Por E. Macamo
O semanário Savana, sem querer, acaba de prestar um grande mau serviço ao País. Trouxe, por um lado, à superfície uma discussão que há muito se impunha sobre os valores que devem estar na base da nossa ordem política e social e revelou, por outro lado, quem são algumas das pessoas que vivem entre nós. Quando reproduziu as controversas caricaturas o jornal não sabia, de certeza, que estava a prestar esse serviço. Fê-lo, muito provavelmente, no espírito irreflectido quase habitual dos nossos órgãos de informação. Ignorou completamente o clima tenso criado por essas caricaturas e ignorou a realidade do nosso País.
Ao ler sobre os actos de vandalismo de que o semanário foi vítima por parte de algumas pessoas recordei-me de uma história contada recentemente pelo Pastor Dinis Matsolo, o Secretário Geral do Conselho Cristão de Moçambique, que procurava demonstrar a uma audiência composta essencialmente por alemães a importância de pensar os problemas de um como os problemas de todos. Gostaria de reproduzir essa história com uma vénia ao Pastor Matsolo. Trata-se da história de um rato que descobre uma ratoeira na fazenda onde vivia. Alarmado, informou de imediato a galinha sobre o perigo. A galinha, contudo, recusou-se a dar ouvidos ao rato com base no argumento segundo o qual a ratoeira não constituiria nenhum problema para ela, mas sim para o rato. Ao ouvir isto, o rato correu para o porco que chafurdava, como sempre, na sua pocilga. O porco também mandou o rato passear com o mesmo argumento: a ratoeira é problema de rato. O mesmo aconteceu com a vaca que pastava preguiçosamente nos campos.
Dias passaram com o rato entregue à sua própria sorte. Num belo dia, como diria um amigo meu, uma cobra accionou a ratoeira que lhe caiu sobre o rabo. Nesse preciso instante passou a dona de casa, cujo tornozelo não conseguiu escapar à mordedura da cobra. Ela ficou de cama. E começou a exigir uma dieta especial. Pediu sopa de canja de galinha. O marido mandou matar a galinha. Não melhorou, antes pelo contrário. Os familiares começaram a afluir à casa para a visitar. Era preciso alimentá-los. O marido teve que sacrificar o porco. Depois de uma luta renhida com o veneno da cobra a senhora sucumbiu. Veio ao funeral toda a vizinhança e, naturalmente, todos os familiares, próximos e distantes. Na cerimónia do chá, que é muito mais do que isso, o marido teve que sacrificar a vaca também. É importante notar um facto bastante relevante: Durante todo este tempo o principal beneficiário da ratoeira que fechou sobre o rabo da cobra é o rato que engorda a olhos vistos das migalhas de tanta festa.
Gosto da história. É excelente pela forma didáctica como convida as pessoas a reflectirem sobre o que nos é comum. Na verdade, em sociedade nenhum problema é individual. E já agora, ainda que sob pena de usar um chavão, o processo de mundialização que cada vez mais age sobre todos nós, faz de todos os problemas nossos problemas. Não há problemas de americanos, africanos, europeus e asiáticos. Os nossos problemas são problemas da humanidade. Da mesma maneira, não há soluções só de uns. As soluções são de todos, sob pena de serem apenas problemas para os outros. O vandalismo contra o jornal Savana chama a nossa atenção ao facto de que a liberdade de expressão não é assunto apenas ocidental; igualmente, o integrismo e os ressentimentos contra o Ocidente não são assunto árabe. Quer uma quer as outras coisas são assuntos nossos.
Os limites da liberdade de expressão
Vou por partes, começando pela liberdade de expressão. Os tumultos que se registaram em quase todo o mundo árabe em suposta reacção à publicação de caricaturas que ofendem a ideia que milhões de pessoas têm do Islão foram acompanhados, no Ocidente, por profissões de fé na liberdade de expressão como princípio absoluto, fundamental e intocável da cultura ocidental. Sim, nestes termos mesmo: a liberdade de expressão é um valor ocidental, ponto final. É absoluto. Muitas vezes até, a afirmação deste princípio ficou ao cargo de gente cuja prática política anterior nunca tinha deixado antever isso. Alguns dos fundamentalistas cristãos que apoiam George Bush nos Estados Unidos, por exemplo, proíbem, por decreto, o ensino, nas escolas americanas, das teorias de Charles Darwin sobre a evolução das espécies por contradizerem a Bíblia. Isto é para não falar de todo o tipo de censura e tabús que acompanha o debate político em qualquer país ocidental.
