Por Alfredo Manhiça
Alguns canais
televisivos e jornais internacionais publicados nas 48 horas que precederam as
Eleições Gerais de 15 de Outubro, em Moçambique, manifestavam expectativas que
estas eleições fossem as “primeiras” justas e transparentes a serem realizadas
no continente africano, desde a introdução do processo de democratização, no
início da década Noventa.
As expectativas
expressas pela opinião pública internacional encontravam a sua ressonância nas
expectativas que nutria a maior parte dos cidadãos moçambicanos. O fundamento
destas expectativas residia na existência de premissas suficientes que
permitiam deduzir que era chegada a hora em que Moçambique – depois de alguns
adiamentos – iria, finalmente, atuar uma efetiva transição democrática. De
facto, as eleições de 15 de Outubro iriam ser reguladas por uma nova Lei
Eleitoral que – para dissipar a generalizada falta de confiança dos partidos da
oposição e dos cidadãos em geral nos órgãos de gestão eleitoral – deliberava uma
proporcional associação à Comissão Nacional das Eleições (CNE) e ao
Secretariado Técnico de Administração Estatal (STAE) de membros dos partidos
políticos com representação parlamentar. Além desta disposição, tinha sido
também previsto que os processos de votação e contagem dos votos fossem
cobertos pelo Observatório Eleitoral nacional e internacional, e pelos meios de
comunicação social. O Governo e o maior partido da oposição, a Renamo, acabavam
de assinar um Acordo Geral de Paz (APG-2) – no dia 5 de Setembro – que punha
fim a instabilidade político-militar que dominou o cenário do País nos últimos
dois anos. O AGP-2 incluía também um protocolo muito detalhado sobre as
questões militares e assegurava a dis-partidarização das Forças Armadas de
Defesa de Moçambique (FADM), da Força da Intervenção Rápida (FIR) e da Polícia
da República de Moçambique (PRM). Os órgãos da CNE e do STAE pareciam estar
decididos a lavar a imagem daquelas instituições e incrementar a credibilidade
do processo eleitoral. E, por fim, tinha sido ativado um instrumento jurídico
dotado de poderes para dirimir, tempestivamente e em todos os níveis, as
questões eleitorais.
Chegada a hora da
verdade, infelizmente, o momento crucial que se esperava que consagraria
Moçambique e as instituições políticas moçambicanas pioneiros da desejada
efetiva democratização do continente africano, provou ser uma grande e pomposa
celebração da nossa ignorância (isto é, ignorância das regras básicas que
caracterizam um sistema político de tipo democrático); provou ser uma pomposa
celebração, à vista de todo o mundo, da nossa prepotência e autoritarismo; uma
celebração da nossa eficaz capacidade de intimidar e de ser intimidados; uma
celebração da nossa infalível capacidade de manipular e de ser manipulados; uma
celebração da nossa alta capacidade de organizar e infligir violência com fins
políticos; uma celebração da nossa capacidade de neutralizar as consciências
dos subalternos e de transformá-los em executores de atos macabros e
aberrantes; uma celebração pomposa dos condicionamentos que impedem o País e
cada um dos cidadãos de tirar o melhor proveito do que existe nos sistemas
políticos de tipo democrático.
Por conseguinte,
existem algumas indispensáveis pré-condições que os atores políticos de uma
determinada sociedade, nos seus vários níveis e posições, devem satisfazer
antes que seja possível tirar o melhor proveito do que o modelo democrático
pode oferecer a uma dada sociedade. Não é possível, por exemplo, o crescimento
da semente da democracia numa sociedade fundada na intimidação e na chantagem.
Para que as populações das aldeias comunais e das povoações rurais possam dar o
próprio contributo no progresso da democracia é necessário que estejam livres
da intimidação e da pressão política exercitada sobre eles pelos secretários
dos bairros e pelos líderes comunitários; como é também necessário que os
funcionários públicos estejam livres da chantagem originada pela identificação
do Estado com o partido no poder. Não é possível lançar a semente da democratização
e esperar que ela se desenvolva numa sociedade em que o poder político e a
administração pública são fundamentalmente percebidos como meios seguros para
tutelar os próprios interesses económicos, em detrimento do interesse
colectivo; como não é possível imaginar como é que a comunidade internacional
poderá servir de ajuda na edificação e promoção de instituições e regras
democráticas enquanto a sua política externa na África continuar ainda,
pesadamente, determinada pelos próprios interesses de natureza económico e, a
sua estratégia continuar a ser aquela de proteger qualquer tipo de governo que
esteja a tutelar os interesses económicos das grandes potências mundiais.
Uma análise
sincrónica da pomposa vergonha que foi exibida no dia 15 de Outubro e do tipo
de regime que, de facto, vinha governando o País, sobretudo nos últimos cinco
anos, e das dinâmicas que predominaram o cenário político-institucional nos
meses/anos que precederam o ato eleitoral, induzir-nos-ia a suspeitar que a
forte vontade de reformar as instituições políticas do País tenha cegado e
impedido a opinião pública de constatar, objectivamente, que não estavam ainda
criadas as pré-condições necessárias para a realização de eleições justas e
transparentes.
