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sábado, março 25, 2017

"Durante estes 42 anos fizemos tudo contra a agricultura", José Sulemane

Sulemane entende que é necessário evitar ter um sector privado dentro do sector público

Não obstante ser a promessa dos últimos 42 anos, a agricultura é o tema de que mais se fala e escreve-se em Moçambique e, talvez por isso, o leitor queira desistir do texto. Mas há abordagens que vale a pena considerar, que tentam fugir à corrente fatalista e colocam à mesa propostas para debate.
José Sulemane, moçambicano, representante-residente do Fundo Monetário Internacional (FMI) na Guiné Conacri, foi orador, esta semana, de uma conferência internacional na Beira sobre os caminhos para o futuro.
O economista e professor apontou a agricultura como um elemento-chave enquadrado na Constituição da República, mas órfão em termos de medidas com impacto no aumento da produção e diminuição das importações de bens alimentares.
“O artigo 103 da Constituição da República diz que a base do desenvolvimento nacional é a agricultura. A pergunta que eu faço é: O que fizemos nestes 42 anos neste assunto? A teoria que eu tenho é que durante os 42 anos fizemos tudo contra a agricultura, explica.
A tese é baseada nos dados do relatório de inquérito agrícola de 2012, que mostram que o país não evoluiu nos vectores importantes da agricultura: o número de pequenas parcelas agrícolas manteve-se o mesmo, representando 99% do total de todas as parcelas; os serviços de expansão não se estenderam à altura das necessidades; a investigação não corresponde ao que se pretende.
A falta de prioridades na agricultura e a intenção de criação de uma indústria, baseada nos centros urbanos, tem contribuído para a quebra da produção alimentar. É um fenómeno a que José Sulemane chama de armadilha de Ricardo.
O que é a armadilha de Ricardo? Se nós pensamos num processo de desenvolvimento industrial, há uma transferência de mão-de-obra do sector rural para o sector urbano e isso faz aumentar a procura pelos bens alimentares, por exemplo. Esses bens vem da agricultura para alimentar os trabalhadores do sector urbano. Se a produtividade na agricultura não aumenta, a ponto de fazer face a essa demanda de produtos alimentares de pessoas que migram para o sector urbano, então, não vai haver um processo de industrialização no país.
A armadilha Ricardo impede a criação de uma indústria nacional virada para a produção interna e com uma cadeia de valor que funciona dentro de Moçambique. O actual cenário propicia o surgimento de investimentos de vulto, do tipo mega-projectos, sem ligação à raiz da economia nacional.
  
Estratégia de crescimento
Definir uma estratégia de crescimento clara e fácil de avaliar será crucial para o desenvolvimento. E todo o resto passa por aí, desde o papel de cada uma das partes, financiamento e resultados.
“Para mim, a estratégia de crescimento tem que ser uma visão de médio prazo, no mínimo, e que orienta toda a administração pública nas suas actividades diárias. Eu sei que num país como o nosso, temos mais de 25 ministérios e cada um faz o que quer. Isso não deve ser a forma de lidar com uma estratégia de crescimento, alerta.
Moçambique é apontado como um país com várias estratégias, planos e políticas nos mais variados sectores. Esta situação conduz à falta de foco e não permite a tomada de decisões estruturais. “Geralmente, quando um país é pobre, há tendência de ter muitas prioridades, mas devo chamar atenção que isso não funciona. A expressão que gosto de usar é que quando um país é pobre gosta de distribuir amendoins a todos sem impacto nenhum. A ideia é decidir algo que vai transformar a estrutura da economia, diz.
E para não ficar apenas no diagnóstico, o economista, com passagem pelo Ministério das Finanças onde ocupou a pasta de director Nacional do Orçamento, propõe uma estratégia de cinco anos com quatro principais linhas. Vamos por partes:
Água e saneamento
No entender do economista, uma aposta na melhoria do acesso à água potável e saneamento teria um triplo efeito: satisfação das necessidades da população, melhoria das condições de saúde com diminuição de doenças como cólera e construção de infra-estruturas.
Energia
Nos próximos anos, Moçambique deverá ser um país industrializado, o que passa necessariamente pelo uso da energia eléctrica. José Sulemane diz que se pudesse decidir indicava a energia como uma das prioridades, realizando investimentos de qualidade. Nós até agora importamos energia eléctrica com tanto potencial que temos, critica.
Agricultura e pesca
A agricultura e pesca são sectores de maior criação de empresa e não exigem formação elevada. O economista do FMI diz mais: a agricultura e pesca resolvem-nos o problema do emprego, rendimento, exportações e, possivelmente, alguma diminuição de importações. 
Despesa pública
Se eu pego, por exemplo, o orçamento de Moçambique, na componente da despesa de investimento, é mais ou menos dois biliões de dólares norte-americanos por ano. Se eu pego a despesa de bens e serviços é mais ou menos um bilião de dólares. A soma das duas componentes dá mais ou menos três biliões de dólares. Quando eu digo qualidade da despesa, significa que se estes três biliões de dólares por ano seguissem as regras de concurso público e se fosse dado o devido suporte ao sector privado, seria um motor para o desenvolvimento, argumenta o professor.
José Sulemane tem a convicção de que um bom sistema de concurso público é um motor para o desenvolvimento do país, pois pode permitir que as empresas locais do sector privado sejam usadas para fornecer bens e serviços a administração pública. Temos que evitar ter um sector privado dentro do sector público, que é contra o sector privado real, desabafa.
José Sulemane vai mais longe e propõe uma auditoria aos contratos públicos em Moçambique para avaliar se seguem as regras de procurment. Ao fazer a proposta, o economista lembrou os resultados de uma auditoria na Guiné Conacri, que concluiu que 87% dos contratos públicos tinham irregularidades.
Sobre as PME, diz que é preciso dar mais atenção, através da política fiscal. Considera que tudo é feito para assegurar o funcionamento dos grandes investimentos, ao invés de apostar nas PME. Por que não fazer para as PME, o que é feito para o investimento directo estrangeiro por via dos grandes projectos? Parece que para esse tipo de projectos tudo é facilitado, mas para as PME que empregam maior parte das pessoas e são parte resiliente da economia local - não há apoio.

Fonte: O País – 23.03.2017

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