A liberdade de expressão não adquire o seu valor pela sua própria essência ou pelo facto de reflectir a cultura dominante dos nossos dias. Ela tem valor porque traduz um desiderato essencial à convivência entre os Homens. O respeito pela opinião dos outros e pelo direito que cada um de nós deve ter para com a expressão dessa opinião. Só está contra a liberdade de expressão aquele que não quer respeitar a opinião dos outros. Na verdade, para dizer as coisas de forma bruta, está contra a liberdade de expressão aquele que desistiu de pensar por si próprio, aquele que segue as multidões. Não admira, pois, que seja no meio religioso, cristão e muçulmano, sobretudo estas religiões moneteístas – as que acreditam na ideia de um único Deus para todos – onde o respeito pela opinião do outro constitui algo difícil de digerir.
O escritor nigeriano Chinua Achebe escreveu uma vez, sobre o cristianismo europeu, que era deveras estranho que gente percorresse milhares de quilómetros para ir dizer a outros povos que a sua religião era falsa. Mas é assim, frequentemente, a religião. Ali Mazrui, um dos maiores cientistas políticos africanos, já escreveu – curiosamente numa obra (cultural forces in world politics) em que instiga os países árabes a adquirirem a bomba atómica! – que as religiões monoteístas é que trouxeram as guerras religiosas à África. Se acredito na existência de um único Deus como é que posso aceitar que haja indivíduos que acreditem em outros Deuses? Impossível!
A liberdade de expressão não só traduz o respeito pela opinião do outro como também se revela essencial à apreensão do mundo em que vivemos, da maravilha da natureza. Embora a ideia de que Galileu tenha sido vítima do integrismo católico constitua um dos maiores equívocos da história da ciência, a lenda da sua morte em defesa do conhecimento científico é uma mentira nobre útil à razão. O dia tem vinte e quatro horas e se durante esse tempo todo dissermos milhares de bobagens, duas ou três serão aproveitadas. Porque impedir isso? O Papa, o Cardeal, o Bispo, o Padre, o Profeta, o Sheik, etc. são pessoas como eu e o leitor. Nenhum deles tem acesso especial à verdade, são de carne e osso como nós, nasceram, cresceram e aprenderam as coisas da vida – outras não – da mesma forma como eu e o leitor também nascemos, crescemos e aprendemos as coisas da vida. Quando se opõem ao nosso direito de pensar o mundo como queremos, insultam, na prática, a nossa inteligência. Faltam-nos ao respeito.
Há vozes mais moderadas no meio de toda esta controvérsia que dizem uma coisa muito importante: a liberdade de expressão não é absoluta. É verdade, ela tem limites. Não existe no mundo nenhuma constituição que não limite o exercício deste direito, sobretudo quando ele atenta contra as outras liberdades a que as pessoas têm direito. Uma dessas liberdades é o respeito pelas crenças que cada um de nós tem. As caricaturas no centro desta controvérsia foram um atentado precisamente a essa liberdade. A sua reprodução pelo semanário Savana foi, portanto, mais um atentado a essa liberdade mesmo se devemos nos perguntar se as nossas leis excluem explicitamente esse aspecto da liberdade de imprensa.
Provávelmente já não interessa saber o que levou o semanário a publicar as caricaturas. Uma razão que eu gostaria de sugerir tem a ver com a interpretação que muitos de nós fazemos das liberdades que fazem parte da ordem política e social liberal sobre a qual assenta a nossa constituição. Salvo excepções bastante honrosas, os meios de comunicação de massas são usados, entre nós, para soltar a liberdade de expressão contra a razão. O caso amoroso que muitos analistas mantêm com teorias de conspiração é a expressão máxima desta hostilidade à razão. Em palestra pronunciada na Escola de Jornalismo no ano passado justamente sobre a questão da liberdade de expressão, convidei os estudantes que me vieram ouvir a usar o direito à razão como o limite da liberdade de expressão.
