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domingo, julho 12, 2015

“Foi a FRELIMO quem agrediu o povo e depois foi agredida” (Repetição)

“Foi a FRELIMO quem agrediu o povo e depois foi agredida”
           Dom Jaime Gonçalves, arcebispo da Beira
Por Rafael Bié
Encontrámo-lo na sua “residência oficial”, num dos bairros da cidade da Beira, depois de tanto termos insistido para uma entrevista. “Vou a Maputo para uma reunião e depois volto”, foi a resposta que inicialmente obtivemos de Dom Jaime Gonçalves, Arcebispo católico da diocese da Beira. Perante a nossa insistência, depois do seu regresso de Maputo, respondeu-nos que “eu disse tudo o que tinha a dizer em Maputo”. Contrapusemos, afirmando que havia muita coisa sobre a qual ainda não se tinha falado. Controverso para uns, pró-RENAMO para outros, Dom Jaime é um homem de fortes convicções, e coerente para consigo próprio. Diz o que lhe vai na alma. Aparentemente, sabe muita coisa sobre o País. Convidamos o caro leitor a seguir o controverso sacerdote…

Queremos saber um pouco de si… quem é este problemático Dom Jaime Gonçalves?

Eu nasci no dia 26 de Novembro de 1936 em Nova Sofala, aqui na província de Sofala. Aqui cresci e fiz os meus primeiros estudos e depois passei para a Escola da Catedral da Beira. Vim a completar o ensino primário de então na Missão de Ama­tongas, na província de Ma­nica, onde fiz a quarta classe. Isso foi em 1954. Daí passei para o seminário menor em Zóbuè, na província de Tete. Estive em Tete até 1960. Foram seis anos de ensino liceal feito no seminário. Em 1960, passei para o se­minário maior de Filosofia, na Nama­acha. Depois fui ao seminário de São Pio X, na cidade de Maputo, onde fiz Teologia. Em 1967, terminei a minha formação e fui ordenado sacerdote mesmo nesse ano, a 17 de De­zembro. Trabalhei aqui na Beira na Paróquia de Ma­tacuane durante 22 me­ses. Em 1970, segui para o Canadá a fim de continuar com os meus estudos. No Canadá, formei-me em lide­rança social, em 1970…  aprendi muita coisa sobre reformas sociais, teorias de desenvolvimento. Em 1971, segui para Roma e dei continuidade aos meus estu­dos ainda como formador na Universidade Salesiana de Roma. Terminado isto, fiz uma licenciatura em ciências sociais na Universidade de Roma. Em 1975, Julho, volto ao País. Fiquei a trabalhar aqui na minha Diocese. Em 28 de Março de 1976, fui ordenado bispo.
Onde passou a sua adolescência?
Passei a minha adoles­cência na minha terra, em Nova Sofala, e, como qual­quer menino, ora ia à escola ora não ia… passava a vida a pescar. Preferíamos pescar do que ir à escola… íamos à caça dos passarinhos. À determinada altura, o meu pai decidiu me tirar de lá porque passava a minha adoles­cência nestas brinca­deiras. O meu pai mandou-me aqui para a cidade da Beira para ver se poderia estudar. Mesmo aqui na cidade con­tinuámos a brin­car, tínhamos também outras dificuldades na escola. Os mais atrasados sentavam no chão e eram ensinados por outros. Eu estava na Beira e mesmo assim não estava a render até que o meu pai decidiu me tirar da cidade da Beira. Passávamos o tempo a tomar chá, a ir aos bares, res­taurantes… havia aqui muitos chineses que vendiam uma série de coisas que distraíam os adolescentes. Os jovens gostavam destas coisas e gastávamos dinheiro nisto. Não éramos aplicados nos estudos. O meu pai tira-me e manda-me a uma escola onde seriamente se estuda. Man­dou-me a Amatongas.
Quem eram os seus ami­gos?
Eu não tinha amigos, porque era miúdo. Vivia com adultos. Lembro-me de um que estava a adiantado na escola e que vinha ter connosco. Vinha complicar-nos a vida que era para ter rebuçados. Mais tarde, veio a ingressar na FRELIMO e lá trabalhou, foi uma grande figura. Esta pes­soa recebeu muitos que estão hoje na FRELIMO. Mais tarde, entrou na história daqueles que foram assassinados, foram mortos. Era um dos meus amigos. As pessoas mais próximas, quando es­tudante aqui na Beira, eram os meus parentes que vinham de Nova Sofala. O meu pai era uma pessoa que gostava de se abstrair, vinha cá e saía com ele para uma pinga de sumo de caju.

