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sexta-feira, março 18, 2016

A Carta de D. Manuel Vieira Pinto que Samora Machel não leu (Parte 2)

Povo não sabe onde pôr o coração.
Aspirações do povo:
O Povo sente na carne e no espírito todas as violência: os massacres, os assassinatos, os maus tratos e as torturas. Sente a humilhação e a degradação. Sente a perda da sua própria vida e da sua própria alma: a perda da sua personalidade, identidade e cultura. E sente, com uma intensidade ainda maior, o profundo desejo de um tempo melhor: um tempo de maior justiça e de maior dignidade; um tempo de um bem estar maior a todos os níveis: a nível político, económico, administrativo e militar, a nível espiritual, moral e cultural. O Povo, esmagado por tantas violências e por tantas carências, aspira, de facto, a um tempo de maior justiça e de maior amor. Mas parece não saber donde poderá surgir, efectivamente, esse tempo de maior justiça e de maior amor. A desilusão é grande, e, como dizem os velhos, «o Povo não sabe onde pôr o coração».

Nenhuma das forças em presença lhe merece inteira confiança. Uns e outros, mercê das arbitrariedades e injustiças cometidas, humilharam-no e desiludiram-no. Mas, apesar de tudo isso, continua a sonhar com um tempo de justiça e de paz. Continua a esperar que alguém o tome a sério e lhe devolva a dignidade e a liberdade a que tem indiscutível direito. Impõe-se, portanto, o aparecimento de homens que façam uma verdadeira e clara opção pelo Povo, pela sua vida e os seus direitos, pelo seu desenvolvimento e bem-estar, pela sua personalidade e cultura, pela sua independência e soberania. Homens que façam sinceramente uma opção pela paz, contra a guerra e contra todas as armas de guerra, uma opção pela vida e contra todas as formas de destruição e de morte, uma opção pelos valores que possam salvar, efectivamente, a Nação Moçambicana.


Opção por uma política de maior verdade:

Em primeiro lugar, a opção pela verdade. Urge, de facto, uma política de maior verdade, a todos os níveis. A mentira, tão infiltrada nas Instituições, no Aparelho do Estado e do Partido, nos diversos sectores da vida nacional, terá que dar lugar a uma política de maior verdade. A hipocrisia, as meias-verdades, os discursos alienantes, a informação orientada, as diversas formas de manipulação e de instrumentalização, terão que dar lugar à sinceridade, à honestidade, ao respeito pelas consciências, pela inteligência, pela liberdade e co-responsabilidade de todos e de cada um dos cidadãos do nosso País. Só pelo cultivo da sinceridade e da verdade poderá haver, nos diversos sectores da vida da Nação, na Comunidade Política e nas Instituições partidárias, políticas, sociais, económicas, jurídicas, educacionais e culturais, consciências vivas, inteligências criadoras, liberdades solidárias e responsabilizadas, participação consciente e generosa.

A mentira, tenha ela a face que tiver, corrompe e aliena. Um povo governado ou orientado por mentiras organizadas ou por ideologias mutiladas ou redutoras, jamais será um Povo saudável e adulto. Será, pelo contrário, um Povo ameaçado naquilo que ele tem de melhor e mais profundo: a sua consciência, a sua liberdade, a sua dignidade e criatividade. Impõe-se, portanto, uma política de maior verdade e de maior sinceridade, uma política de maior serviço à dignidade, à liberdade, à criatividade e responsabilidade de todo o nosso Povo.

Opção por sistemas e modelos mais próximos e mais ajustados:
Impõe-se, também, uma opção por sistemas e modelos que tenham mais em conta o homem concreto, o Povo inteiro, ou seja, a totalidade dos seus legítimos direitos e deveres, e das suas justas e irreprimíveis aspirações. Que tenham mais em conta a inteira personalidade da Nação Moçambicana. Torna-se, portanto, imperiosa a revisão dos sistemas e modelos em curso, abandonando o que neles possa haver de humilhação e opressão, e conservando, com um espírito sempre mais crítico e mais aberto, o que neles houver de verdadeiro e autêntico crescimento do homem e do Povo.

