INTERPRETAR A NAÇÃO
Mesmo aqui, porém, o mais fácil é gritar corrupção do que realmente procurar desenvolver uma atitude mais crítica. O que torna estas ligações perigosas (e vergonhosas) possível não é apenas a ganância individual. É um emaranhado de relações em que estamos todos envolvidos ao nível do quotidiano e que nos dizem o que realmente é moralmente correcto. Não é possível combater corrupção que seja quando o nosso sentido moral nos diz que a nossa primeira obrigação é perante os nossos amigos, familiares, correligionários,
partido, etc., mesmo que isso implique a contravenção das leis. É por isso que tenho também feito uma cruzada pessoal contra o discurso anti-corrupção, pois ele afasta-nos do que é essencial. Não há nada de cultural nesta concepção da moral. Há, isso sim, uma reacção conjuntural à experiência política que desde sempre – começando pelo período colonial – sempre nos definiu como súbditos e não cidadãos, para usar a distinção útil feita pelo intelectual ugandês Mahmood Mamdani. A Frelimo gloriosa não mudou esta situação. O actual sistema político também ainda não conseguiu mexer com esta situação. Temos um enorme déficit de cidadania que deveria ser o principal alvo da reflexão crítica.
Nestas circunstâncias, o que tem acontecido é que temos gente que circula pelos meios de comunicação de massas com discursos amuados. Esses discursos procuram em ideias abstractas o sustento moral de que necessitam para ter impacto na sociedade. Só que para essas ideias abstractas terem realmente impacto seria necessário converter a sociedade moralmente para que deixe de dar sustento à moral que considera a lei um empecilho. Estranhamente, algumas das pessoas que veiculam este tipo de discursos receberam a sua formação intelectual em meios marxistas. Referem-se, por exemplo, ao conceito de hegemonia de Antonio Gramsci mais no sentido de acusar os que têm ideias diferentes das deles de serem intelectuais orgânicos que defendem o status quo. Se lessem Gramsci com mais atenção haviam de se dar conta de que ele procurava nas contradições (em bom jeito marxista) do discurso hegemónico a abertura para a crítica social. Dois bons exemplos recentes do que Gramsci tinha em mente foram os comentários críticos de Carlos Nuno Castel-Branco em relação à pobreza – quando ele interpelou a legitimidade do discurso de combate à pobreza face às políticas económicas seguidas – e Mia Couto num texto sobre a detenção dum portador de passaporte moçambicano na Suazilândia com avultadas quantias de dinheiro – quando ele perguntou se a má imagem que o país adquiria lá fora se coadunava com o interesse político de promoção da auto-estima. Este tipo de interpelações abre espaço para discussão e isso é bom.
O lado trágico da nossa situação é que as ideias abstractas não têm quem as possa transportar no nosso quotidiano e isto pelas mesmas razões que mataram a construcção do socialismo no país. Sem classe operária para fazer a revolução e equipados apenas dum partido de vanguarda as possibilidades de revolução estavam desde o início condenadas ao fracasso. Quem, no Moçambique de hoje, pode ser o portador duma revolução de valores? Não quero ser pessimista em quadra festiva, mas também confesso que não vejo muitas opções. Na Europa as revoluções e o sindicalismo funcionaram porque havia fábricas onde um bom número de pessoas já trabalhava em fortes condições de organização. Curiosamente, a fragilidade do movimento sindical hoje em dia é, em parte, resultado da erosão deste tipo de organização. No Irão quem fez a revolução foram os comerciantes lá nos bazares; eles queriam maior segurança de contracto, previsibilidade nos negócios, etc. e, por isso, criaram o espaço social para que o discurso moral dos mullahs tivesse campo fértil. No Brasil foi uma classe média emergente e à procura de afirmação num contexto social esclerocisado que levou Lula ao poder. No nosso país o único potencial de mudança moral encontra-se no aparelho de Estado, sobretudo nos escalões médios e inferiores. Enquanto, porém, for possível sacar o máximo de todo o tipo de gente – cidadãos, chefes, comerciantes, doadores, etc. – este pessoal não terá, suponho, nenhum verdadeiro incentivo para mudar seja o que for.
