Verdades, mentiras e omissões de Kapise
Kapise é o nome que
leva o espaço malawiano que está a albergar alegados refugiados moçambicanos, o
qual encerra em si uma imensidão de verdades, mentiras e omissões. A nossa
Reportagem percorreu aquele local, ouviu vários populares que para ali afluíram
que narraram que estão a sofrer bastante e querem regressar às suas casas.
Entretanto, ninguém
revela o que deu origem àquele êxodo com contornos políticos e criminais. Mas,
domingo esteve lá e desvenda o véu.
O surgimento do
centro de acolhimento de Kapise tem a sua gênese em Fevereiro de 2014, numa
altura em que se intensificavam as hostilidades militares na região centro do
país, com particular ênfase para o troço rio Save-Gorongosa, com epicentro em
Muxúngue, na província de Sofala.
Naquela altura,
começaram a ser audíveis, de forma meio tímida, alguns casos de sequestro de
líderes comunitários no norte da província de Tete, mas o centro das atenções
do país, e do mundo, era Muxúngue, pelo que o esclarecimento destes casos
tardou a chegar.
Tanto é que estes
episódios se sucederam em regiões remotas do interior do distrito de Moatize,
onde a presença da polícia era quase imperceptível, o que alimentava um certo
clima de impunidade e de “deixa-andar”.
Este quadro viria a
agravar-se logo após a assinatura do Acordo de Cessação das Hostilidades
Militares, de 5 de Setembro de 2014, pelo punho do então Presidente da
República, Armando Guebuza, e do líder da Renamo, Afonso Dhlakama, na
Presidência da República.
Enquanto aquele
entendimento era rubricado sob o olhar atento de todos os moçambicanos, e
quiçá, do mundo inteiro, a liderança da Renamo orientava mais de uma centena
das suas milícias armadas, que actuavam ao longo da Estrada Nacional Número Um
(EN1), a se transferirem para a região norte da província de Tete, mais
concretamente nas bases de Ndande, Mondjo e Cabongo.
Estas bases estão
localizadas no interior do distrito de Moatize, posto administrativo de Zóbwe,
lodalidade de Nkondedzi. Para uma fácil inserção deste grupo, o seu comando
distribuiu-os pelas aldeias em grupos de sete homens.
Às populações
locais cabia o dever de acolhe-los, alimentar e oferece-los guarita, o que deu
origem a casamentos, compadrios e outras afinidades entre as comunidades e as
milícias que se camuflavam de população a cada dia que passava.
Porque toda esta
acção decorreu em período pré-eleitoral, foram estes grupos que pregaram
naquela população que “desta vez, nós e o nosso líder, Afonso Dhlakama, vamos
ganhar as eleições”, com juras e promessas à mistura.
Por exemplo, assumiam
o compromisso de, logo depois do anúncio dos resultados, iniciar com o processo
de distribuição de tractores pelos camponeses e um vencimento de, pelo menos, 3
mil meticais para os líderes comunitários por si destacados, contra um subsídio
menor que o governo oferece mensalmente aos líderes tradicionais por si
acreditados.
Perante estas
garantias, sustentadas em juramentos, a população local anuiu sem pestanejar.
Tanto é que aquela região (norte de Tete) sempre esteve sob a influência
política da Renamo, o que facilitou a aceitação daquelas promessas.
Por outro lado,
trata-se de regiões onde o acesso à informação só acontece por via das
emissoras de rádio malawianas que emitem em chichewa, língua falada em ambos os
lados da fronteira. De televisão não se fala. Jornais, pior ainda.
LISTA DE
ATROCIDADES E DE VÍTIMAS
No interior de
Nkondedzi pairava um clima de impunidade total que era agravada pela ausência
física das autoridades da Lei e Ordem. Assim sendo, enquanto uns disparavam
contra pessoas e bens em Muxúngue, na província de Sofala, outros intimidavam e
sequestravam líderes comunitários residentes em cinco povoados de Nkondedzi.
Trata-se dos
povoados de Monzo, Ndande, Macululua, Magalauande e Cabongo que coincidem com
as bases da Renamo que, na verdade, nunca estiveram desactivadas desde o fim do
conflito armado dos 16 anos que terminou com o Acordo Geral de Paz de 4 de
Outubro de 1992.
