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quinta-feira, janeiro 07, 2016

“Não precisamos de um pacto social para manter alguém numa situação que não lhe agrada”

Entrevista com Elísio Macamo

Não vê problemas na descentralização proposta pela Renamo e diz que não faz sentido que os governadores provinciais sejam nomeados pelo Presidente.

O País: Disse ao jornal Público, de Portugal, em 2013, que Moçambique é uma construção muito frágil. “É como um castelo de cartas que pode ruir, no mínimo num sopro. Qualquer grupo de pessoas com vontade e com meios pode inviabilizar um país como Moçambique”. O que falta ao nosso processo institucional e democrático para que sejamos um país sólido, onde não haja esse risco de desagregação?

Elísio Macamo: Eu fiz esse comentário numa altura em que havia fortes ameaças de guerra em Moçambique, algo que depois veio a confirmar-se. Não há guerra, mas há uma situação militar muito crítica. A questão que os jornalistas em Portugal estavam a pedir é que eu fizesse um prognóstico em relação à guerra em Moçambique.
Num Estado como Moçambique, e isso diz respeito a qualquer Estado africano - qualquer Estado em formação - as instituições não são sólidas, naturalmente. O Exército, a Polícia, todas aquelas instituições que têm a missão de garantir a estabilidade de um país, não são suficientemente fortes, de tal modo que qualquer grupo de indivíduos que tenha um mínimo de organização e que tenha armas, sobretudo, está em condições de inviabilizar, ou pelo menos de desestabilizar seriamente esses países. Mas isso tem a ver com o facto de, apesar de muitos ainda não terem a consciência disso, sermos um país muito jovem. 40 anos de independência não é grande coisa no mundo e, depois, nós estamos sempre a ser comparados com países que existem há séculos, cujo processo de formação foi tão problemático como está a ser o nosso, aqui em África. Estamos em processo de constituição do nosso Estado e nós estamos a fazer esse processo num contexto completamente diferente do contexto em que estiveram os países europeus, na constituição dos seus Estados.

O País: Qual é esse contexto?

E: M. Só para dar um exemplo, talvez um pouco polémico, nós estamos a formar os nossos Estados num momento em que a definição de Estado inclui dar votos a toda a gente, independentemente do seu estatuto social, educacional e qualquer outra coisa. Não estou a dizer que isso seja má coisa, mas estou a dizer que quando os europeus criaram seus Estados, não o fizeram nessas circunstâncias. Esse é um exemplo. O outro é que nós estamos a formar Estados num contexto em que nós temos que respeitar direitos humanos. Não estou a dizer que os direitos humanos não sejam importantes, mas o que estou a dizer é que, tendo que respeitar todas estas coisas que os europeus não tiveram que observar na altura que estavam a formar os seus Estados. Portanto, é um contexto completamente diferente e é natural que a gente tenha problemas.

O País: O modelo que nós estamos a construir, por aquilo que está a dizer, é um modelo importado, mas estamos a importar de países que já ultrapassaram determinadas fases. Existe um outro caminho que não seja esse?

E. M: Não sei. É capaz de existir, porque a história é um processo aberto. O que significa que qualquer momento de construção de um Estado é um momento novo. Porque os factores circundantes, os factores que envolvem esse processo estão sempre a mudar. É por isso que nós, em Moçambique, Angola e Cabo Verde, ficamos independentes, mais ou menos na mesma altura, e seguimos o mesmo modelo, mas há grandes diferenças entre nós. Há certos padrões que são idênticos, similares, mas esses factores todos, a proximidade com a África do Sul, o tipo de políticos que nós tivemos aqui em Moçambique, o tipo de povo que nós temos, tudo isso faz com que o processo, apesar de seguir algo que nós definimos como sendo o mesmo modelo, acaba sendo diferente.

O País: Uma das coisas que sempre defendeu é que considerou uma possibilidade de guerra irreal. Defendeu que poderia haver distúrbios, mas a guerra não. Mas a ameaça em si de guerra já é em si a guerra, na medida em que tem efeitos psicológicos, tem efeitos ao nível da economia, da circulação das pessoas e das expectativas das pessoas…

E. M.: Aí estamos a entrar numa questão semântica e é um pouco complicado, porque é uma questão de sensibilidade política. Por exemplo, há pessoas que têm interesse em descrever a situação em que estamos como uma situação de guerra. É um interesse político, mas também pode ser ético para chamar atenção das pessoas para a gravidade da situação. Eu não diria que nós estamos em guerra, e também não acho que venha haver guerra em Moçambique, mas pode haver uma certa instabilidade. Pode haver uma situação tensa militarmente durante muito tempo, porque simplesmente nós vivemos num Estado que não é suficientemente sólido para suster esse tipo de golpes.