De facto, além da
nebulosidade que marcou o processo da apresentação, da parte da Sociedade Civil
e, depois, a eleição pela Assembleia da República (AR), do presidente da CNE –
Abdul Carimo -, também a “epopeia” do candidato presidencial do partido
“vencedor” das eleições de 15 de Outubro, Filipe Jacinto Nyusi, foi
sintomática: o homem cuja apresentação, da parte da Comissão Política (CP) do
partido, e a sua subsequente nomeação pelo Comité central (CC), tinham
provocado feridas profundas e acusações recíprocas de traição entre os “camaradas”,
em menos de seis meses tinha conseguido sanar as feridas e operar uma
convergência das agendas políticas que até então pareciam irreconciliáveis. Uma
leitura post-factum (posterior aos acontecimentos) induz a suspeitar que o
preço da reconciliação dos “camaradas” tenha sido pago pelo sacrifício do ideal
de Estado de direito. As correntes contrapostas das classes dirigentes do
partido encontraram um modo – sacrificando todas as exigências da ética
política - para estabelecer compensações adequadas entre quem saiu a perder e
quem saiu a ganhar na questão da luta pela nomeação do sucessor de Armando
Guebuza e, para garantir que tudo dê certo foi, com certeza, necessário ativar
uma complexa máquina de fraude designada a conduzir todo o processo eleitoral para
um fim preestabelecido. Esta hipótese ajuda a explicar porquê é que figuras
como Luísa Diogo, Graça Machel e Joaquim Chissano apareceram, no período da
campanha eleitoral, a “puxar o saco” de Nyusi que tinham, publicamente,
desqualificado e impugnado o processo em si da sua apresentação, da parte da
CP.
O mesmo poder-se-ia
também dizer do exibicionismo do poder económico esmagador que dominou a
campanha do partido Frelimo. O mais provável é que a maior parte dos
financiamentos daquela robusta campanha tenha vindo da sempre denunciada venda
das isenções, do contrabando da madeira e das angariações de fundos pouco
transparentes, como foi o caso daquela que culminou com o ilegal e ilícito
Mercedes Benz oferecido ao presidente Armando Guebusa, pela Confederação das
Associações Económicas de Moçambique (CTA). Uma campanha que teve este tipo de
financiamento não podia nunca permitir que o resultado das eleições fosse
abandonado ao acaso, ou à vontade expressa pelos eleitores: a garantia da
vitória devia, não só compensar a todos aqueles que investiram com os próprios
recursos económicos, como também devia encobrir os ilícitos e os crimes
cometidos contra o património público.
Portanto: - a
violência exercitada pela PRM e pela FIR nos círculos eleitorais de Zambézia,
Nampula, Sofala e Tete; - os vários episódios de tentativas de enchimento de
urnas; - o aparecimento de inteiros cadernos com votos já assinados a favor do
candidato da Frelimo; - a existência de urnas e os respectivos boletins de voto
na posse de pessoas estranhas ao STAE; - as detenções ou assassinatos dos
denunciadores das tentativas de materialização de agendas de fraude; - os
cortes programados da corrente eléctrica, precisamente no intervalo entre o
encerramento das urnas e o início da contagem de votos; - o atraso propositado
de conceição de credenciais aos observadores eleitorais da Organização da
Sociedade Civil (OSC), da parte dos órgãos competentes; - o atraso propositado
da abertura das mesas ou assembleias de voto; - as inexplicáveis ausências dos
cadernos eleitorais nas correspondentes assembleias ou mesas de voto; - a
existência de mesas de voto cujos editais e atas aparecem diferentes; - o
aparecimento de dezenas a mais de mesas de voto durante a contagem; - o
aparecimento de números de votos superiores ao número dos potenciais eleitores
de uma determinada assembleia de voto ou círculo eleitoral; - as tentativas de
substituir editais autênticos pelos falsificados; todas estas e muitas outras
irregularidades que caracterizaram as Eleições Gerais de 15 de Outubro,
encontram a sua lógica interna se analisadas a partir de uma visão conjunta do
modo como Moçambique foi governado, sobretudo nos últimos cinco anos, e nas
atitudes e dinâmicas internas que caracterizaram os partidos políticos, durantes
os meses/anos que precederam o ato eleitoral de 15 de Outubro.
A retórica dos
observadores eleitorais da comunidade internacional, segundo a qual os
incidentes acima mencionados não afetaram o resultado final das eleições pode,
até certo ponto, ser sustentável se se pensa que o partido no poder determina a
orientação do voto dos funcionários públicos e dos homens de negócio através do
instrumento da partidarização do sector público e do controlo das oportunidades
económicas nacionais e, através dos instrumentos da intimidação e politização
exercitadas pelos secretários dos bairros e pelos líderes comunitários
determina a orientação de voto de muitos potenciais eleitores dos bairros da
periferia e das regiões rurais. Todavia, o facto que a direção do partido no
poder tenha recorrido às ações vergonhosas que mancharam a inteira nação,
mostra que tais dirigentes aperceberam-se que os instrumentos de controlo acima
indicados estavam escapando-lhes das mãos. E por tanto, não é evidente que as
irregularidades acima indicadas não tenham influenciado o resultado final.