Conforme apuramos,
estas áreas coincidem com as estradas que ligam a cidade de Tete às
estratégicas vilas de Angónia e de Zóbwe que, durante o primeiro conflito
armado só eram trafegáveis sob forte escolta militar. Apuramos que quando as
Nações Unidas organizaram o acantonamento dos militares antagonistas, muitos
homens da Renamo não se deixaram desmobilizar e permaneceram nas cercanias das
bases, disfarçados de camponeses.
Como forma de
manter a sua hegemonia nestes povoados, homens armados da Renamo que não foram
deslocados a Muxúngue iniciaram uma campanha de perseguição aos líderes
comunitários tidos como favoráveis ao partido no poder e a primeira vítima foi
Armando Sandifuna, do povoado de Magalauande.
Armando Sandifuna
era líder de segundo escalão e foi raptado em sua residência no dia 13 de
Fevereiro de 2014, por volta das 23 horas por quatro homens armados e nunca
mais regressou. O governo do distrito assume que deve estar morto porque nunca
mais se ouviu falar dele.
A seguir foi o
líder de primeiro escalão da comunidade de Tsuende, conhecido por Walace
Comulane Diace que foi raptado a uma hora da madrugada do dia 3 de Março de
2014.
Porque as incursões
criminosas não eram reprimidas, sete homens armados da Renamo sentiram-se tão
desafogados a ponto de se deslocarem para a sede da localidade de Nkondedzi
para disparar contra a casa do chefe da localidade, casa essa que funciona como
sede da localidade, em cujo quintal funciona o tribunal comunitário, entre
outros. Felizmente, ninguém foi atingido.
Depois destas três
incursões, consta que houve um relativo abrandamento deste tipo de operações,
pese embora decorressem outras acções de intimidação contra todos os que
demonstrassem alguma simpatia pelo partido Frelimo.
Entretanto, com o
regresso dos mais de 100 homens armados que actuavam em Muxúngue e com o calor
da campanha eleitoral, a barbárie atingiu o apogeu. Prova disso é que na noite
de 10 de Novembro de 2014, sete homens armados raptaram Fandessone Devaissone
Ndeure, líder de segundo escalão de Chidocoe. Este foi torturado durante três
dias numa base da Renamo e depois posto em liberdade.
No dia 27 do mesmo
mês de Novembro de 2014, quatro homens armados raptaram o líder de segundo
escalão de Nagulo, de nome Fernando David Ncueza. Esta deve ter sido a vítima
mais brutalizada por aquelas milícias.
Conforme apuramos
em Nkondedzi, localidade que visitamos ao longo da semana passada, “Fernando
David Ncueza foi espancado até à exaustão e transportado com as mãos e os pés
atados, como se faz com leitões e cabritos, com uma estaca a atravessar os
membros”, contam testemunhas oculares que sublinham que este viria a ser solto,
mas a sua vida virou de avesso porque vive apavorado e traumatizado.
Na senda das
atrocidades, no dia 27 de Janeiro de 2015, por volta das 16 horas, quatro
homens armados estabelecidos no povoado de Magalauande raptaram Mose Sustene
Nguetse e, enquanto este estava em cativeiro, o seu celeiro foi assaltado.
Depois mandaram-no de volta para casa.
No dia seguinte, 28
de Janeiro, as 22 horas, sete homens raptaram dois líderes do povoado de
Mutuagalu (cabeça de cão). São eles Durege Razão Sole e Armindo José Almeiro
que foram mantidos em cativeiro durante quatro meses.
A 28 de Setembro de
2015, um líder de segundo escalão do povoado de Ndande, conhecido por Camphete
Eduene Chathina foi levado da sua casa e nunca mais regressou ao convício
familiar. É tido como morto.
No mês de Outubro,
dia 21, foi raptada uma líder comunitária de terceiro escalão, de nome Joaquina
Donongue que nunca mais foi vista. Assume-se que tenha sido assassinada pelos
seus algozes da Renamo.
Porque ninguém lhes
fazia frente, as milícias da Renamo também raptaram pessoas singulares e
influentes, como é o caso do comerciante Francisco Chamuachale, entre outros
que conseguiram regressar vivos e outros de que nunca mais se ouviu falar.