“É preciso reconstruir a igreja”

Esteve sempre aqui na Beira como bispo…
Uma vez indicado bispo, tive que ficar aqui… outros novos bispos ordenados fica­ram em Maputo e Pemba, isto em 1975. Em 1976, foram ordenados cinco bispos. To­dos juntos começámos com as actividades, eu fiquei presi­dente da Conferência Epis­copal e presidente da Co­missão da Justiça e paz. 

Nessa altura, como é que era?

Fiz o trabalho da igreja naquele tempo com todas as adversidades… com todas as dificuldades que a revolução moçambicana trouxe para a igreja. Enfrentámos o proble­ma das nacionalizações … havia, como todos sabem, o problema das limitações das liberdades da acção da igreja. Não havia liberdade religiosa depois da independência. Os meios da igreja foram nacio­nalizados e eu e outros tivemos que enfrentar esse problema. Depois veio a guerra que também tivemos de enfrentá-la até que termi­nou com o Acordo Geral de Roma, em 4 de Outubro de 1992. Daí em diante, traba­lhámos aqui na diocese e no País no sentido de reconstruir a igreja no seu aspecto material. Queríamos que as missões nacionalizadas nos fossem devolvidas. É um trabalho que ainda continua, é preciso reconstruir a igreja… agora há um pouco mais de liberdades e de acção.
Lembra-se de um colega ou amigo especial do se­minário?
Éramos 18 na minha turma, chegámos ao fim dois, eu e o actual bispo de Tete, Dom Paulo Manjate. Outros foram ficando pelo caminho, entre eles o doutor João Nhai, que se formou na Jugoslávia. Voltou para aqui durante o governo de transição. Foi considerado reaccionário. Prenderam-no e mataram-no lá… lá em cima. Um outro foi estudar na América. Mas como tinha sido seminarista, estudou, acabou por sofrer nos campos de reeducação montados pela FRELIMO. É o Gilberto Waia. O resto ficou disperso.
Quando estava no semi­nário ouviam rádio, falavam sobre a independência?
No seminário do Zóbuè, líamos sobre as inde­pen­dências de alguns países africanos, através de revistas que os padres traziam. Ter­minei o curso em 1960 e já nessa altura se falava da independência do Congo, ouvíamos falar do Lumumba. Explicavam-nos o que era essa coisa de independência. Mas esse ambiente de seguir a situação política em África intensificou-se durante os estudos de Filosofia na Nama­acha, onde tínhamos acesso ao Diário e ao Notícias, jornais publicados em Maputo. Esses jornais falavam das indepen­dências. A independência do Congo foi muito turbulenta. Apareceu, muitas vezes, a história de Moses Tchombe. Depois do almoço ficávamos a ler jornais.

