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segunda-feira, outubro 18, 2010

Os produtores de miséria

Por Mia Couto

Num festival de música do Brasil, ainda em tempo de ditadura, venceu uma canção de Chico Buarque chamada “A banda”. A letra era singela e quase inócua com o estribilho, sugerindo a nossa condição de espectadores da vida dos outros, na janela da nossa existência, vendo a banda passar. A canção que perdeu a favor de Chico era um espécie de hino contra a repressão da autoria de Geraldo Vandré. Recordo a letra dessa outra canção: (…) pelos campos fome em grandes plantações”. Estava ali, numa poesia cruel, algo que só podia ser dito assim: a fome, muitas vezes, cultiva-se.
Também se cultivam olhares e formas de pensar. Por exemplo, nós insistimos em olhar para o país como um casa de família. Há um pai, a mãe, os tios, os primos. E nós, os filhos, que olham para cima, quando se trata de decidir e olhamos para o lado, quando se trata de pedir contas. Aprendizes cegos da obediência, capazes de refilar contra os excessos da autoridade paterna, mas prontos a puxar lustro aos sapatos dos mais velhos, sempre que dessa submissão resultar algum ganho.

Na lógica familiar a grande figura do pai é inquestionável. Que filho lhe pede contas? E que homem (sim, porque é de um homem que se fala na sociedade patriarcal que é a nossa) que homem acredita ter que prestar contas perante a assembleia da família. Se nem sequer a esposa se dá a si mesma a importância de exigir explicação sobre os comandos do seu digníssimo esposo? Quando, em Maputo, ocorreram os motins (outros chamar-lhe-ão para sempre de “manifestações”) os revoltosos queixavam-se mais como filhos do que como cidadãos. O discurso de muitos era apelativo e, falando na televisão, diziam literalmente: “estamos à espera da resposta do nosso pai. “

Esta visão doméstica do país que somos é carinhosa e dá conta de um sentimento familiar que muito nos pode ajudar, enquanto nação em construção. Mas esta visão entra em choque com aquilo que a modernidade pode esperar de nós. Não seremos país se mantivermos essa familiaridade no tratamento das coisas do Estado. Uma família tem lógicas de gestão e de poder que não aplicáveis a países e governos. Os chefes de família não se escolhem por eleições. Nem são demitidos. Nem prestam contas. A privacidade da família pode sugerir compadrios, segredos e conluios.

Fique claro: enquanto filhos da mesma pátria, os moçambicanos devem ser uma família. Aliás, já são. Há que entender, porém, que a governação é um outro assunto. E quando se trata de assuntos de Estado não somos parentes: são cidadãos. Em lugar do espaço doméstico da família necessitamos do espaço democrático da cidadania.

Tudo isto vem a propósito das recentes nomeações ministeriais. Das mexidas no Governo, como lhe chamou a imprensa. Devo dizer, antes de mais, que aprovo essa movimentação. A questão essencial, porém, não são as pessoas. Por muito que as pessoas possam produzir diferença, a verdade é que necessitamos de sair dessa visão pessoalista e voluntarista.

A pergunta a fazer, para mim, é outra: que programas de trabalho esses novos dirigentes vão implementar? Que ideias novas criaram para situações velhas e novas? Numa palavra, o desafio é este: esses governantes vão, de facto, governar? Parece um jogo de palavras, mas não é. Desde há um tempo que se assumiu que a política comandava, em Moçambique, o exercício da governação. Nada de grave até aqui. Para uns, todavia, isso significou pura e simplesmente que o partido comandava o Governo, não no sentido de traçar as directivas políticas dentro das quais se esperaria que o Governo funcionasse. Mas no sentido da lógica política ser tomada como uma lógica de gestão. O chefe do Governo assume que um super-governo (que é o partido no poder) lhe deve dizer o que fazer no exercício quotidiano da sua função. Esta lógica de subordinação pode matar a governação. O governante espera pelo “camarada Secretário”. O governador aguarda por orientações partidárias. O administrador de distrito espera pela palavra de Secretário Distrital. O que sucedeu nos tumultos do mês passado é revelador: quando se esperava que o governo surgisse a público, surgiu o partido. É bom que os partidos surjam e digam coisas (se forem coisas com sentido), mas há que separar águas de discurso e, sobretudo, as águas de intervenção. O grande desafio da nossa governação não será vencido pela troca de actores. Pode mesmo trocar todo o Governo e nada de novo acontecer. Porque uma coisa é verdade e não apenas desculpa de ocasião do actual elenco: o contexto mundial é difícil e as carências nossas de hoje são as mesmas de muitas nações do mundo. Contudo, há países que estão dando resposta. E há os que vão cultivando mais fome que verdura. Urge revermos a relação entre o quadro político e a execução governativa. É urgente adoptar um pensamento criador, inventivo e capaz de superar a superficialidade da palavra de ordem. Tomemos, por exemplo, a agricultura. A “Revolução verde” não chegará sequer à condição de uma mudança esverdeada se não se enfrentar o câncro da terra com donos improdutivos, fazendo de um recurso vital um trampolim de especulação financeira. Para além de lavrar, é preciso varrer. É preciso limpar esse factor impeditivo. Pode o governo fazer isso? Gostaria muito que acontecesse, mas ficaria surpreso se fôssemos capazes. Porque, muitas das vezes, esses donos parasitas são gente de grande peso político. Este é um exemplo de como o lema do combate contra a pobreza nem sempre se cumpre com a necessária coerência. Porque há, entre nós, quem seja produtor de pobreza. Bastaria que parássemos de apoiar esses produtores para sermos todos um pouco mais ricos.

Fonte: O País online - 18.10.2010

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