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terça-feira, outubro 03, 2017

Os seis

Por Elisio Macamo

Num país normal devia ser normal posicionar-se criticamente sem ter de pedir desculpas a ninguém. O nosso país, infelizmente, não é normal. Há uma resistência à crítica que filtra o que se diz da pior maneira possível. Se você é da Frelimo e o seu partido é criticado, você faz da pessoa que critica o verdadeiro problema e chama-o de invejoso. Se você não é da Frelimo e os outros são criticados, você faz da pessoa que critica o verdadeiro problema e chama-o de lambe-botas e intelectual a soldo da Frelimo. Cansa, mas é o país que somos.
Nos últimos tempos tenho vindo a criticar algumas coisas na Frelimo e, em especial, na postura do seu chefe que tem sido tudo menos feliz e inspiradora de confiança no futuro. Não há nada de novo nessa minha postura. Mesmo o inimigo público número 1 do país, de quem me confessei fã, nunca escapou às minhas críticas. Sempre critiquei o seu discurso contra a pobreza; critiquei a prerrogativa que ele manteve de intervir nas universidades públicas que, no caso da UEM, levaram à reitoria dessa Universidade um indivíduo que foi destruir uma boa parte do que os seus predecessores tinham construído; sempre critiquei o esbanjamento de recursos públicos que as suas presidências abertas representaram e também critiquei a maneira como ele se propôs resolver o problema da instabilidade político-militar com amnistias que recompensaram o desprezo pela vida humana e pela constituição do Estado.
Ao contrário de muita gente que aparentemente critica por não gostar de fulano ou beltrano, ou deste ou daquele partido, eu critico com base em princípios políticos que considero importantes para a minha avaliação da situação do país. Não passo a vida apenas a distribuir “likes” aos “posts” que falam bem do partido ou dos políticos com os quais simpatizo, nem ando a compartilhar apenas textos daqueles que falam mal dos partidos e políticos com os quais não simpatizo. A crítica baseada em princípios constitui o ponto central da minha abordagem do político e disso não vou abdicar por muito que isso incomode as ovelhas disfarçadas de intelectuais que andam pelo facebook a envenenar o ambiente de debate. E, modéstia a parte, enquanto o tipo de postura que procuro manter na minha abordagem das coisas da nossa terra for coisa de minoria duvido que Moz avance à medida do seu potencial. De cada vez que aparece alguém aqui no meu mural a colocar o seu “like” a um “post” que critica a Frelimo e que essa pessoa o interpreta como “falar mal da Frelimo” porque é isso que essa pessoa sabe fazer; e de cada vez que alguém se exalta com a crítica porque essa mesma pessoa interpreta a crítica como “falar mal da Frelimo” simplesmente porque essa pessoa acha que só se deve falar mal dos outros, fico mais desiludido ainda com a qualidade das nossas abordagens.
O maior e mais importante partido do país, aquele que reúne talvez o maior número das melhores cabeças da nossa terra, realizou uma das maiores farsas políticas de que há memória no país a qual chamou de Congresso. Persistiu na confusão entre partido e estado – uma das razões por detrás da vulnerabilidade do Governo à chantagem da Renamo – reduziu a unidade à unanimidade, continuou a preferir slógans vazios à reflexão estratégica profunda e intronizou a aclamação no lugar do debate crítico, honesto e reflectido dos assuntos. Como nos velhos tempos da Frelimo gloriosa transformou-se o Congresso num momento de festa que celebrou a complacência, estimulou o oportunismo como qualidade importante para se ser membro e relegou o país à condição de apêndice da vontade de indivíduos ruidosos, disciplinados e dóceis. Confundiu a capacidade de cumprir com uma boa parte dos seus estatutos com “democracia interna” e contentou-se com gestos como manifestação de vontade política.
Seis pessoas salvaram a honra da Frelimo neste Congresso. Os cinco que votaram em branco e o que teve voto nulo no plebiscito que se fez para a presidência do partido – e que as ovelhas ruidosas insistem em chamar de “eleição”. Como se pode ver, muito pouco para inspirar confiança. É claro que não sei quais foram as motivações destas pessoas, se calhar nem perceberam o que tinham sido chamadas a fazer. Mas esses seis votos deviam envergonhar a todas as pessoas de bem que militam no partido, têm dúvidas em relação à maneira como as coisas são feitas, têm ideias alternativas, mas por excesso de fidelidade, ou falta de coragem, preferiram trocar a sua consciência e juntar o seu “sim” à manada. Os quase 100% que o presidente obteve não documentam a coesão da Frelimo. Não podem. Documentam uma unanimidade doentia que só pode fazer mal ao país. Documentam uma estrutura interna rígida que é hostil à reflexão crítica. Todo o resultado que vai para além dos 80% - e estou a ser generoso – revela um partido com pouca democracia interna, com pouco sentido crítico e com pouca coragem.