“Não sofri a tentação da política”

Chegou a pensar em se juntar à FRELIMO para ajudar  a libertar o País?
Nunca tive a tentação de me juntar a qualquer mo­vimento que quisesse libertar o País do jugo colonial. Sei de colegas que nos deixaram lá na Namaacha, colegas que optaram por esse caminho. Fizeram essa opção e eu fiz a minha. Muitos saíram do seminário e foram para o Malawi, outros para a Tan­zânia. Muitos dos meus colegas optaram por sair do seminário e ir para a liber­tação. Mas, em suma, quero dizer que não sofri a tentação de seguir política. Eu quis sempre ser padre e não me convinha ter ideias que obs­taculizassem a minha car­reira. Naquele tempo, era proibido falar de política no seminário. Mas tive colegas que nos deixaram. Portanto, na Nama­acha, houve muito fervor dos jovens pela liber­tação. Na década de 60, começa-se a falar da criação da FRELIMO. Mais tarde, é assassinado Eduardo Mon­dlane. Nós tí­nhamos rádio e, à noite, ficávamos com o ouvido colado a ele, a ouvir as emissões da Rádio da China. Esta rádio dava-nos o curso das actividades da FRELIMO. Não era permitido ouvir esta rádio, mas nós ouvíamos.
Não se recorda de ne­nhum colega seu especial? 
… sim, me lembro… de alguns colegas que aban­donaram o seminário. Estes meus colegas ficaram famo­sos, porque foram atingidos pela crise dos seminaristas na FRELIMO, em Na­chin­gwea. O grupo dos semina­ristas teve de abandonar a luta directa pela indepen­dência por razões ideológicas e também por causa das lutas que havia no seio da FRE­LIMO, em Nachingwea. Lem­bro-me do padre Mateus Gwendgere e de tantos outros que saíram dos seminários para a libertação. Foram para a Tanzânia, mas a FRELIMO acabou por criar confusões. Só o facto de o presidente Mondlane ter sido assas­sinado já era problema. Os que assassinaram Mondlane tinham uma finalidade. Os outros que não concordassem com este grupo que assas­sinou o Eduardo também eram um alvo a abater. Facilmente, a FRELIMO entrou em conflito na sua liderança. E o principal grupo alvo na FRELIMO, que tinha que ser abatido, era exacta­mente o dos semina­ristas. Muitos deles acabaram por fugir da Tanzânia e foram parar em Nairobi, no Quénia.
A história da libertação não poderá esquecer este grupo de moçambicanos. Alguns conseguiriam, mais tarde, bolsas de estudo e partiram para os Estados Unidos. Deste grupo, lembro-me de um que voltou e foi ministro. É o tal de (Bernardo) Ferraz, de Quelimane, que estava no (Ministério da Coordenação do Meio) Am­biente. Um outro do meu tempo é o actual vice-ministro dos Negócios Es­trangeiros e Cooperação (Eduardo Ko­loma)… os outros andaram perdidos, outros ainda foram perseguidos, presos e alguns foram mortos. Outros estão na sua vida privada, alguns nos Estados Unidos. O irmão mais velho do antigo gover­nador de Sofala está também nos EUA. Fez engenharia química lá. Depois decidiu ir estudar medicina na Ale­manha. Este é o irmão de Francisco Mas­quil. Entre os mais velhos está o Dr. João Munhai que é locutor na Voz da América.

“Samora foi ateu até à sua morte”