O País: Uma vez escreveu que a “Renamo se nutriu de problemas reais criados pelo totalitarismo da Frelimo, nos anos a seguir à independência”. E diz ainda que a Frelimo não é o que muitos de nós em Moçambique pensamos que é. O nosso país vive uma situação de instabilidade, de alguma forma influenciada pela Frelimo e pela Renamo. O que é a Renamo, o que é a Frelimo, do ponto de vista sociológico?

E. M.: A forma mais simples de responder é destacar três pontos. O primeiro ponto, eu acho que em certa medida, a Frelimo e a Renamo têm a mesma cultura política. É uma cultura que eu ia descrever como messiânica. Um pouco a ideia do salvador que vem e vai criar o Reino de Deus para os próximos mil anos. Há um pouco dessa atitude, o que cria um pouco de problemas na cultura política que temos aqui em Moçambique. A atitude é esta: eu vim libertar o povo e o facto de eu ter liberto o povo confere-me a prerrogativa de dizer como é que as coisas devem ser e as pessoas têm que ficar gratas. Qualquer crítica que as pessoas façam àquilo que eu quero fazer, é sinal de ingratidão. Eu trouxe a democracia, então toda a gente tem que estar grata, e qualquer crítica que se faça a mim é sinal de ingratidão. Isso é uma cultura política extremamente problemática que compromete a participação política das pessoas, afunila muito o campo político e faz do exercício do poder um jogo de soma zero. Ou eu tenho poder, ou eu não tenho poder e não há nada no meio, e como não há nada no meio não há nenhuma possibilidade de articulação com os outros. Nós podemos fazer mais distinções dentro disso em relação a Frelimo e a Renamo, podemos, por exemplo, fazer referência ao facto de que, apesar de tudo, a Frelimo teve um projecto político mais elaborado, muito mais claro, e com muito mais sentido, do que foi com a Renamo. Portanto, apesar de tudo nós temos que reconhecer isso. E uma parte dos problemas que a Renamo tem deriva do facto de que, ao contrário da Frelimo, o seu projecto político de viver, de se alimentar da mesma cultura política, nunca esteve claro. A democracia não é um projecto político. E nós vemos os problemas que eles têm. Quando eu dizia que a Renamo alimentou-se dos problemas da Frelimo, podia ter sido o contrário. Se a Renamo tivesse feito a independência de Moçambique, uma vez que tem a mesma cultura política, teria fechado o campo político, teria fechado tudo e teria criado espaço para que houvesse um campo de contestação que levasse, como foi no nosso caso, ao exacerbar do conflito, mesmo tendo em conta o facto de que houve o factor sul-africano, o factor do Apartheid, a desestabilização, etc, mas o facto, também, é que não havia muita liberdade aqui no país. Nós estávamos a viver um sistema que não permitia alternativas.

O País: E é esta falta de cultura política que acaba de descrever que influencia a falta de resultados no diálogo político que nós temos hoje?

E. M.:Bom, eu acho que influencia. Porque em grande medida o que está a ser negociado lá é justamente esta prerrogativa de poder. É verdade que algumas das reivindicações que são feitas pela Renamo fazem sentido, uma vez que o nosso, e qualquer sistema político podia ser melhor. Por exemplo as irregularidades nos pleitos eleitorais, a partidarização do Estado, o facto de haver mais privilégios para quem está no poder em relação a quem está fora são problemas que têm de ser abordados. Então eu acho que em certa medida está-se a negociar de facto o poder, e ao mesmo tempo essa negociação está a ser feita sob o pano de fundo de questões que são reais. Quero aproveitar a oportunidade para dizer que acho que seria importante abrir o diálogo para todos os moçambicanos. O novo governo tem a prerrogativa de dizer “vamos tentar um outro caminho”. E para mim, esse outro caminho não passa por continuarem fechados no Centro de Conferências Joaquim Chissano, mas por abrir este debate ao MDM, à sociedade civil, e a todos outros actores sociais. Precisa-se criar uma conferência nacional para se pensar neste país de novo.