MAIS BARBÁRIE
Referimos em
parágrafos anteriores que no interior de Nkondedzi vivia-se um ambiente de “faz
e desfaz que ninguém nos toca”, a ponto de a população acreditar que, de facto,
a Renamo é toda e rainha por ali. Veja-se o estágio a que a situação tinha
chegado.
Por exemplo, quando
as autoridades do distrito de Moatize relataram que havia homens armados a
atropelarem a lei e a ordem naquele distrito, o Comando Provincial mandou
estabelecer uma pequena unidade policial por ali, que devia patrulhar a área,
identificar e neutralizar os protagonistas daqueles actos.
Os agentes
destacados chegaram ao local e se dirigiram aos locais de onde vinham os
relatos de atrocidades. Uniformizados, armados e transportados em viaturas,
foram abordando as populações com quem cruzavam nas vias. “Homens armados aqui?
Nunca vimos. Devem estar lá mais adiante. Nas aldeias que estão para além
daquelas montanhas”, diziam os populares.
Sem imaginar o que
lhes espera, os agentes seguiram adiante e começaram a ser fustigados com balas
pelas costas. Este quadro se repetiu várias vezes. Afinal, aqueles camponeses
que conversavam tranquilamente nas bermas da estrada, nas machambas, nos
mercados das aldeias, nas áreas de exploração, entre outros locais, vestidos a
puros camponeses, civis e desprotegidos, que a polícia pretendia proteger a
qualquer custo, eram os tais homens armados.
Outras tantas unidades
foram sendo enviadas ao local e a estratégia mantinha-se a mesma. “Homens
armados aqui? Nem sonhar! Mas ouvimos dizer que andam por ali naquelas árvores.
Vão lá ver”. Mal a polícia virava as costas, eram regados com balas impiedosas.
Com as coisas colocadas
desta maneira, foi realizado um trabalho de inteligência que permitiu perceber
que havia informantes posicionados em Nkondedzi-sede que forneciam detalhes
sobre o número de agentes, tipo de meios que transportavam, entre outros.
Com os meios a seu
alcance, e porque a situação já escapava ao controlo das autoridades policiais
de protecção e de intervenção rápida, foram accionadas unidades das Forças
Armadas de Defesa de Moçambique (FADM) que neutralizaram os informantes
posicionados em Nkondedzi e penetraram para Ndande, Mondjo e Cabongo sem
pré-aviso.
Colhidos de
surpresa com a presença dos militares do Estado, as milícias da Renamo
iniciaram uma intensa troca de tiros que viria a culminar com a saída em
debandada daqueles locais, levando consigo a população que os acobertava. Há
relatos que apontam para a recuperação de bastante armamento, pesado inclusive,
que era mantido em esconderijos naquelas bases.
Com medo do dia 1
de Março
O estabelecimento
de unidades da Polícia da República de Moçambique (PRM) em Nkondedzi,
localidade com 19 povoados, justificava-se pelo facto de não só ocorrerem
sequestros, torturas aos opositores, como também porque havia relatos de
estabelecimento de tribunais comunitários geridos por homens armados e até
estruturas administrativas controladas por estes.
Daqueles 19
povoados, apenas cinco apresentavam sinais evidentes de stress devido à intensa
actividade política e também criminosa dos homens da Renamo. Nos restantes
locais, a vida continua numa boa. É importante realçar que Nkondedzi tem cerca
de 31 mil habitantes e os cinco povoados problemáticos concentravam à volta de
10 mil habitantes.
Parte das
estruturas e tribunais montados pela Renamo terão sido estabelecidas depois do
anúncio dos resultados eleitorais e favorecidos pelos discursos do líder da Renamo,
Afonso Dhlakama, o qual apregoa(ava) que vai governar seis províncias da região
centro e norte a parte deste mês de março.
Estes
pronunciamentos animaram ainda mais aquela população que vivia sob a liderança
dos homens armados que, por seu turno, sempre apregoaram um ódio visceral pelas
autoridades do Estado, com particular destaque para a PRM e FADM. Aliás,
apuramos que alguns residentes de Nkondedzi assumem que Tete não é cidade para
pisar, porque tem agentes da polícia pelas ruas. Fazem tudo no Malawi.