Verificamos com tristeza que, apesar dos esforços havidos e dos sucessos alcançados, o Povo Moçambicano continua, na sua maioria, a ser objecto e não sujeito do seu próprio crescimento e da sua própria história. Continua, sobretudo, a servir, com grave prejuízo para a sua personalidade e liberdade, ideologias e culturas estranhas. Impõe-se, na verdade, uma lúcida análise das ideologias, dos modelos e sistemas, os quais, julgados, num dado momento, os melhores para servir a libertação e o crescimento do Povo, hoje se revelem como sistemas ou modelos menos ajustados e menos aptos a contribuir, eficazmente, para um real e solidário crescimento do Povo e da Nação. Impõe-se uma opção por sistemas e modelos mais próximos da cultura e índole do Povo. Não se trata de contrapor uma ideologia a outra, um sistema a outro sistema ou modelo, mas de proporcionar a todo o Povo possibilidades reais de ser, ele próprio, o sujeito indiscutível do seu desenvolvimento e da sua história, o primeiro responsável da sua independência e do seu destino.

Opção pelo homem concreto:

Esta opção por ideologias, sistemas ou modelos mais próximos e mais ajustados, implica, naturalmente, a opção pelo homem concreto, pelo Povo concreto e pelos valores que são inerentes e inalienáveis. Com isto queremos dizer que, no centro de toda a actividade política, económica, social, jurídica, cultural, deverá estar presente o homem concreto, real, o homem na sua inteira verdade, com a sua dimensão individual e social, com a sua imanência e transcendência, a sua vocação histórica e trans-histórica. O homem concreto e inteiro, e não o homem utópico, abstracto, reduzido ou parcelados. Devera estar presente o homem todo e o Povo todo: o Povo real, concreto e não o Povo abstracto ou utópico.

Opção pelos valores superiores do homem e do povo:

A opção pelo homem e pelo Povo, como tais, exige a opção pelos valores que os caracterizam e lhes dão, no conjunto dos Povos, uma fisionomia inconfundível. Exige, também, uma opção pelos direitos e pelas liberdades que lhes são inerentes. Urge, de facto, uma política de maior respeito e de maior empenho pelos valores essenciais ao homem e à sociedade, e pela cultura própria do Povo e da Nação Moçambicana. A experiência diz-nos que não basta, empenharmo-nos em alcançar mais valores científicos e tecnológicos, mais valores ideológicos, jurídicos e políticos, mais valores económico-sociais. Urge, efectivamente, um empenho que permita dar aos valores espirituais, éticos, morais, religiosos, culturais e humanos o lugar que lhes compete na libertação e crescimento de cada um e de todos, na construção da sociedade e na edificação da nossa Pátria. Urge um empenho mais sério e mais autêntico no sentido da defesa e promoção dos valores próprios do Povo e cuja perda ou destruição constituiriam um grave atentado à personalidade e à identidade da Nação Moçambicana, um prejuízo irresponsável para o património espiritual da humanidade e dos Povos.