Tentei transmitir a ideia de que só se pode exercer a liberdade de expressão em pleno se as intervenções públicas que fazemos pautam pelo respeito à estrutura lógica de um argumento. Não atentar contra a inteligência dos leitores. Discutir com fundamento. Assentar os nossos argumentos em razões. Comprometer-se com a verdade. Dias antes, usara o mesmo argumento em resposta aos ataques feitos pelo líder da oposição aos intelectuais moçambicanos. Não há nenhuma razão, aos meus olhos, para que os intelectuais sejam imparciais na sua orientação política. É possível ser intelectual/académico e ser simpatizante da Frelimo ou da Renamo.
Na verdade, só é bom militante quem se compromete com a verdade. Um militante aberto ao debate é receptivo à crítica e, por via disso, tem maiores probabilidades de contribuir melhor para a prossecução dos objectivos políticos do seu partido. O mesmo se pode dizer do jornalismo. A exigência de que um jornalista seja imparcial parece-me, neste sentido, infundada. Um jornalista é pessoa como todos nós, tem preferências políticas. Essa condição, contudo, não lhe dá a liberdade de mentir, dá-lhe a responsabilidade de apresentar as notícias com honestidade e de forma crítica. O seu compromisso é com a verdade.
É difícil abrir um jornal moçambicano e não ficar deprimido com a qualidade argumentativa do que nos é proposto como análise. É só olhar para a forma como o julgamento do caso Carlos Cardoso foi noticiado; é só olhar para qualquer artigo sobre corrupção; é só ver os insultos que muitos gostam de proferir em reacção às críticas que lhes são feitas; é só recordar a telenovela da cobra de Dondo serializada pelo jornal Notícias; é só trazer à memória a história de um gorrila no meio do bairro Chamanculo B noticiada pelo defunto semanário Embondeiro. Enfim, recentemente (dia 13 de janeiro de 2006), na edição online do jornal Zambeze li, estupefacto, uma notícia que tinha o seguinte título: “PRM assassina 5 criminosos”. Li e reli a notícia à procura da informação que dava sustento à afirmação do jornalista e não encontrei nada. O único que a notícia continha era informação sobre um tiroteio entre polícias e ladrões que tinha terminado com a morte de alguns dos ladrões. Polícia assassina?
Nestas circunstâncias, a liberdade de expressão torna-se numa arma poderosa em mãos perigosas. É como dizia alguém mais esperto do que eu quando observou que qualquer instrumento de trabalho, bem segurado, é também uma arma. Ao não respondermos à razão, ao argumento lógico, mas também à nossa falibilidade, desvirtuamos completamente o sentido da liberdade de expressão. Desprovimo-la de todo e qualquer sentido cívico. A reprodução das caricaturas pelo jornal Savana parece ter feito algo neste sentido e, por isso, prestou um mau serviço público.
Violência e soberania
Mas quero também falar da violência. A violência é um argumento, daqueles fortes até. É tanto mais forte quanto for esgrimido pelos mais fortes. Ainda vou falar sobre isto mais adiante. Por enquanto quero reter a ideia da violência como argumento. É um argumento mau e inválido. Pode ser inválido de duas maneiras, ambas presentes na reacção de vandalismo ao Savana. É como, ocorre-me agora, se a savana tivesse finalmente reencontrado os seus habitantes. A primeira maneira é simples. A violência como reacção viola a liberdade de expressão dos outros. Quando jovens irados entrevistados pela televisão afirmam que vandalizaram as instalações do jornal em resposta ao vandalismo gráfico, por assim dizer, do jornal, estão, na verdade, a dizer que dois males são iguais a uma coisa boa. É um erro clássico de lógica. É um argumento inválido. A segunda maneira é o uso da própria força como argumento: aceita o meu ponto de vista caso contrário vou te bater. Inválido também e, pior do que isso, um retorno à selva, à lei do mais forte.