Faz menção a “dificul­dades da revolução”… o que é isso?
Para a igreja, a revolução moçambicana, essa revo­lução marxista, levantou problemas. Primeiro a ideolo­gia ateia… não só eram ateus, mas eram contra aqueles que acreditavam em Deus. Isso, perante a igreja, instituição de Deus, foi uma grande dificul­dade. A revolu­ção marxista da FRELIMO en­controu prin­cípios seus para nacionalizar bens da igreja. A FRELIMO fechou igrejas, capelas, trans­formou as missões em centros de edu­cação que ficaram centros de ateus. As missões para nós são centros de evan­gelização e não do ateísmo. Como íamos trabalhar com missões nacionalizadas, igre­jas na­cionalizadas e fechadas pela revolução da FRELIMO? A FRELIMO transformou as nossas igrejas em armazéns. A FRELIMO fechou a igreja de Macuti, fechou a Igreja de São Benedito (uma das maio­res), fechou a igreja do Dondo. Isto foi uma grande dificuldade para a igreja que acabava de receber bispos em 1977. Esta situação provocada pela revolução marxista da FRE­LIMO desmoralizou muitos padres, missionários e irmãs que trabalhavam nestas mis­sões. Muitos partiram.
Como se isso não bas­tas­se…
… Veja-se que a FRE­LIMO foi ao extremo de congelar as contas bancárias da igreja! Não podíamos movimentar as nossas contas sem prestar esclarecimentos à FRELIMO. E, nalguns casos, a FRELIMO ficou com o dinheiro da igreja. Che­garam a criar a Comissão de Liqui­dação que controlava as nossas contas. Perdemos a liberdade de movimentar o nosso dinheiro. Por acaso nem era muito dinheiro, mas havia a ilusão dos revo­lucionários de que a igreja era muito rica. Mesmo nós, como bispos, tivemos a falta de liberdade de movimen­tação. A revolução obrigou-nos a usar guias de marcha. Não podíamos tra­balhar junto dos fiéis sem guias de mar­cha. Há pessoas que foram parar nas celas, porque não as tinham. É preciso referir que não havia modelo único das guias de marcha. Cada um escrevia a guia como entendia e, muitas vezes, fomos vítimas desta situação. Fomos presos por causa de guias de marcha, que foram uma forma de controlar os bispos e também de perseguir a igreja. Foi uma grande asfixia na formação de ser­vidores da igreja. À juventude não era reco­nhecido o direito de praticar a religião. Tí­nhamos dificul­dades de edu­car as crianças e, em con­trapartida, endou­trinavam o ateísmo junto às crianças nas escolas. É claro que as crianças não enten­deram o problema que a revolução trazia para a igreja e sempre foram à catequese. As crian­ças foram mais exem­plares do que os adultos. Os adultos, esses, abando­naram Deus, juntaram-se à revolução e começaram a falar mal da igreja.

Mas os revolucionários agoram voltaram à igreja. Não lhe conforta isso?

Não, não voltaram! Os revolucionários não voltaram à igreja. O que verificamos é que, a nível individual, uns foram-se aproximando à igreja. É uma questão política, eles querem criar ambiente, apenas isso!   
     
Porquê questão po­líti­ca?

Ao fim e ao cabo, na arena internacional, o comunismo, a que se apoiavam os revolu­cionários, ficou bloqueado. Ficámos mal, porque o mundo passou a ser do­­minado pelo Ocidente. Era uma questão de opção, ou continuávamos comunistas apegados aos soviéticos moribundos ou seguíamos o Ocidente. Sa­mora Machel começou a perceber que não tínhamos aceitação no Oci­dente. Sa­mora conseguiu uma via­gem aos Estados Unidos, encon­trou-se com Reagan, foi ao Canadá, foi à Itália. É preciso sublinhar que Samora Machel foi à Itália, mas não foi ao Vaticano. Quem visita oficial­mente a Itália tem que ir ao Vaticano, mas Samora recu­sou-se a ir ver o Papa no Vaticano. Ele foi ateu até à sua morte, em 1986!
Regresso dos revolucionários
à igreja é por conveniência política

E depois?

E depois as coisas come­çaram a complicar-se em 1990. O Ocidente começou a dar apoio à RENAMO. Como diziam os americanos, “nós não vamos lá, o que os outros estão a fazer, no terreno, contra o comunismo chega”. Depois veio o antigo-ministro dos Negócios Estrangeiros, Joaquim Chissano, que co­nhecia melhor o mundo oci­dental e as suas reacções. Este faz uma opção de ir ao Ocidente e não para a União Soviética. Nessa escolha, Chissano tinha que mostrar que as teses comunistas não serviam. Então começa o processo da elaboração da nova Constituição em 1990, uma constituição que contem­plava a liberdade de religião. Foi nessa linha que come­çaram a libertar algumas coisas da igreja. Algumas foram reabertas. Ele autorizou a reabertura das igrejas e depois falou-se das missões que também foram reabertas. Mas, como se vê, o regresso ou reconhecer a igreja era uma questão de conveniência política. Não se pode ir ao Ocidente com as portas das igrejas fechadas. Cuba está como está por causa deste tipo de situações. É preciso realçar que há muitos exa­geros por parte dos ame­ricanos, mas se Cuba quer se integrar no mundo tem que alterar muitas coisas. Por isso, o regresso dos revolu­cio­nários à igreja não é um gesto de pedido de desculpas, de pessoas arrependidas, é uma questão de conveniência política. Os marxistas não tinham outra saída.