O País: Há cerca de quatro anos que o Governo e Renamo decidiram sentar para dialogar, mas vemos que não há entendimento e não se consegue desbloquear os impasses. Defendeu a necessidade de envolvimento de toda a comunidade moçambicana, no sentido de discutir a agenda nacional. Mas a questão de fundo é como é que se constrói esse caminho?

E. M.: O Governo, por exemplo, deve mostrar onde é que as coisas estão a imperar. Se é que, por exemplo, as coisas estão a imperar por causa da intransigência da Renamo, cabe ao Governo informar a sociedade. Por sua vez, a Renamo ganha com a abertura do debate porque ela pode mostrar a alegada falta de vontade do Governo. Penso que não precisamos de grande reflexão para encontrar o caminho para a abertura do diálogo. É simplesmente uma questão do Presidente da República ou o partido que está no poder dizer que nós já tentamos tudo, já fizemos tantas rondas negociais, tentamos o desarmamento e nada resultou, mas este país tem que continuar. Nós fizemos muito nestes últimos 40 anos e não vamos querer perder tudo que construímos. Dai tomarem a decisão de convidar todos os representantes dos moçambicanos, em jeito de partidos políticos e de sociedade civil, e as confissões religiosas.

O País: Mas o actual Presidente logo que chegou ao poder reuniu-se com o líder da Renamo, do MDM, com as várias igrejas e chegou até a fazer uma conferência para discutir a paz e a violência. Não será um sinal de um caminho que este Presidente está a tentar mostrar no sentido de reconciliar a família moçambicana?

E. M.: Sim, eu acho que ele tem feito muito nesse sentido. É verdade que algumas pessoas fazem troça dele, dizendo que ele ainda não é Chefe de Estado, mas ele tem feito várias coisas como as que mencionou. Mas essas são coisas pontuais. E eu estou a referir-me a uma acção muito mais formal. Ainda que tenha que chegar ao ponto de dizer “eu declaro as rondas negociais com a Renamo encerradas completamente, e nós vamos fazer outra coisa. Vamos nos sentar todos no Centro de Conferências Joaquim Chissano e vamos falar como vamos gerir este problema. Vamos falar dos pleitos eleitorais, da organização territorial”. Ainda que isso tenha que passar por uma reforma da Constituição, de modo a criar esse espaço de diálogo. Na verdade, o problema agora é que as negociações têm como fim acomodar a Renamo e a Frelimo. E o problema que nós temos agora não é a acomodação, e sim encontrar uma maneira de vivermos todos juntos.

O País: No primeiro painel do MOZEFO discutiu-se a questão da humanização do crescimento. Na ocasião defendia-se a necessidade de um pacto social sobre os principais temas do país, e a criação de instituições que fossem capazes de conservar a memória institucional e conduzir a um processo de desenvolvimento. Qual é a sua opinião em relação a estes dois pontos?

E. M.: Eu não sou muito amigo desse tipo de terminologia “pacto social”, “instituições fortes” e posso explicar porquê. Em vários pontos do país onde as pessoas vivem em comunidade não fizeram nenhum pacto social, e vivem bem umas com as outras, e resolvem os problemas quando se desentendem. Tudo o que um país precisa para viver bem é de uma Constituição que é respeitada. Portanto, para mim o melhor pacto social é a Constituição. É ela que estabelece as regras de jogo, e é isso que nós precisamos. Quando as regras de jogo não são respeitadas entra a ética e a moral. Também não sou muito amigo da agenda 2025, tanto que na altura que foi feita critiquei.

O País: Mas então como é que identificamos os nossos objectivos a curto, médio, e longo prazo?
E. M.: Não temos objectivos em comum. O problema está aí de pensar que nós temos objectivos em comum. Nós somos um acidente histórico e geográfico. Encontramo-nos por acaso e temos que partilhar este espaço, e não precisamos de ter um objectivo comum. O único objectivo comum que nós precisamos de ter é de não resolver os nossos problemas indo a garganta um, do outro e criar espaço para que cada um de nós defina o seu objectivo e o alcance.

