto que esta meta estava em consonância com metas estabelecidas a nível continental e global, significa que o Pais registou atrasos quase irrecuperáveis em relação `as da NEPAD e aos Objectivos do Desenvolvimento do Milénio (ODM).

O que avalia o IOF?

O IOF 2008/2009 ê uma pesquisa por amostragem conduzida pelo INE, que abrangeu 10,832 agregados familiares de todo o país, com objectivo de medir o nível e estrutura das despesas e receitas. Para além deste objectivo central, o inquérito recolheu também características sócio-económicas e demográficas dos agregados familiares com a finalidade de obter os indicadores das condições de vida da população, tais como acesso `a educação, saúde, emprego, habitação, água, saneamento, segurança humana, entre outros (INE, 2010), onde o significado de “acesso” não é apenas o simples “chegar”, mas chegar e encontrar respostas satisfatórias `as suas solicitações (OMS, 2004). Estes indicadores de condições de vida (como posse de bicicleta, rádio, etc.), visam, segundo o INE, medir outras características e dimensões da pobreza, que, ao contrário do indicador incidência da pobreza, não têm metas definidas no PARPA.

Os IOF são realizados regularmente de 5 em 5 anos e o anterior inquérito desta natureza foi realizado em 2002/3, sendo por isso, possível estabelecer a comparação dos seus resultados, acompanhando a evolução de vários indicadores ao longo do tempo. O resultado mais importante do IOF de 2002/3 (então denominado simplesmente Inquerido aos Agregados Familiares –IAF) mostrava que os índices da pobreza haviam baixado significativamente, de 69 por cento para 54 por cento, entre 1987 e 2003.

Uma vez que várias análises foram já feitas, incluindo por especialistas, sustentadas em dados detalhados dos resultados do IOF, não nos vamos ocupar de tais dados, remetendo os interessados para a página da Internet to INE ( www.ine.gov.mz/inqueritos_dir/iaf/.) e de outras entidades do Governo e várias instituições de pesquisa.

Ataque ao mensageiro

Os resultados do indicador “incidência da pobreza” apurados a partir dos dados do IOF 2008/9, trazem-nos certamente uma realidade duríssima, com a qual nenhum Governo se poderia, em consciência, conformar. Sobretudo porque o Governo levantou ao mais alto possível o estandarte do combate a pobreza, no seu discurso político, no período coberto pelo inquérito. E o termo terá mesmo de ser “inconformismo” – não em relação aos dados apresentados pelo inquérito em si ou ao indicador “incidência da pobreza”, mas em relação `a realidade que eles representam, no “terreno” - pois o inconformismo, diferente da mera negação, impele-nos a acção.

Ora, longe de actos de inconformismo activo contra o status quo, o que nos parece prevalecer, desde Outubro de 2010, é uma sucessão de penosos esforços, por parte de altos signatários do Governo, de procurar, a todo o custo, invalidar os resultados do IOF, relativamente aos prevalecentes altos índices de pobreza e, quiçá, desacreditar o próprio INE!

Foram nessa direcção, declarações de membros do Governo ao Parlamento e, de seguida, repetidas, cá fora, por deputados do mais alto órgão legislativo do Pais: recorde-se, a propósito, a postura de alguns deputados participantes num debate recente, sobre os resultados do IOF, promovido no programa “Estado da Nação”, da STV, que procuraram a todo o custo, “invalidar” os dados divulgados pelo MPD, com o argumento de que existem evidências em contrário, visíveis… a olho nu.

Na entrevista que concedeu `a STV no dia 30 de Dezembro, o Primeiro-Ministro persistiu na linha da negação: quando o jornalista Francisco Manjate polidamente lhe perguntou como “explicava os dados do IOF”, a resposta do PM foi, (sic): Esta é uma pergunta que deve ser feita aos inquiridores. Conhecendo, o PM, e muito bem, o processo do IOF, é obvio que recorreu `a figura dos “inquiridores” (agentes anónimos e inimputáveis), para, aparentemente, lançar recados políticos ao Órgão Executivo Central do Sistema Estatístico Nacional, tal como o INE é definido na lei : Estava consumada a velha máxima: a culpa é do mensageiro!

E este tom culpabilizante terá ficado mais patente nas declarações seguintes, do Primeiro-Ministro, (Sic): “Estamos a discutir a nível do próprio Instituto Nacional de Estatística a forma como as questões estão a ser formuladas, como estamos a medir a pobreza”. A seguir, o PM recorre a “evidências” a olho nu dizendo: “A realidade mostra que há avanços significativos no nosso país, mas como é que não conseguimos medir esses avanços? Como é que hoje temos gente com mais calçado, com mais roupa, com alimentação melhorada (...), mas vamos apresentar um número que diz justamente o contrário? Não é possível, para um cidadão comum, dizer que Moçambique está mais pobre”.