Uma nota particular
que sugere uma reflecção ulterior em torno da vergonha do dia 15 de Outubro é o
facto que todas as irregularidades e incidentes tenham sido cometidos em favor
de um único partido – a Frente de Libertação de Moçambique – e, nenhum dos
incidentes ou irregularidades tenha causado prejuízo ao partido no poder. Isto,
sim, é preocupante! É uma indicação clara que não estamos diante de um caso de
uma sociedade que, ou por causa do seu passado histórico, ou pela razão do
nível da sua alfabetização, precisa ainda de evoluir-se para poder observar
“rigorosamente” as exigências do modelo democrático. Estamos, sim, diante de um
cenário caracterizado pela existência de uma específica elite política que está
progressivamente substituindo os princípios que fundam o Estado de direito,
pela implementação de um autoritarismo, de facto.
A vergonha que o
nosso País e seus cidadãos celebraram pomposamente no dia 15 de Outubro, diante
do olhar de todo o mundo, revelou também – mais uma vez – a inaptidão política
dos partidos de oposição para fazer frente às cruciais questões do jogo
político nacional. De facto, quase todas as irregularidades e incidentes que
mancharam as Eleições Gerais de 15 de Outubro não constituem nenhuma novidade
para os partidos de oposição. Não obstante sabido que a força do partido no
poder reside na manipulação da questão política, quer nas cidades como nas
regiões rurais, a oposição não foi capaz de realizar um trabalho de base que
visasse transformar os principais problemas vividos na experiência quotidiana
do cidadão comum em programa político que fosse, depois, restituído à base para
criar uma consciência de mudança. Falou-se muito da necessidade de mudança, por
exemplo, durante a campanha eleitoral, mas os resultados mostram que não
existia (na base) a consciência de mudança.
Durante o período
da campanha eleitoral, a Renamo “pôs todos os próprios ovos num único cesto”,
concentrando toda a sua campanha na pessoa do seu líder, Afonso Dhlakama.
Embora a figura de Dhlakama tenha arrastado muitas multidões, muitas das
cidades, distritos e povoações que não tiveram os “showmícios “ de Dhlakama
ficaram também privados de qualquer visita dos vértices da Renamo e, em certos
casos, mesmo de um pedido de voto expressamente dirigido a eles, da parte de
qualquer representante da Renamo.
Além do que até
aqui foi dito, a oposição cometeu um outro erro grave, esquecendo-se que o seu
adversário era um partido cujo líderes são pessoas desonestas e sem escrúpulos.
Quando a Renamo conseguiu obter da Frelimo a aprovação e a promulgação da nova
Lei Eleitoral e da Lei do Acordo de Cessação das Hostilidade (Lei 29/2014) – o
qual incluía também um Memorando de Entendimento sobre a dis-partidarização do
Exército, da Polícia e das Forças da Intervenção Rápida -, começou a celebrar a
vitória, convencida que, graças ao dispositivo legal, tinha conseguido fechar
todas as brechas por onde se introduzia a fraude eleitoral. Esqueceu-se que a
força do adversário residiu sempre na sua possibilidade de transgredir as leis,
sustentada pela certeza de impunidade. De facto, segundo a Lei 29/2014, a PRM e
a FIR não deviam estar ao serviço de nenhum partido político e, se se provasse
que a violência por eles exercitada no dia 15 de Outubro visava defender os
interesses da Frelimo, então incorreriam na violação deste dispositivo legal. A
não observação do princípio de “Igualdade de Tratamento” – típico dos sistemas
democráticos -, somada ao facto que existia um dispositivo legal que vinculava
todos os concorrentes, seria suficiente para justificar a desqualificação das
eleições de 15 de Outubro.
A insistência na
sua qualificação como justas estaria só a confirmar o dito que circulou muito
nas redes sociais durante o tempo da campanha: “Quem não é da Frelimo o
problema é seu”. Que decepção ouvir os meus compatriotas a trocar o País por um
partido! Eu, de facto, não sou da Frelimo. Mas não sou também da Renamo, nem do
MDM. Sou moçambicano e a minha luta é pelo Moçambique.
Alfredo Manhiça
Meu compatriota, o seu ponto de vista tem conteúdo. A decepção não é sua somente é de toda a pessoa que se identifica com estado-nação. Se estas eleições forem validadas, em Moçambique haverá muita perseguição para o futuro governo poder impor-se, porque todos nós sabemos que não foi escolhido, mas sim, foi o futuro de fraude. Quem vai respeitar esse tipo do governo? Para o bem dos Moçambicanos as eleições deviam ser invalidadas, porque já estamos a retornar no estado natural onde vive o mais forte.
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