O País: Mas a falta dessa visão comum sobre os objectivos que nós queremos não é essa razão que despoleta os desentendimentos?

E. M.: Não, não é. É o egoísmo, a prerrogativa do poder que algumas pessoas têm, e a ganância. É toda uma série de coisas menos a falta de objectivos comuns. A ideia do objectivo comum para mim só faz sentido quando ela é entendida como regras do jogo. E é a Constituição que faz isso. Eu tenho ouvido muita gente a falar disso, mas para mim esse é um pensamento extremamente nocivo para a vida em democracia. Cada um de nós tem as suas aspirações. Até pode aparecer um partido político dizendo que devemos apostar nos objectivos comuns. Mas não pode dizer que só assim o país será viável.
Eu não acho que a pré-condição para o bem-estar, e seja lá o que isso for, seja a existência de instituições fortes. As instituições fortes são muitas vezes o resultado do desenvolvimento. Aquilo que a gente vê nos Estados mais avançados, é justamente isso. Eles não criaram instituições fortes e depois desenvolveram-se. As instituições ao longo do tempo, por si só ficam mais sólidas. Mas há uma grande guerra que a gente tem que fazer todos os dias para que essas instituições fiquem cada vez mais fortes. Mas nós temos muito essa mania de usar palavras que pensam por nós. Então nós não interpelamos o significado dessas palavras e depois temos dificuldades em perceber o que está a correr mal no nosso país, porque há muitas palavras que nos descrevem um mundo fácil de alcançar. Mas essas coisas não são fáceis de alcançar.

O País: Os objectivos de desenvolvimento do milénio foram substituídos pelos objectivos de desenvolvimento sustentável. Como é que vê o projecto desta nova agenda global, embora já seja possível prever o que vai dizer tendo em conta que o que disse anteriormente?

E. M.: Eu na altura critiquei muito esses objectivos do milénio. É perca de tempo aquilo. Até chega a ser uma brincadeira de mau gosto. Não quero de forma alguma pôr em causa a necessidade de não termos pobreza, e as pessoas serem saudáveis. Mas essas não são coisas que podem ser feitas com intervenção técnica. Reduzir a pobreza é um problema político. Dar a saúde às pessoas é um desafio político. A minha crítica incidiu-se mais na ideia de que alguém em Nova Iorque podia tomar essa decisão e depois dizer vocês agora têm essa tarefa de fazer isso aí e nós vamos mandar dinheiro. Como se eles tivessem feito as coisas dessa maneira nos seus próprios países. Eles têm consciência de que eles próprios levaram muitos anos, travaram muitas lutas para atingir esse patamar. E tudo isso deveu-se a intervenções políticas e não técnicas.

O País: O professor Severino Ngoenha defende que é preciso reforçar o sentido de pertença. Aliás, esse foi um tema muito levantado aqui no MOZEFO. E é recorrente este discurso de autoestima, de dizer que os moçambicanos durante o início dos anos da independência tinham este sentido de pátria, mas hoje já não existe. Afinal de contas, o que quer dizer sentido de pertença?

E. M.: Eu acho que ele tem razão. Nós precisamos sim de sentido de pertença, porque isso é muito importante. Lembro que no primeiro dia do MOZEFO falou-se que havia um maior sentido de pátria, mas eu não concordo com isso. Houve um projecto político que tinha uma ideia muito clara do que é a pátria moçambicana, e essa ideia do que é a pátria moçambicana criou-nos muitos problemas porque era muito excludente. É preciso ter em conta que o processo de construção do país tem vários níveis. Há um nível que é o do Estado, e há um nível que é da sociedade. Então, o Estado é a prerrogativa que alguém tem de monopolizar os meios de violência. Refiro-me à violência de dizer “eu estou a dar ordens para você dizer isso aí”. Olhando para a história do processo de construção de Estado na Europa, notamos que a construção foi, primeiro, por monopólio, através da implementação dos meios de violência. E este monopólio não implicava a aceitação dessa prerrogativa por parte da sociedade. Era um projecto de força contra a sociedade, mas a longo prazo foi necessário que essa prerrogativa fosse legitimada pela sociedade. E é por isso que entra todo esse processo democrático que vai permitir que o uso da violência pelo Estado seja aceite pela sociedade. Então, esse é que é o problema que nós tivemos em 1975. Tivemos um projecto político que era na verdade um Estado que queria formar um Estado-Nação, mas formá-lo é preciso esse elo de legitimação. E esse elo de legitimação sempre foi muito fraco. Na altura, parecia ser mais forte simplesmente porque nós estávamos na euforia da independência. Mas não é porque havia legitimidade para o projecto ideológico da Frelimo naquela altura.