Naturalmente que os instrumentos e metodologias de avaliação das condições de vida da população podem ser discutidos e alterados e, segundo largamente noticiado pelos órgãos de comunicação social, o INE tem realizado seminários com os utilizadores da informação estatística, incluindo os Ministérios, para discutir estes aspectos antes dos lançamentos dos inquéritos. Uma tal revisão poderia, inclusivamente, ir no sentido da inclusão, nos indicadores do novo PARPA, de bens duráveis, como bicicletas, rádios, telemóveis, etc., os quais, apesar de várias vezes mencionados por representantes do Governo como “evidências” de sucesso na luta contra a pobreza, repte-se, não fazem parte das metas do PARPA II, ora avaliado.

Seja como for, importará sublinhar que o IOF é um instrumento internacional baseado em metodologias de reputada fiabilidade, utilizado em vários países do mundo e em organizações regionais e de cooperação multilateral. Basta mencionar, como exemplos, o Banco Mundial, a União Europeia e o Mercosul, o Fundo das Nações Unidas para a População (FUNUAP), entre outros. O IOF é por isso útil para comparar a situação entre países e diferentes regiões.

De resto, os dados do IOF já haviam sido, de uma forma ou de outra, antecipados por várias outras pesquisas recentes sobre a situação e evolução da pobreza em Moçambique, incluindo pesquisas baseadas em dados estatisticamente representativos, como pesquisas qualitativas, através de estudos de caso e reportagens narrativas (Inquérito de Indicadores Múltiplos (MICS) 2008, UNICEF; Castel-Branco et al, 2010; Antonio Francisco, 2010; Canguara e Hanlon, 2010, entre outros).

Mais interessante ainda: o nosso Governo regozijou-se com o IAF de 2002/2003, quando os resultados do inquérito, baseado na mesma metodologia, indicaram a significativa redução da pobreza, de 69 para 54 por cento, entre 1983 e 2003:Quid iuris?

Ora, nesta mesma senda, tivemos, e com ainda maior veemência, o Governador de Inhambane, Agostinho Trinta, a insurgir-se contra o Secretariado Técnico de Segurança Alimentar (SETSAN), cujos dados indicam que 45 mil pessoas estão a passar fome nesta Província. O SETSAN é uma instituição técnica (como alias o próprio nome indica) tutelada pelo Ministério da Agricultura. “É uma invenção do SETSAN”, afirma, peremptório, o governante, em plena conferência de imprensa por si convocada. (vide Magazine Independente, edição de 12 de Janeiro de 2011).

Nas palavras do Governador Trinta, o SETSAN anda a “inventar mentiras para atrair parceiros de financiamento…” (!) Não há muito tempo, um antecessor do Governador Trinta, Lazaro Vicente, negara que houvesse fome em Inhambane, tendo recomendado a população a… comer mangas e...rezar. Sem mais. Parece um anátema, lançando contra Inhambane!

Ora, quer o INE, quer o SETSAN, são instituições sólidas, prestigiadas por estudos e pesquisas do maior rigor científico e de padrão internacional. O INE, em particular, dirigido por uma vasta equipa de técnicos experientes, tem inclusivamente sido solicitado a prestar assistência técnica a organismos congéneres dos países africanos membros da Comunidade dos Países da Língua Portuguesa (CPLP) e ao nosso poderoso vizinho, África do Sul, como alias foi recentemente reportado na comunicação social.

Surge-nos, por isso, como profundamente inquietante, que o Governo, ante uma realidade que é adversa, não só a si, mas a totalidade dos moçambicanos e dos seus parceiros, opte, como alvo fácil, por insurgir-se publicamente contra sólidas instituições técnicas sob sua própria tutela, negando a validade científica dos resultados dos seus inquéritos. É, amiúde, na confusão (deliberada ou não) entre a mensagem e o mensageiro, que se descredibilizam, desmotivam e marginalizam altos quadros técnicos nacionais, culminando, isso, no puro desmantelamento de instituições sólidas, a prazo.

Repetimos que o argumento da recusa das evidências estatísticas, com recurso a pretensas “evidências” a olho nu, relativamente a um maior acesso a bens duráveis, não só é frágil como, sobretudo, é irrelevante, como referência de base para a formulação de políticas públicas, nomeadamente de combate `a pobreza.

Senão vejamos: Maputo é certamente uma das mais ricas cidades africanas, onde se constroem mansões e condomínios de luxo e centros comerciais de nível internacional e onde circulam luxuosos veículos de alta cilindrada. Mesmo entre as camadas de poucos recursos, nota-se o aumento do número de veículos privados, casas de cimento nos subúrbios, etc. Tudo… a olho nu. E no entanto, foi nesta mesma cidade onde ocorreram manifestações populares contra a pobreza, em Fevereiro de 2008 e Setembro de 2010. Em que ficamos?

* In “O Pais”, edição de 17 de Janeiro de 2011

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