A violência, porém, sobretudo a violência de que o jornal Savana foi vítima, não é apenas má por constituir um mau argumento. É má porque é um atentado à soberania do Estado moçambicano. Pode ser exagero da minha parte, mas quero insistir sobre este ponto. O Estado moderno e civilizado define-se pelo monopólio do uso dos meios de violência. É a ele que compete usar a violência para coagir o cidadão a obedecer à ordem política, social e económica. Mais ninguém tem esse direito, por mais ultrajado que se sinta. Ao fazerem justiça com as suas próprias mãos os protestantes que irromperam pelo Savana adentro estavam a recusar ao Estado este monopólio. Isto parece-me grave. E quanto mais penso no assunto e vejo a reacção do nosso Estado, ou melhor a ausência de reacção, fico apreensivo. Para piorar as coisas, li que o porta-voz do governo preferiu fazer uma reprimenda ao jornal Savana por ter publicado as caricaturas. Passou vista grossa ao atentado flagrante – ainda mais defendido de viva voz em órgãos de comunição social – à soberania do Estado. Ninguém vai ser processado? Não são conhecidas as pessoas que fizeram o que foi noticiado? Vai ficar tudo na mesma? Eis aqui uma oportunidade para se testar, de novo, a convicção segundo a qual ninguém em Moçambique está acima da lei.
Segundo o que foi noticiado o uso da violência física foi complementado pela ameaça de uso de violência económica: não só havemos de vos bater se insultarem o nosso Profeta como também havemos de deixar de colocar os nossos anúncios no vosso jornal! Que jornal pode sobreviver sem anúncios? Não há, na nossa praça, assim tantos “médicos tradicionais” com carteira suficientemente gorda para manter os jornais em vida com o anúncio da cura de doenças incuráveis. E mesmo se houvesse, durante quanto tempo seria possível produzir um jornal sério com financiamento de charlatães? Mesmo discursos presidenciais ou mensagens de saudações disto ou mais aquilo da parte de partidos políticos não seriam suficientes para fazer sobreviver a nossa imprensa.
Penso que os que se sentem ultrajados têm o direito de colocar os seus anúncios onde bem entenderem. Mas que isso, neste caso presente, é um atentado à independência editorial lá isso é. Espero ouvir, cá longe na Alemanha, ecos de um movimento cívico corajoso que responde a esta chantagem ao jornal Savana com um boicote aos produtos e serviços de qualquer empresa que aja dessa maneira. O dinheiro é forte e fala mais alto. O consumo também, a não ser que se trate de produtos e serviços que não são consumidos por moçambicanos. O Estado podia juntar-se ao movimento, excluíndo os inimigos da independência editorial de concursos públicos. Dente por dente, olho por olho. Maus argumentos do princípio até ao fim.
No ano passado, quando se verificou um atentado bombista numa instância turística egípcia discuti com vários amigos e colegas o perigo de relativização da violência terrorista. Bush pode ter cometido um erro ao invadir o Iraque; o Ocidente pode estar a cometer um erro ao deixar Israel espezinhar os direitos dos palestinos. Mas a violência indiscriminada contra gente indefesa que constitui a resposta dos integristas não é, nem pode ser a solução. Na minha contribuição ao debate que depois surgiu com colegas e amigos defendia a necessidade de separar as coisas. Defendia, também, a importância do reconhecimento da superioridade do sistema político liberal sobre qualquer outro em termos de garantia de liberdades. Isso não é capitulação à hegemonia ocidental porque mesmo nessa parte do mundo essas liberdades não estão completamente garantidas. Mas o fundamento liberal sobre o qual a ordem política dessas sociedades assenta é a melhor garantia da sua realização. Prefiro mil vezes o sistema político que coloca um George Bush na Casa Branca do que o sistema político que colocou Saddam Hussein em Bagdade. Suspeito que muitos muçulmanos também sejam desta opinião.
De tal maneira que neste caso, no fundo, não está em jogo nem a liberdade de expressão, nem o respeito pelo sagrado. O que está, na verdade, em jogo é o respeito pelo outro e, mais profundamente, a auto-estima dos moçambicanos. O respeito pelo outro manifesta-se no respeito pelas liberdades dos outros, incluíndo a liberdade de não ser ofendido nas suas crenças. A auto-estima dos moçambicanos, por sua vez, tem a ver com o que cada um de nós deve pensar de um Estado em que cada cidadão se sente no direito de violar o monopólio de violência do Estado em defesa das suas crenças. Essa atitude pode ser legítima do ponto de vista normativo, mas então é preciso também perguntarmos se o nosso País tem, se deve ter, espaço para cidadãos que pensam desta maneira.