O País: Uma das ideias que defende é que a ausência da alternância política não é necessariamente uma coisa má. E que haja coerência no agir político, e na força da sociedade. Disse também que a dominação de um partido não tem de ser uma coisa necessariamente má. O que quer dizer com isso?
E. M.: Eu acho que o país precisa de um ambiente mais democrático do que é agora. Naturalmente, que em qualquer manifestação política há sempre vícios. Por exemplo, o facto de termos um partido que está há muito tempo no poder cria os seus vícios. Mas o problema não é nós termos partido político a ganhar sempre as eleições. O problema é toda a cultura política que nós temos. Nós podemos alterar os governos e continuarmos com a mesma situação que algumas pessoas criticam.

O País: A Renamo levantou a questão da regionalização, centralização, ou seja, da necessidade de termos o poder mais próximo das pessoas. No seu ponto de vista como reforçar a legitimidade do poder público junto dos governados num país tão extenso, pobre e sem estruturas de base como o nosso?

E. M.: A pobreza não é o problema. Muitas vezes a forma como a gente coloca as coisas sugere um problema falso. Aquando da introdução das autarquias eu defendi a ideia de que era preciso arriscarmos mais democracia. E não fazer esse gradualismo que durante muito tempo foi visto como a melhor forma de proceder. E eu dizia que nós tínhamos que ter a coragem de devolver o poder ao nível mais local. É justamente porque o país é grande que o poder precisa ser devolvido às instituições locais. Também não percebo a lógica de termos governadores provinciais indicados pelo Presidente. Eu acho que o governador provincial devia ser indicado pela assembleia provincial. Se é que existe a necessidade de eles existirem. Eu sei que um dos argumentos é a questão da representatividade do Chefe de Estado. Mas para mim esse argumento não é válido, porque toda a instituição do Estado representa o Chefe de Estado. E o Chefe de Estado é representante do povo, então onde está o povo que o Chefe de Estado está representado. E o contrario também. O segundo ponto é que nós temos uma organização política das regiões em Moçambique que é extremamente problemática, sobretudo no que diz respeito à relação entre o governador e as assembleias provinciais. O último e terceiro ponto que gostava de avançar é que houve nos últimos tempos essa coisa da Renamo querer não só criar províncias autónomas como também inclusivamente dividir o país. Penso que nós precisamos de alguma legislação que conte com essa possibilidade e permita as pessoas movimentarem-se no sentido de se separar, se o quiserem fazer. Porque como eu disse, nós somos um acidente histórico e geográfico, então não há nenhuma lei da natureza que diz que Moçambique está condenado a ser sempre Moçambique do Rovuma ao Maputo.

O País: Mas essa ideia de separação, de dividir, de regionalização, sobretudo a nível do poder instalado, não é recebida de bom grado. Se a legislação criar espaço para essa desagregação não se corre o risco de ferir um projecto político que existe em Moçambique?

E. M.: Sim, corre-se esse risco. E eu fico contente que o governo se sinta incomodado com essa possibilidade. Porque mostra também o compromisso que ele tem com o país como um todo. E não há nada demais nisso. O que eu estou a dizer é que em política real temos que contar com esse tipo de coisas. Nós precisamos de mecanismos que nos possa permitir decidir sobre essa questão. Aparecer alguém a dizer que eu já estou farto de ver a minha província como parte de Moçambique, eu quero sair daqui. Essas são as tais regras de jogo que estou a falar. Não precisamos de um pacto social para manter alguém numa situação que não lhe agrada. Então nós temos que contar com isso. O que podemos fazer é ter prudência, pois apesar de tudo um país é uma coisa séria. Temos de garantir que esses mecanismos de separação sejam os mais difíceis possíveis.

O País: Não acha que existe o receio da descentralização acabar com as zonas de influência política?