Este Congresso incomoda-me por duas razões. A primeira, e principal, é que revelou que o partido mais importante do país, aquele que tem o mandato para governar, não só não faz a minima ideia dos problemas do país como também não tem imaginação suficiente para se pôr à procura dessas ideias. Desde o discurso de abertura – um desastre autêntico – até ao programa – uma afronta à inteligência dos moçambicanos – o nível foi consistentemente baixo. O lema “unidade, paz e desenvolvimento” não podia ter sido mais inócuo. Ficou pouco claro para mim se é o instrumento da Frelimo para fazer um Moçambique melhor, ou se o Moçambique melhor é aquele que assenta nessas três coisas. Sabendo das grandes cabeças que a Frelimo tem no seu seio, fico sinceramente atónito que as coisas tenham ficado por aqui. Suponho que seja a “democracia interna” em acção...
A segunda razão tem a ver com um “déjà vu”. Lembra muito o segundo mandato de Guebuza quando o “poder da Frelimo” apertou o cerco ao presidente usando o triunfalismo típico de sistemas autoritários para promover uma imagem de si e do país que era apenas função do oportunismo de alguns. A história repete-se. Está-se a transformar Nyusi num indivíduo infalível e todo-poderoso. E o pior é que ele também começa a acreditar nisso. Daí a pensar que os assuntos do país sejam melhor discutidos por um grupinho de pessoas à revelia não só do público como também do seu próprio partido é apenas um passo. Desse passo a ter um contexto político em que decisões importantes são tomadas sem respeito ao conselho técnico – porque se este for contrário vai ser visto como afronta, insubordinação ou simplesmente contestação do partido – não há uma grande distância. Olá dívidas ocultas...
A Frelimo é um grande partido, mas é cada vez mais vítima da sua própria complacência. Tem muita gente no seu seio que se comporta como a torcida duma equipa de futebol que por ter mais meios financeiros domina o campeonato nacional. Confunde vantagem estrutural com capacidade. Eu sou apenas simpatizante, por isso estou-me nas tintas para a sua sorte. Mas tratando-se do partido que domina os destinos do país, preocupa-me esta complacência. Alguém dentro da Frelimo tem que ter a coragem de bater com o punho na mesa e despertar os outros da sua complacência letárgica. Isso passa por reflectir seriamente sobre três desafios fundamentais.
Primeiro, política não se faz ao nível da solução de problemas circunstanciais. Faz-se ao nível da identificação de problemas estruturais que estão na origem de todo um conjunto de problemas circunstanciais. Mesmo que a pseudo-intelectualidade nacional fique feliz da vida quando se declara a corrupção como principal problema, ela não é. O problema é a intransparência institucional para a qual a confusão entre partido e estado contribui. O melhor documento de compromisso com o combate à corrupção teria sido um debate sério sobre como o partido pretende abordar o problema da intransparência institucional.
Segundo, e ao contrário do que muitos pensam, o problema da Frelimo não é ter muitos bajuladores no seu seio. O problema é de se atribuir mais importância à lealdade/fidelidade ao partido do que à reflexão crítica. Quando um presidente por enquanto sem obra visível é confirmado no cargo com percentagens norte-coreanas é mais do que certo que uma boa percentagem dos delegados não está a ser honesta consigo própria e com a sua consciência. Unanimidade não é coesão. É conformismo e seguidismo.
Terceiro, o autismo partidário que leva muitos militantes da Frelimo a partirem do princípio de que enquanto a Frelimo estiver bem o país também está bem compromete o partido com uma representação surreal do país. Uma representação nesses moldes nunca vai ser uma boa base para a formulação de políticas coerentese exequíveis.
É muito deprimente que possivelmente só seis delegados tenham visto que estavam no filme errado. E reagido. Unanimidade, harmonia e litanias é coisa de seitas religiosas, não dum partido político. O país ficou órfão na Matola. Fim


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