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sexta-feira, novembro 03, 2017

COMO AGE O INIMIGO INTERNO

A EXPRESSAO “como age o inimigo” evoca, nos que viveram no tempo do Presidente Samora Machel, (o tempo revolucionário), várias conotações (emoções) e múltiplos significados, entre nostálgicos aos odiosos, por vários motivos, e que a história regista mas o discurso político presente parece não pretender recordar e muito menos exprimi-lo em voz alta e publicamente. Não será isso uma acção desse inimigo interno?
Segundo o conceito desse tempo, o inimigo desdobrava-se em interno e externo e, enquanto o externo era claramente identificável mesmo fisicamente, o interno era tão complexo e até invisível porque era um Judas: vestia a mesma farda, comia no mesmo prato, falava a mesma linguagem do grupo (movimento, partido, etc.), identificava-se vivamente com o grupo, etc., mas era um inimigo cujo resultado final da sua acção era destrutivo.
O inimigo interno, ainda segundo o sentido desse tempo, podia ser um infiltrado que, por isso, estudava e imitava a forma de ser do seu alvo, penetrando-o até ao seu “intestino” e, uma vez aí instalado, e já tido como amigo, como parte do sistema, imperceptivelmente, destruía calma, silenciosa e impunemente o seu “amigo” sem este desconfiar e até com o beneplácito da vítima.
Esta táctica do inimigo sugere que este se faz amigo da sua vítima, elogia-a na negativa para que esta erre mais e, para não cair na desgraça da vítima, evita sugerir algo de positivo, esperando e desejando que a vítima tome decisões erradas e se destrua sem que ele (o inimigo) seja responsabilizado. E quando a vítima for destruída, o inimigo salta, desresponsabiliza-se e abandona-a para se apoiar no dirigente substituto a ser tratado da mesma maneira.
O inimigo não critica, só elogia o seu dirigente (amigo) em tudo quanto este diz, faz e manda fazer para merecer maior confiança e tirar mais benefícios. O seu único esforço intelectual é saber antecipadamente a opinião e posição do seu dirigente para apoiá-lo e adulá-lo e, enquanto não puder identificar a opinião do dirigente, não se pronuncia e justifica-se tomando a sua atitude como um acto de disciplina interna. Este inimigo é um religioso, um adorador visível e audível do seu dirigente, antes de ele mesmo assumir o seu lugar. O inimigo é muito astuto e perscruta intensamente à sua volta para descobrir um provável concorrente que possa merecer a confiança do seu chefe, para afastá-lo e eliminá-lo por intriga, boato, mentira, difamação e até por assassinato físico ou do carácter.
Nos dias que correm, de democracia multipartidária e de capitalismo, os sinais do inimigo interno são perceptíveis. Ele utiliza as mesmas tácticas destrutivas: não criticar o seu chefe ou instituição ou organização (governo, partido, igreja, etc.) por razões variadas, sendo a principal delas a obtenção de benefícios materiais, a satisfação do seu complexo megalómano de poder, o sentimento de valor e prestígio pessoais. Servindo-se de todos os recursos de sedução disponíveis, o inimigo interno difama, pela via da imprensa (jornais, rádio e televisão) e das plataformas informáticas (msm, whatsapp, facebook, skype, twitter, etc.) os seus concorrentes e aqueles que julga que criticam o seu amigo/chefe e, pelos mesmos meios, elogia e venera o seu chefe, mantendo-o na sua mão, e abate os seus rivais através de textos que os denigrem e os afastem do seu protegido e encurralado chefe.
O resultado deste comportamento do subordinado/inimigo é nefasto para o chefe e sua organização. É que estes (chefe e organização) são pessoas humanas, localizadas num determinado contexto e, por isso, estão sujeitas a falhas, daí a necessidade de uma constante crítica que nunca pode aparecer deste inimigo interno antes que o seu chefe seja substituído por um outro, também por adorar.
Mas o fenómeno do inimigo interno é muito mais complexo do que se pode imaginar para se fazer uma crítica ligeira a este tipo de comportamento. É que, segundo a visão pós-modernidade, sendo o inimigo oposto a amigo, estes pólos são naturalmente separados mas iguais, ou seja, ocorrem simultaneamente. Isto sugere que ser amigo é ser inimigo, ou seja, pode-se ser inimigo na mesma altura na medida em que se deseje ser sinceramente amigo. Por exemplo, o facto de alguma organização ou pessoa se ter mostrado superiormente muito prestável (inteligente, vencedora, bondosa, etc.), em algum momento, para alguém, este pode assumir aqueles atributos excepcionais de forma eterna passando a adorá-la, admirando-a e obedecendo-lhe em tudo, sem que tenha que duvidar e questionar. Temos assim, entre eles, uma relação religiosa, em que o adorado se torna num espírito encarnado ante um crente ou discípulo total e eternamente dedicado, capaz de tudo, inclusive de morrer pela pessoa adorada. Uma simples voz de ordem/comando do chefe é mais que suficiente para que o discípulo a cumpra pontual e disciplinarmente sem se preocupar com as causas, objectivos e efeitos da sua acção. 
ESTE comportamento do discípulo, se bem que em algum momento possa ser útil ao seu adorado, é prejudicial a este pois não contribui em nada para o fortalecimento do seu “deus”.
