MARCO DO CORREIO
Por Machado da Graça
Eu sei que tu, tal como eu, não és doutora de coisa nenhuma, mas, hoje em dia, quase tenho medo de me dirigir a alguém sem lhe chamar doutor, ou engenheiro, ou coronel, ou coisa desse tipo, porque há muitos que se ofendem se não lhe dermos um título vistoso.
Também nisso estamos a anos-luz dos tempos que se seguiram à Independência, em que éramos todos camaradas.
Fosse onde fosse, a que nível fosse, todos nos igualávamos nessa designação, que vinha das zonas libertadas da FRELIMO e dos campos na Tanzânia.
É verdade que, a partir de certa altura, começou a aparecer uma subtil variação: a designação de “camarada chefe”. Lembrava o bom do Orwell, no seu Triunfo dos Porcos, quando se passou do slogan Todos os Animais São Iguais para o outro, já “actualizado”, segundo o qual Todos os Animais São Iguais, Mas há Alguns Que São Mais Iguais do Que os Outros.
De qualquer forma a distância entre esse tempo e o que se passa agora era totalmente impensável.
Recordas-te que, nos primeiros tempos, os oficiais do Exército nem sequer tinham patentes, e não “patências”, como se diz hoje a torto e não a direito?
Havia comandantes aos diversos níveis e, lá no topo, o Comandante em Chefe, que era o Presidente Samora.
Mas esse foi o primeiro sítio onde o igualitarismo tombou. E, de um dia para o outro, passámos a ter tenentes e brigadeiros, generais e sargentos e até mesmo um Marechal, coisa que a maior parte dos países nem sequer tem, nem nunca teve.
E como isso se traduziu em fardas de gala e todo o tipo de emblemas, cada um mais garrido e dourado do que o outro, foi um vê se te avias.
Não havia cerimónia oficial onde o brilho que vinha daquelas fardas não ferisse a vista.
E, curiosamente, grande parte desses altos postos militares ainda hoje se faz tratar, ou aceita ser tratada por essas patentes, embora seguidas de um “na reserva”.
Por fim uma referência a certo número de “doutoramentos honoris causa” a que temos assistido, cheios de pompa e circunstância e na presença de académicos autênticos, com graus concedidos por universidades de prestígio, misturados com outros, de plástico, doutorados por instituições que pouco mais têm do que um sítio na internet. Todos eles vestidos com solenes trajos académicos, ou a fingir que o são, em cortejos de discutível gosto e solenidade.
“Não há níveis de vaidade”, dizia o escritor americano Mark Twain, e acrescentava “há apenas diferentes níveis de capacidade de a esconder.”
Portanto, minha cara Dra. Marília, vai-te habituando a seres tratada com estes títulos. Talvez, na próxima carta, eu até te promova a Mestra ou mesmo a Doutorada.
Não custa nada, é barato e dá outro brilho.
E passamos a estar na moda.
Temos azar é por nenhum dos nossos presidentes ter tido a mesma ideia que o Jean-Bedel Bokassa, da República Centro Africana, que decidiu coroar-se imperador do seu país.
Já imaginaste tu esta nossa elite transformada em aristocracia? Fulano de Tal marquês do Xiveve, Fulana de Tal condessa do Xipamanine, Beltrano barão da droga (este exemplo não dá, já temos um...) e por aí adiante?
É só o que falta. Mas não desesperes que ainda lá chegamos.
Um beijo para ti, do
Machado da Graça
Fonte: Correio da Manhã – 22.10.2010 in Diário de um sociólogo
Excelente.
ResponderEliminarPoxa, GOSTEI MESMO.