Outra vez a “moçambicanidade”
Infelizmente, e esta é a terceira coisa sobre a qual gostaria de falar, existe uma aliança profana entre certos meios políticos e certos meios económicos. Essa aliança está a pôr em grande perigo a viabilidade de Moçambique como Estado coerente e moderno. A aparente dependência do partido no poder do apoio financeiro de certos sectores económicos de extracto religioso, sobretudo os que estão ligados à prática da religião muçulmana, não é boa. É perigosa. Cria espaços de ilegalidade cúmplice que envolvem a política num abraço sufocante. Manietam a política, esvaziam de conteúdo a acção política, riem-se esganiçados de uma soberania cada vez mais vácua.
Talvez tenha sido neste sentido que foi mais prudente admoestar o jornal Savana pela reprodução das caricaturas do que levantar a voz contra a violência integrista; como agir contra a ilegalidade sem comprometer apoios? Como defender a ordem política e social de um Estado em mãos de políticos que por vezes gerem a coisa pública em nome de interesses económicos obscuros? Como alertar para os perigos que o princípio de justiça por próprias mãos representa para o País num contexto em que alguns sectores representativos de certos meios religiosos, pelas suas acções, já revelaram falta total de respeito pela nossa constituição? Como dizer seja o que for sem, ao mesmo tempo, interrogar a perversão que foi feita da nacionalidade moçambicana com processos migratórios sorrateiros e ilegais? O debate sobre o Hino nacional vem agora à cabeça com um significado ainda mais assustador: afinal era mesmo verdade, Alá é mesmo grande, mais importante do que a convivência sã entre os moçambicanos. Há mesmo lugar para todos nós neste Moçambique? Duvido.
Estas questões reenviam-nos a dois equívocos centrais da nossa esfera pública. O primeiro equívoco foi sobretudo característico da nossa atitude intelectual do período imediatamente a seguir à independência. Essa atitude tinha duas vertentes. A primeira dizia respeito à violência. Sendo uma nação saída da chamada “violência revolucionária” nunca tivemos problemas com o uso da violência com o fim de alcançar objectivos julgados nobres. Embora plausível, esta atitude tem, desde então, criado certos problemas à nossa capacidade intelectual de pensar a nossa história. A Renamo matou indiscriminadamente em nome do bom uso da violência. A Frelimo executou publicamente em nome do bom uso da violência. E hoje, extremistas religiosos vandalizam o jornal Savana em nome do bom uso da violência. Como discutir isso sem termos que revisitar as outras violências e introduzir distinções? Há um livro que anda por aí do historiador francês Michel Cahen “Os outros – um historiador em Moçambique, 1994” de cuja leitura confesso ter desistido por ser incrivelmente medíocre para a estatura desse académico, mas que se serve deste mal-estar com a violência da nossa própria história para desfiar argumentos incoerentes sobre a nossa política. A biografia de Uria Simango, ao lado deste livro, podia até receber o Prémio Nobel de metodologia científica.
A segunda vertente dizia respeito à nossa relação com noções liberais. Misturámos a nossa crítica legítima ao capitalismo com a recusa de ver nos princípios que o sistema político liberal procura emular algo mais profundo do que a hipocrisia dos que só querem dominar o mundo. Supusémos, sem nenhuma outra base senão a nossa própria preguiça de pensar, que a democracia e as liberdades que ela garante são um luxo que só os hipócritas se podem permitir. Perdemos de vista um aspecto muito importante, nomeadamente que o sentido humanitário, a dignidade do Homem, as liberdades fundamentais não são privilégio de nenhuma cultura, são a condição sine qua non de uma convivência sã. O nosso despeito em relação ao capitalismo levou-nos a não reconhecer que o liberalismo – não estou a falar do neo-liberalismo económico selvagem propalado pelo FMI – tem sido o melhor fundamento para a libertação da própria religião, para que cada um tenha a liberdade e espaço de crer em seja o que for que lhe der na gana. Misturámos alhos e bugalhos. Transformamos valores eminentemente humanos em expedientes políticos. Atribuímos ao Ocidente direitos de autor sobre algo que é universal.