A ideia de que
Afonso Dhlakama poderá governar a partir do dia 1 de Março foi tão propalada na
província de Tete que alguns pais e encarregados de Educação, residentes na
capital provincial, recearam levar os filhos à escola naquela data temendo
eventuais tumultos.
No posto
fronteiriço de Zóbwe, por exemplo, agentes ali destacados revelaram que o
movimento de viaturas e até mesmo de peões cessou. “Poucas pessoas saíram à
rua. Pior à noite”, contaram-nos. Entretanto, e como testemunhamos, não passou
disso. A vida voltou à normalidade.
“Queremos regressar
às nossas casas!”
Depois de percorrer
a localidade de Nkondedzi, a nossa equipa de Reportagem deslocou-se ao centro
de acolhimento criado espontaneamente em Kapise, no Malawi, mas a escassos
metros da linha de fronteira com Moçambique. Aqui, a Organização das Nações
Unidas para os Refugiados (ACNUR) afirma para todos os que chegam que estão
concentradas cerca de 10 mil pessoas, mas que registadas de forma oficial andam
por ali umas oito mil pessoas.
A oficial de campo
da ACNUR, Elsie Mills-Tettey, impos uma série de regras que pareciam visar
impedir a nossa visita, debalde. Até quis saber se o jornal domingo, por
exemplo, era um órgão pró governamental ou não. Depois exigiu que as fotos e
filmagens fossem feitas em ângulos que não permitissem ver quem está naquele
campo.
Um dos dados que
salta à vista é que os números de pessoas ali albergadas parecem não bater com
a realidade. Dez mil ou até mesmo oito mil pessoas parecem demasiada gente para
os presentes. Aliás, a administradora de Moatize, Maria José Torcida, também
torce o nariz perante estes números e apela à necessidade de se fazer um
registo conjunto daquela população.
Ao contrário do que
Elsie Mills-Tettey esperava, foram aqueles deslocados que se aproximaram e
pediram para serem entrevistadas ao que anuímos. Um deles apresentou-se como
sendo Betinho, mas depois disse que podia ser tratado por Adelino, de 42 anos
de idade, que disse que estava a organizar a sua vida e futuro em Nkondedzi,
mas a situação virou do avesso e foi obrigado a abandonar tudo.
“Não tenho nenhum
problema em voltar. Quero ir para casa. Mas, tenho algum receio em relação à
presença da polícia e de militares. Só quero paz. É isso que a maior parte das
pessoas que aqui estão querem. Paz. Eramos pessoas prósperas lá porque
produzíamos feijão-boer e tínhamos dinheiro para viver tranquilamente. Hoje
estamos aqui feitos mendigos e nossos filhos não podem ir à escola”.
Fassitone Paulo
Chamuala também acercou-se de nós e pediu encarecidamente para dizer “vocês que
são chefes, façam algo pela paz. Estamos muito mal aqui. Só nos dão milho, óleo
e feijão para um mês. As condições de vida são precárias. Vivemos em cabanas
quando temos casas e bens em Moçambique. Queremos regressar às nossas casas”.
Depois vieram
muitos mais que não se importavam em ser fotografados e de falar para vários
microfones que lhes eram colocados à boca pelas diferentes equipas de
reportagem de órgãos nacionais que para ali se deslocaram.
Elsie Mills-Tettey
queixa-se da falta de espaço para acolher mais deslocados, lamenta a falta de
redes mosquiteiras e a proliferação de malária, a ameaça de doenças diarreicas
por falta de higiene individual e colectiva.
Há delegados da
Renamo entre os deslocados
Um dado que deixa
qualquer um espantado no Centro de Kapise é que não há um único professor ou
enfermeiro entre aquela população. Nem um para amostra. Quando se sabe que nas
cinco povoações de onde aquela gente procede há escolas e unidades sanitárias.
A própria oficial de campo da ACNUR, Elsie Mills-Tettey confirma esse dado.
O que apuramos de
fontes que ali encontramos é que no meio daquela população se escondem
delegados da Renamo cujos nomes nos foram fornecidos e aqui se seguem,
sabendo-se que alguns destes são bastante violentos e terão sido os mentores de
alguns actos relatados nesta Reportagem:
Texto de Jorge Rungo, Kapise, Malawi
Fonte: JORNAL DOMINGO – 06.03.2016
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