Uma parte do sucesso do MDM deveu-se em minha opinião, também em parte, ao potencial que ele tinha de mobilização deste sector da nossa sociedade. Não conseguiu fazê-lo bem porque ao invés de articular o sentido moral deste grupo com potenciais ideias abstractas – que nunca chegaram a ficar claras – preferiu hostilizá-lo como instrumento do partido no poder. Esta hostilização, aliada ao discurso revanchista, regionalista e triunfalista de alguns dos seus membros acabou alienando uma potencial força de mudança que cerrou fileiras em torno da manutenção do diabo já conhecido.
Esta é, portanto, a nação do nosso Estado. Na medida em que este Estado cria espaço para a instrumentalização da desordem em benefício dos nossos interesses imediatos está mesmo bom. Reclama apenas aquele que não consegue uma posição a partir da qual ele próprio iria instrumentalizar a desordem a seu favor. Este é, no fundo, o sabor amargo que fica quando se percorre a crítica no nosso país. Temos muitos missionários, mas ninguém para converter. Crítica não é revelação de nenhuma verdade transcendal, nem descoberta de valores universais. Crítica é interpretação da ideia que temos do país face aquilo que é feito em nome desse país. Os valores abstractos aos quais apelamos quando fazemos a interpretação estão em conflito muito grande com a nossa conduta no quotidiano. Lembra o Evangelho de João, versículos 7:53-8:11, onde se relata a história dos que queriam apedrejar a mulher adúltera e a interpelação de Jesus ao seu sentido moral: estariam eles próprios livres de pecado? Quem dentre nós está?
Fonte: Jornal Notícias – 23.12.2010
Quanto ao MDM algo tenho que descordar com Elísio Macamo. Não tenho conhecimento nem alguma vez senti que o MDM tem hostilizado os funcionários públicos. Se há crítica que o partido no poder usa os funcionários e instituições públicos para fins partidários, é apenas uma realidade e que deve ser denunciada por todos os partidos e a sociedade civil se é que queremos construir um Estado de Direito Democrático.
ResponderEliminarTambém não tenho alguma ideia de algum discurso regionalista no MDM a não ser que se confunda com crítica à prática regionalista do partido no poder. O que realmente está em falta no MDM e aliar o discurso de Mocambique para todos à prática. Nisso tenho me batido, pois o MDM tem que ter uma visão diferente quanto à nacão moçambicana. E concordo com Sérgio Machava, no seu artigo
Por uma leitura sócio‐histórica da etnicidade em Moçambique
no capítulo: “É preciso matar a tribo para construir a nação”
Também concordo com a crítica feita por Noé Nhantumbo em Fevereiro último no seu artigo O PESO DAS ETNIAS E O PODER POLÍTICO;
Quanto ao triunfalismo concordo com Elísio Macamo, mas o que aconteceu com muitos foi de o triunfalismo não ter sido apenas um discurso mas que estavam certos que o MDM conseguiria um bom número de deputados. O sentimento triunfalista de muitos prejudicou em parte ao MDM. Mas o mais que prejudicou ao MDM foi o golpe executado pela CNE e CC, quase ao estilo Côte d’Ivoire.
Visto, passa,
ResponderEliminarZicomo
Digo, artigo excelente este.
ResponderEliminarZicomo
Eu tambem nunca senti o MDM regionalista, alias sendo de Maputo e residente na India actualmente, senti maior abertura do MDM "recem formado" e consideracao , do que o partido no poder,
ResponderEliminarPode ser que a "consideracao e abertura" seja pelo facto do MDM ser recem formado, mas achei mais jovem, mais moderno e menos "burocratico", e muito mais amistoso que o partido no poder, em quem uma vez acreditei.
Por outro lado tambem, o artigos 3 do Macamo aponta para a uma forma "nossa" de estar na politica que tende a eliminar a oposicao, e neste quarto tambem confirma a tendencia ao simplesmente "bater" no MDM, que na minha modesta opiniao, nao teve chances de fazer mais, nao porque nao teve visao, mas por todo ambiente envolvente e considerando o tempo de existencia e recursos disponiveis.
Esse talvez um problema tambem, o facto de nao conseguirmos ver os erros do governo ou o partido no poder, sem "bater" na oposicao, nao quero de forma alguma dizer que a oposicao esta certa, mas com "cenario politico actual" qual a espectativa que pode ser "alimentada" em relacao a oposicao ?