Por ouro lado, muitas vezes, o discípulo exclui e afasta qualquer outra pessoa que critique o chefe.
Mas esta forma de agir do subordinado ganha oportunidade junto de um chefe fraco, ditador e corrupto. É que o discípulo assume-se protector e a fraqueza do chefe acolhe e satisfaz-se no apoio expresso pelo seu subordinado. O carácter ditador do chefe, ao julgar-se superior em tudo em relação aos outros ou por pretender satisfazer os seus interesses egoístas, exige que seja rodeado de pessoas obedientes, afastando (-se) aquelas que possuem a capacidade, inteligência e integridade próprias e, por isso, capazes de o contrariar e aconselhar. Para satisfazer os seus apetites de corrupção não quer ser criticado, mas apoiado no que deseja e, por isso, rodeia-se de pessoas obedientes, também corruptas para juntos se dedicarem à satisfação dos seus instintos.
Entre o chefe e o seu subordinado, aquele é que é responsável pelas relações que se tecem entre eles, pois tudo depende dele, daí que importa reportar casos exemplares dum relacionamento positivo.
Actualmente, o mundo registou um dos brilhantes chefes cujo relacionamento com os seus subordinados é exemplar e constitui motivo para citação. Trata-se de Nelson Mandela, ex-dirigente do ANC sul-africano e Presidente da África do Sul. O seu exemplo de liderança é fonte de inspiração para quem, de facto, deseje imprimir uma relação positiva e construtiva entre o chefe e os seus seguidores. 
Referindo-se à importância da liderança, Mandela assinala que “a qualidade de mudança na nossa sociedade dependerá, em grande parte, da qualidade da liderança” e refere a função de líder nos seguintes moldes: “por ascendência, nasci para governar. Walter Sisulu ajudou-me a compreender que a minha verdadeira vocação era a de servidor do povo” e que “os líderes bons e sábios respeitam a lei e os valores fundamentais da sua sociedade (organização, Estado, etc.) ”. Um chefe com estas qualidades, que tenha definido a sua visão e os  objectivos, não se pode permitir ser rodeado de inimigos internos que só o elogiam e o adulam como um deus, pois precisa deles para o ajudarem na sua missão.
Reconhecendo que a relação chefe e subordinado depende daquele, Mandela afirma que “nas reuniões [partidárias, governamentais, etc.], afirmei, muitas vezes, que não queria camaradas fracos ou marionetes que aceitassem qualquer coisa que eu dissesse, pelo simples facto de eu ser Presidente (...) Fiz um apelo para um relacionamento saudável, que nos permitisse abordar as questões, sem hierarquias, mas em pé de igualdade, em que cada um pudesse expressar o seu ponto de vista sem receio de vitimização ou marginalização.” Com este posicionamento, Mandela libertava os seus subordinados com vista a exprimirem a sua opinião pessoal e assim se enfraquecia a actuação oportunista do inimigo interno que, por regra, evita criticar. Assim, o inimigo interno é levado a contribuir positivamente para o bem da instituição pois, com a sua opinião, vai-se identificar e demonstrar a sua capacidade e responsabilidade. Com esta atitude, Mandela revela-se um chefe humilde, sem complexo de superioridade.
Por isso, os chefes têm de, sistematicamente, rever a sua posição para evitarem ser considerados deuses ou infalíveis a ponto de Mandela, ante a sua santificação, afirmar que “eu queria ser um ser humano vulgar com vícios e virtudes” pois “se parecermos santos, as pessoas podem ficar muito desincentivadas”.
A existência de subordinados ou de qualquer pessoa que somente assume que o seu chefe ou instituição (movimento, partido, igreja, etc.) como isenta de erros constitui uma posição prejudicial a estes pois, de tanto elogio e adoração, podem acabar por se acharem, de facto, deuses e insubstituíveis e, ao assim se assumirem, só podem conduzir a instituição ao descalabro uma vez que não se permitem nenhuma crítica. É deste modo que surgem os ditadores, que fazem dos seus países e organizações sua propriedade pessoal e deliciam-se com o culto da personalidade que recebem dos seus inimigos internos. Assim, tornam-se eles próprios inimigos internos, de si próprios e das suas organizações, destruindo-as.
É neste sentido que a existência de lambe-botas, “yes-man” e G40 constitui um factor bastante destrutivo para as lideranças e instituições dirigidas por estes. É preferível uma onda de críticas destrutivas do que a ausência da crítica e presença daqueles adoradores. Samora alertava para o facto de que o apoio do inimigo devia ser motivo de desconfiança, pois este seria uma táctica para se continuar com o erro ou uma actuação benéfica para ele (o inimigo). Por sua vez, Mandela, ante a atitude popular de o considerar um santo, adverte que “se parecermos santos, as pessoas podem ficar muito desincentivadas” e que “eu queria ser visto como um homem vulgar com vícios e virtudes”.

Portanto, por mais que pareça que um chefe está a conduzir a organização de forma acertada, deve-se sempre esperar que possa cometer erros e nunca assumi-lo como infalível. Esta predisposição é suficiente para se evitar o descalabro do chefe e da instituição que dirige. FIM

In Jornal Notícias - 18.05.2017

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