Acha que a guerra de­pois da independência é resultado do que chama dificuldades da revolução?

A guerra entre o Governo e a RENAMO é um fenómeno muito complicado. É preciso entender as causas e os processos desta guerra. Depois da independência nós pertencíamos a um deter­minado bloco, o soviético. A nossa independência foi celebrada nesse contexto. Havia dois blocos e um outro que se fez em Bandung, os Não-Alinhados. Quem não era do Ocidente ou não soviético era dos Não-Ali­nhados. Mas nós entrámos alinhados. Esta é uma cir­cuns­tância que a gente tem que ter em conta no encontro das razões da guer­ra, temos que ter em conta que, de facto, existia a filosofia da África branca. Nós fomos colo­nizados pelos portu­gueses, aqui ao lado tinhas o apartheid e a Rodésia de Ian Smith. A África branca sentia-se inco­modada em ter um vizinho pró-soviético aqui ao lado. A África branca, os portu­gueses, o apartheid e a Rodésia eram anti-co­mu­nistas. É um dado que a gente tem de jogar para com­preender esta guerra. Existe ainda um terceiro dado. Os próprios moçambicanos não tinham experiência do comu­nismo. Líamos pequenas histórias nas revistas. As pessoas ficaram assustadas com este novo modelo que trazia guias de marcha. Mes­mo dentro da própria FRE­LIMO, as pessoas não con­cordaram com algumas coi­sas e, mais tarde, o próprio Samora Machel não con­cordou. Numa das reuniões da FRELIMO, Samora per­guntou ao Sérgio Vieira, um dos ideólogos do regime: “O que é que eu vou fazer das vacas do meu pai?”. Segundo a ideologia marxista, ninguém podia possuir seja lá o que fosse. Isto foi um pouco tarde, mas para alguns aconteceu um pouco a seguir à inde­pendência. Começa um certo descontentamento na FRE­LIMO. Lembrem-se que a independência foi a 25 de Junho de 1975 e em 16 de Dezembro do mesmo ano há uma intentona. Naquelas circunstâncias, Samora Ma­chel foi implacável. Procurou aqueles que tinham feito a brincadeira e colocou-lhes numa ilha… uns conse­guiram fugir, os outros… Então, no conjunto, con­frontámo-nos com a África branca, com o apartheid e com a Rodésia, nós mesmos estávamos as­sus­tados com o marxismo e alguns ficaram desa­pon­tados… tudo isto entrou na motivação para haver conflito que, no prin­cípio, foi ideoló­gico, mas que acabou por ser militar. A África branca, o apartheid e Ian Smith aprovei­taram-se do desconten­ta­mento de alguns revolu­cionários e deram-lhes apoio. Este conjunto de situações ditaram o início da guerra. O general Magnus Malan, então ministro da defesa do apar­theid, dizia depois dos acor­dos de Nko­mati que os políticos fizeram acordo, mas para ele não havia acordo nenhum, com comunistas “só guerra”. O comunismo só podia ser corrido com a guerra. Fala-se de agres­são… mas quem agrediu a quem? O povo moçambicano foi agredido pela FRELIMO. A FRELIMO chegou e instituiu guias de marcha, lojas do povo, aldeias comunais, a operação pro­dução que des­truiu famílias, nacionalizaram igrejas e tornaram-nas ar­mazéns, fu­zilou pessoas com ideias contrárias, instituiu os centros de reeducação onde as pessoas entravam e nunca mais saíam. Foi a FRELIMO, marxista, quem, primeiro, agrediu o povo. Havia uma reacção interna, agora, perso­nificou-se esse grupo de descontentes que tiveram apoio da Rodésia e de ou­tros…

Aparentemente sabe muita coisa, está a escrever algum livro?
Eu?
Sim!