E. M.: Pode ser que haja isso, e para mim é natural devido à própria estrutura do país. Ter o poder do Estado é uma prerrogativa muito grande. O multipartidarismo trouxe certas vantagens. De modo que é natural que aquelas pessoas que já detêm o poder do Estado tenham receio de perder esse poder, ao se descentralizar. Mas eu acho que o problema está na própria concepção política que nós temos de achar que o Estado existe para fazer as coisas para as pessoas.

O País: Mas não deve ser essa a concepção, o Estado não está para servir as pessoas?

E. M.: Não é que não deve ser. É minha opinião e é uma opinião política. Eu acho que a melhor concepção do Estado que nós podemos ter é aquela que limita as prerrogativas do Estado apenas ao estabelecimento da ordem, a criação, naturalmente, das infra-estruturas, mas que se envolva o menos possível na vida das pessoas. Quando uma pessoa tem a concepção de que o Estado tem que fazer tudo, e uma outra aparece a dizer que tem que descentralizar, essa pessoa vai sentir-se castrada naturalmente.

O País: Apontou uma vez que a sua maior esperança é a competência, a qualidade do debate. Disse que isso lhe preocupa muito. Aliás, suspendeu as suas análises, os comentários que fazia no seu blog, alegando ter sido mal interpretado. Que reflexos esta falta de qualidade da nossa discussão, a falta de qualidade que muitas vezes tem levantado do nosso ensino é o factor crítico para o desenvolvimento do nosso país?

E.M.: Quando suspendi o blog era mais por falta de tempo, não foi porque tivesse sido mal-entendido. É verdade que senti que havia alguns problemas na forma como discutíamos e que muitas vezes as discussões que nós fazíamos tinham pouco com o mérito das questões e muito mais com a protecção das convicções das pessoas. Eu acho que a competência nos debates é o que faz um país. Um país onde a qualidade do debate, onde a interpelação crítica é forte, é um país que tem grandes possibilidades de fazer muita coisa. Infelizmente o nosso país está a ficar cada vez mais polarizado, mesmo ao nível do debate intelectual. Quando eu digo polarizado quero dizer que o que conta não são os méritos das questões, mas o que conta é sempre a protecção das minhas crenças e políticas ideológicas. Eu acho isso muito triste e desanimador, muito problemático, e o debate intelectual, pelo menos aquele debate que eu sigo, sobretudo nos meios sociais, nos facebook é um debate muito ideológico, é um debate que não é objectivo, é um debate que não convida a debate. É sempre um arremessar de acusações, de especulações e isso não é bom para o país, não é bom para a intelectualidade. Isso permite-me dizer uma coisa, porque há muita gente a dizer que precisamos de educação, ensino superior para desenvolvermos, que é outro problema de reflexão que nós temos. As pessoas falam de estatísticas que mostras os países que desenvolveram, que investiram muito na educação. O outro problema é que o investimento na educação, na investigação, no ensino, também é resultado do desenvolvimento, não é o contrário. As estatísticas mostram isso para vários países. Há essa ideia de que, por exemplo, aqui em Moçambique precisamos formar as pessoas, mas quando eu vejo as pessoas que estão formadas hoje, a forma como elas discutem os assuntos, eu digo para quê que nós precisamos daquele tipo de formação, se é aquele tipo de pessoas que produzimos, que nos debates não vai a fundo nas questões. O que faz sentido é aquilo que confirma a minha opinião política de que há alguma coisa… nós podemos chegar a uma situação em seremos todos doutores. Parece que para algumas pessoas, se nós chegarmos nessa situação o país será desenvolvido. As pessoas esquecem que se todos nós formos doutores, nós vamos criar novos graus para haver de novo essa diferenciação. O que nós precisamos no país, não é exactamente de mais pessoas na universidade. O que precisamos é de pessoas bem formadas nos níveis inferiores de ensino no país. No ensino primário e no ensino secundário, gente que sabe ler, gente que sabe escrever e gente que sabe fazer contas, é isso que gente precisa, e o resto há-de vir. Se um indivíduo tem essas qualificações, pode aprender tudo, mas se não tem essas qualificações, não importa se é doutor, vai continuar ignorante.


Fonte: O País – 07.01.2016

Nota: nesta postagem distingui o entrevistador (O País) e do entrevistado (Elísio Macamo)

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