Sem dúvida, não basta crescer ideológica, política e economicamente. Não bastam os valores que fazem o bem-estar material. Impõe-se a opção clara pelos valores do espírito, pelos valores superiores do homem e da sociedade. Caso contrário, poderemos assistir a um certo crescimento científico, tecnológico, político, económico-social e constatarmos, ao mesmo tempo, um crescimento e imparável degradação moral, espiritual e cultural do homem e da sociedade, do Povo e da própria Nação. O clima de violência, de arbitrariedades, de abuso e de egoísmo, os diversos crimes contra a vida, contra dignidade humana e contra os valores mais sagrados do Povo - como são os valores espirituais, morais e religiosos -, as mentalidades e comportamentos imorais, mostram bem a degradação e a corrupção do homem, da mulher, da família e da sociedade moçambicana não são, infelizmente, um simples receio, mas sim uma triste e preocupante realidade. Urge, portanto, uma ampla e corajosa promoção e defesa dos valores humanos, dos valores espirituais, morais e religiosos. A par dos valores da ciência, da tecnologia, da política e do progresso económico-social. Urge uma atenção maior e mais esclarecida aos sistemas de ensino, de educação e de cultura.
Opção pela não-violência:
A opção pelos valores espirituais, morais, culturais e religiosos, isto é, pelos valores superiores do homem e da sociedade, arrasta consigo uma outra opção inadiável: a opção pela não-violência. Talvez esta opção pela não violência possa parecer, à partida, um pouco ingénua ou irrealista. Contudo, ninguém ignora que a violência gera violência e que o cultivo da violência jamais levará à construção de uma sociedade não violenta. O avanço e generalização da violência arbitrária e assassina obriga-nos, por isso, a propor a opção pela não-violência. Só deste modo conseguiremos, verdadeiramente, uma sociedade e uma Nação de homens não-violentos, isto é, de homens capazes de vencer a tentação dos meios violentos, e de construir uma sociedade, recorrendo a meios humanos, racionais e pacíficos. A unidade nacional, a paz civil, a concórdia, a solidariedade, a amizade entre as diversas tribos, línguas e culturas que integram e caracterizam o nosso País, não virão pela violência das armas nem pelo cultivo do ódio e do espírito de represália e de vingança. Não virão pelas estratégias ou políticas de liquidação e destruição do adversário, mas sim pelo cultivo e defesa dos meios não-violentos. A paz digna, humana e duradoura, será fruto da justiça, da reconciliação, do entendimento, das conversações, da magnanimidade e da sinceridade de uns e de outros. Será fruto dos meios não-violentos, dos meios racionais, éticos, morais, políticos, diplomáticos e jurídicos.
Esta opção pela não violência, sem dúvida imperiosa e inadiável, implica, por um lado, que se encontrem as medidas adequadas no sentido de se pôr termo imediato às crueldades organizadas e premeditadas - como são os massacres, as execuções sumárias, os assassinatos, os castigos degradantes e as torturas -, de se acabar com as represálias indiscriminadas, as detenções arbitrárias, os julgamentos a partir das Polícias ou das Forças Militares, a captura e deslocação compulsiva de populações, o abuso das armas e a arrogância do poder. Impõe-se, de facto, uma ordem que proíba, terminantemente, esta prática hedionda da violência assassina. Uma ordem que exorcize, de vez, o espírito de vingança, de represália, de humilhação e liquidação física do inimigo, ou de pessoas e populações julgadas suspeitas ou encontradas nas áreas de influência do adversário.

Uma ordem que proíba as arbitrariedades, os roubos às populações indefesas, a destruição de casas e de bens, a violação de mulheres, o desprezo sistemático pelo direitos da pessoa humana e do próprio Povo. Que proíba às Tropas, e operações de reconhecimento, de controle ou de «limpeza», liquidar os homens que encontram e de levar consigo as mulheres, situando-as em zonas obrigatórias ou estratégicas. Uma ordem que proíba os abusos contra a Constituição, a Legalidade, a Ética e a Cultura da nação. Por outro lado, a opção pela não-violência implica que se promova e favoreça, a nível das consciências, da sociedade e da Nação, um clima de maior respeito e de maior concórdia. Um clima que permita, a nível das forças em presença, reduzir as posições extremadas, ultrapassar os ódios e o espírito de vingança, e faça nascer, pelo concurso de ambos os lados, aquele conjunto de meios não-violentos que tornem possível a reconciliação e a paz.

Isto exigirá, à partida, uma confiança maior na força moral e espiritual do homem e do próprio Povo, uma vontade maior de entendimento e de reconciliação, uma aceitação mais corajosa da política do diálogo e das conversações, como política decisiva para a paz nacional. Exigirá, também, que se abandone a linguagem da violência e se promova, a nível da Nação, uma linguagem, uma mentalidade e um comportamento de não-violência. Que se promova e assuma, com maior sinceridade, a prática da clemência, do amor solidário e da justiça. A paz nacional não virá da violência das armas, ou da violência do Povo armado, mas sim da força dos meios humanos, políticos e éticos, da força da justiça e do amor.