Não estou a escrever, porque a actividade de bispo não me dá tempo e fiquei com as coisas na cabeça, mas não estou a escrever… se tiver mais anos de vida, é possível que venha a escrever qual­quer coisa. Há muita coisa que me roubou tempo. Não estava nos meus planos trabalhar para o processo de paz aqui em Moçambique e isso roubou-me tempo. Eu queria trabalhar nas missões. Mas o trabalho das missões estava falido por causa da guerra que destruiu o País. Perante uma situação destas, procurei outros planos de vida. É na ambição de querer a paz que acabei em procurar a paz. Começa esse processo das negociações, mas isto não era um plano de vida. Neste sentido, também não está nos meus planos escre­ver um livro.

Após a morte de Mondlane e golpe a Uria Simango
Matar, na FRELIMO, era coisa de todos os dias!

Pode explicar o que é a crise dos seminaristas… exactamente o que aconteceu?

Se for a falar com alguém da FRELIMO, vão te contar o que estou a dizer. Sabem disto, todos aqueles que estiveram na criação da FRELIMO. Deixe contar o seguinte: quando foi para a escolha de um lugar para as conversações para a paz, a RENAMO propôs Nairobi, porque já estava lá. O Presidente Chissano recusou, não queria Nairobi. Disse que Nairobi estava cheio de reaccionários. Ele se lembra desta história. Então propôs Malawi e os outros disseram que não queriam, porque não havia segurança. Isto para dizer que a crise dos seminaristas existiu no seio da FRELIMO. Duas razões ditaram esta crise: a primeira foi a escolha do socialismo. Nessa altura, era mesmo comunismo. Os seminaristas, por causa da sua formação, mostraram-se relutantes, não queriam aceitar tais ideais para a nossa vida social e política. A FRELIMO, como movimento, queria seguir o socialismo. Em segundo lugar, um outro ponto difícil, foi quando assassinaram o Eduardo. Segundo os estatutos da própria Frente de Libertação de Moçambique, quem deveria assumir o cargo era Uria Simango, mas não chegou a ocupá-lo. Outros invadiram o lugar de Uria Simango. Outros que tinham escola, formação filosófica, não aceitaram este assalto ao poder. Defendiam que se tinha de seguir o que diziam os estatutos da própria FRELIMO. Os estatutos diziam que, em caso de morte do presidente, o seu lugar devia ser ocupado pelo vice-presidente. Neste caso, os que ocuparam o lugar de Uria Simango não toleraram que houvesse pessoas que contestassem. E, nessa altura, matar, na FRELIMO, era coisa de todos os dias. Tudo entrou em crise… o padre Gwendgere ainda contactou as Nações Unidas a contestar o comunismo. Mais tarde, foi afastado e no governo de transição veio cá… para prevenir-nos sobre os ideais comunistas da FRELIMO. Nós éramos uma colónia portuguesa e todos sabem que Portugal era um país declaradamente anti-comunista. Eles, os portugueses, opuseram-se aos ideais comunistas e oficiais portugueses e alguns generais manifestaram-se lá em Maputo, tomaram a rádio. Ele, como sacerdote, não podia aceitar o comunismo e, nessa altura, foi considerado traidor da luta, disseram que se tinha juntado ao inimigo. Só que, nessa altura, ninguém podia escutar essa voz, queríamos ser independentes. Não queríamos ter ideais comunistas. Apanharam-no, levaram-no lá para cima e assassinaram-no. Para dizer que houve essa crise dos seminaristas que fez dispersar muitos…


SAVANA – 28.10.2005

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