O segundo equívoco é mais grave e é actual. Na pressa de questionarmos os excessos do discurso de unidade nacional elevámos a identidade provinciana ao estatuto de intocável e sagrada. Reificámos o Norte, o Centro, o Sul, os Macuas, os Macondes, os Machanganas, os Massena, etc. A simples declaração “nós os ...” é suficiente para dar legitimidade e plausibilidade a um argumento. É neste contexto que expressões como “comunidade islâmica ou muçulmana” aparecem na nossa esfera pública com um carácter essencial, como se se referissem a algo homogéneo, perene e livre de controvérsia. Esquecemos que pelo menos oficialmente existem duas organizações que se reclamam a representação da “comunidade muçulmana”; esquecemos que o Islão, tal como o Catolicismo, embora reclame a tal “Umma”, a unidade de todos os muçulmanos, é feito de várias tradições, todas elas fundadas no raciocínio, no uso da capacidade de pensar para tornar os ensinamentos do profeta mais consistentes com a orientação de cada crente.
É assim que não vemos nenhum problema em identificar actos de vandalismo com o Islão, justamente porque partimos desta ideia essencial da identidade. Incluímos, injustamente, milhares e milhares de muçulmanos honestos, moderados e respeitosos dos direitos dos outros na categoria dos integristas; obrigamos-los a partilhar sentimentos e orientações com gente que devia merecer a nossa hostilidade militante. Os integristas que nas últimas semanas têm andado a responder com violência ao insulto que as caricaturas foram à sua fé não são nenhuns combatentes da liberdade de povos oprimidos; são pessoas que representam um grande perigo à estabilidade de qualquer sociedade porque são pessoas que abdicaram do direito de pensar. Exigem liberdade de expressão e de religião com maior veemência do que estão dispostos a usar a maior liberdade que a natureza lhes concedeu: a liberdade de raciocinar.
Condenar o vandalismo de que o jornal Savana foi vítima, mesmo se ao mesmo tempo devemos admoestar o semanário pela reprodução insensata das caricaturas, não é um acto de defesa da liberdade de expressão como se costuma dizer no Ocidente. Condenar o vandalismo é um acto de defesa da convivência pacífica, da reafirmação da ideia de que a nossa ordem política e social se deve fundar no respeito, independemente das identidades primordiais que uns e outros se acham no direito de defender. Seria bom que o Estado agisse contra os que assaltaram o jornal Savana; seria bom que o governo, os partidos políticos e todas as organizações cívicas que fazem a nossa esfera pública se levantassem em defesa da ordem pública condenando este acto de violência e exigindo dos representantes de todas as confissões religiosas a condenação desse acto ignóbil.
Finalmente, seria bom que o respeitado Sheik Aminudin pegasse de novo na sua poderosa pluma e separasse os bons muçulmanos dos maus muçulmanos, pois os bons muçulmanos são os bons moçambicanos. Não é possível ser mau muçulmano – ver na violência o único instrumento de resolução de conflitos – e ser bom moçambicano ao mesmo tempo. Menciono em particular este teólogo por, através dos seus escritos ponderados e altamente educativos, demonstrar de uma vez por todas que nem todos os que praticam a religião muçulmana são da índole dos que atacaram o Savana. Não se trata, de resto, de uma constatação nova. Cresci rodeado de muçulmanos, tenho vários muçulmanos nas minhas relações mais íntimas, todos eles gente de respeito, sensata e profundamente comprometida com o ideal de nação que todos queremos que Moçambique seja. Porque deixar que o nome desta boa gente seja arrastado na sujidade por um punhado de gente movida apenas por ressentimentos mal digeridos?
A comunicação social devia pegar neste caso para reflectir sobre os limites da liberdade de expressão. Ela deve fazer aquilo que os protestantes, mais civilizados, deviam ter feito: interrogar a nossa lei de imprensa, usar os mecanismos de que a lei dispõe para tornar a liberdade de expressão mais adequada às várias sensibilidades que fazem parte da nossa terra. É imperioso que isto aconteça se não queremos terminar como a galinha, o porco e a vaca, muito embora não saiba quem seria o rato.
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