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terça-feira, junho 19, 2007

Outras pistas

Afonso dos Santos(*)

Estamos certamente habituados a que o autor duma coluna de opinião apresente aí as suas próprias opiniões. E também estamos habituados a que os grandes campeões se limitem a fazer declarações sobre desporto, e, por vezes, adicionem umas frases de efeito fácil sobre qualquer coisa que esteja politicamente na moda, para agradarem aos poderes instalados. Mas vamos hoje enveredar por outras pistas.

O autor da coluna de opinião vai ceder o espaço às opiniões de outro alguém, que é um campeão de atletismo que, como se verá a seguir, também se mostra capaz de correr em outras pistas. “O homem mais rápido da Europa nasceu em África, é português e vive em Madrid. Aos 16 anos, fugiu da Nigéria...”. Chama-se Francis Obikwelu, e tem actualmente 27 anos de idade. (Todas as citações, que serão apresentadas aqui, com a devida vénia, são de uma entrevista feita por Sofia Arêde, publicada no suplemento “Única” do jornal “Expresso”, 1786, 20.Janeiro.2007) Mas não é exacto que Francis Obikwelu fugiu da Nigéria. É mais acertado dizer que ele simplesmente não voltou lá. Da Nigéria, ele saiu oficialmente, como elemento da selecção nacional júnior de atletismo desse país, para ir disputar o campeonato de África, em 1994, na Argélia, e, logo a seguir, o campeonato do Mundo, em Portugal. Ficou em Portugal, como ilegal, é certo; e por isso não pôde continuar a ser atleta. Foi trabalhar como servente da construção civil.

Ele conta: “Misturava cimento, carregava tijolos, às vezes oito andares. (...) Às vezes começávamos a trabalhar às seis da manhã e só terminávamos de madrugada. Vivia na obra. Havia construções que demoravam um ano e nós vivíamos lá, oito ou dez pessoas”. Mas ele: “Pensava que voltaria a correr, que um dia ainda ia ter sorte”. E assim aconteceu, quando o Belenenses o acolheu, após um contacto feito por uma senhora inglesa, que tinha uma escola onde Obikewlu andava a aprender português. Mas vamos vê-lo, agora, percorrendo outras pistas.

Quando, na entrevista, lhe perguntam como é que ele reage às imagens dos milhares de imigrantes que tentam chegar à costa espanhola para entrar na Europa, ele responde: “Eles tentam conseguir uma vida. A culpa não é deles, mas sim dos nossos presidentes em África que roubam dinheiro e deixam as pessoas sofrer. As famílias querem comer, por isso arriscam-se a morrer no mar”.

Quanto à possível solução, ele acha que: “Há muitas. Primeiro, impedir que os presidentes africanos mandem dinheiro para bancos de outros países, como a Suíça”. E as suas opiniões prosseguem assim: “A Europa não precisa de mandar dinheiro para África. Há países ricos, o problema é que os presidentes desses países são mafiosos e roubam a riqueza do país. (...) Quando oiço na televisão que “temos que mandar dinheiro para África”, penso: “Não, isso não existe”. Primeiro, esse dinheiro não vai chegar a nenhum lado. Segundo, vão matar só para poderem ficar com ele. Se não mandarem dinheiro, ninguém vai tentar roubá-lo. (...) A democracia não existe em África. (...) Os presidentes estão lá quatro anos e só pensam em como podem roubar para depois viverem como reis. (...) Em África, quando alguém é bom, afastam-no. Como a nigeriana [Okonjo-Iewala] que foi vice-presidente do Banco Mundial. Fez um grande trabalho, mas o Presidente agora já não está interessado em mantê-la. Os que são bons nunca duram. Ou são afastados, ou são mortos”.

Quem quiser acusar Obikewlu de estar a alimentar a imagem negativa duma África de corruptos, deverá reparar que as suas palavras também apontam o dedo explicitamente à Europa, como sendo quem patrocina essas práticas, o que significa, no mínimo, que esse Continente é cúmplice. Mas, por outro lado, talvez já seja tempo de deixar de tentar tapar a sujeira com a peneira. A sujeira de cá não se limpa tentando deitá-la para os olhos de quem está a ver com toda a clareza o que se passa. Aliás, outras palavras de Obikewlu ajudam a compreender que cada um deve correr por si.

Ele diz: “Corro como se estivesse sozinho na pista”. E, quando lhe perguntam se não vê os adversários, ele responde: “Isso só atrapalha. Não tento apanhar o adversário. Isso é um erro porque estás a correr a prova de outra pessoa”. E como quem diz que “correr não é chegar”, ele conclui: “Quase sempre parto atrasado, mas sou o mais rápido no Planeta nos últimos 40 metros. Não há ninguém neste mundo que faça os últimos 40 metros tão depressa como eu”. Mas Obikewlu também corre numa outra pista: um projecto seu, que é uma escola de atletismo, e que, segundo ele esclarece: “Está a começar aos poucos no Algarve: uma academia para crianças e jovens que têm dificuldades ou que não têm família e precisam mais de ajuda. (...) Agora o que quero é ajudar jovens a vencer. Quando eu morrer quero ter sido importante para essas pessoas”.

E com este último ponto, pode afirmar-se que Francis Obikwelu, afinal, corre na pista principal, e que é esta: Quais são as pessoas para quem terás sido importante, quando morreres? E de que modo foste tu importante para essas pessoas?


(*)Savana

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