Opção pela justiça:

Urge, portanto, uma política de maior justiça, a par da política de não-violência. Uma política que se concretize, por um lado, na eficaz ultrapassagem de situações de injustiça e de medidas ou programas que segreguem, de algum modo, a discriminação, ou que favoreçam o aparecimento de novas formas de opressão e de alienação. Uma política que, por outro lado, abra caminho à prática da justiça e ao livre exercício dos direitos e liberdades de cada cidadão, particularmente no campo dos direitos políticos. Concretamente, a discriminação a partir dos privilégios e das facilidades de acesso aos bens de consumo, a partir do poder de compra em divisas, ou a partir de ideologias, posições partidárias, etnias, nacionalidade, região, cultura, religião.

Não basta, efectivamente, a preocupação pela justiça social, desconhecendo outros aspectos essenciais da justiça. Por isso, a opção pela justiça, garantia e guardiã da dignidade da pessoa humana e, bem assim, da unidade nacional e da paz civil, obriga a ter em conta aquela justiça que sirva o homem todo, isto é, o homem com os seus direitos individuais e sociais, os seus direitos económicos e políticos, os seus direitos culturais e espirituais, morais e religiosos, as suas liberdades objectivas e subjectivas. Aquela justiça que sirva o Povo inteiro, isto é, o Povo com as suas legítimas e indiscutíveis aspirações, com as liberdades fundamentais e indissociáveis da sua dignidade, criatividade e independência, com o direito indiscutível de ser, ele mesmo, o sujeito do seu próprio desenvolvimento, da sua libertação e da sua cultura.

Não é necessário lembrar a degradação da justiça, praticamente a todos os níveis. Sente-se, por toda a parte, uma grave e injuriosa forma de injustiça: o desprezo pela pessoa humana e, simultaneamente, uma crescente e irresponsável violação dos direitos humanos. As próprias Instituições, criadas e organizadas para defender e garantir a justiça, o direito, a dignidade de cada um e do próprio Povo, parecem claudicar neste ponto, agravando o desprezo pelo homem concreto e a violação sistemática dos direitos e de liberdades fundamentais. Impõe-se, na verdade, uma política de maior justiça em todos os campos, de maior defesa dos direitos invioláveis de cada um e da cada uma, e de maior respeito pela dignidade da pessoa humana, seja homem ou mulher, velho, jovem ou criança.

Opção pelo amor:

A opção pela justiça anda junta com a opção pelo amor. Não se trata de um amor abstracto, platónico, sentimental e inoperante. Trata-se, pelo contrário, de um amor que, na prática, se manifeste no reconhecimento e defesa do homem e do Povo, o compromisso com a vida e com as alegrias e tristezas, aspirações e frustrações, vitórias e fracassos de cada um e da cada uma, e que se empenha seriamente nos combates pela dignidade, a libertação, o desenvolvimento de todo o Povo, na partilha, na solidariedade, na amizade e na fraternidade. Trata-se de um amor que, em última análise, é «a lei fundamental da perfeição humana e, portanto, da transformação do mundo», de um amor que, pela sua força de libertação, de humanização e de entendimento, gera, alimenta e consolida a paz social, a paz civil, a paz nacional. Não será o ódio a força motriz dos homens novos, das sociedades novas e dos povos novos, mas sim a justiça e o amor. Não será a civilização do ódio e da violência assassina a civilização da paz e do progresso dos homens e dos povos, mas sim a civilização da justiça e do amor.

Senhor Presidente:

Na efectivação destas opções, que consideramos imperiosas e urgentes, Vossa excelência pode contar com o apoio que de nós dependa, como Bispos, como pastores da justiça, da verdade, da liberdade, do amor, da reconciliação, da concórdia e da paz, como pastores do homem e da sua dignidade, vocação e direitos. Terminamos, pedindo que não veja nesta nossa exposição outra intenção além de querermos ajudar seriamente na libertação e desenvolvimento do nosso Povo, na construção de um país sempre mais livre da humilhação e da violência, na edificação de uma Pátria sempre mais digna, mais culta e mais próspera. Aceite, Senhor Presidente, as nossas respeitosas e cordiais saudações e os nossos votos de muitas prosperidades, sobretudo no trabalho pela paz e pala unidade nacional. Que o Ano Internacional da Paz traga a paz a Moçambique, à África Austral, ao Continente Africano, Ao Mundo Inteiro.
Nampula, 25 de Setembro de 1986
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D. Manuel da Silva Vieira Pinto
Fonte: O Jornal, 16-09-1988


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