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segunda-feira, julho 21, 2014

“Ninguém será castigado pelo eleitorado em Outubro”-- afirma o padre Filipe Couto, um dos mediadores nacionais, diálogo entre o Governo e a Renamo

O antigo Reitor das Universidades Eduardo Modlane (UEM) e Católica de Moçambique (UCM), padre Filipe Couto, mediador nacional do diálogo entre o Governo e Renamo, em entrevista ao domingo,faz um vaticínio de equilíbrio nas eleições de Outubro próximo, afirmando que o eleitorado é responsável e não castigará ninguém. “Nenhum partido dirá que ganhou de forma retumbante, como também não haverá partidos humilhados nas urnas”. Siga a entrevista em discurso directo.

O diálogo entre o Governo e Renamo vai na 64ª ronda, há mais de um ano. Está difícil o consenso entre moçambicanos?

Bem, vamos dizer o seguinte: eu como Filipe Couto custa-me responder a essa pergunta, porque é verdadeiramente uma pergunta simples e terá uma resposta simples. Sei que a minha resposta, sendo também simples, não vai agradar a todos, mas vai certamente tocar o coração de quem quiser olhar para uma consciência recta.
Todos os moçambicanos estão contra os tiros e gostariam que a morte lhes chegasse de uma forma não violenta. Por isso, para se chegar a um acordo de cessar-fogo e entendimento não era preciso tanto tempo e tantos encontros.

Então, o que é que está a falhar?

Está a falhar o facto de que as coisas que sucedem, não só em Moçambique, mas no mundo inteiro, não são pelos valores como a vida, mas sim pela fama, poder, dinheiro etc... Respondi?

Caso a guerra prevaleça até 15 de Outubro que tipo de eleições poderemos ter?

Eu desejo que até 15 de Outubro não haja tiros. É um desejo, não previsão, para que as eleições decorram em clima de paz, por isso penso que devemos fazer de tudo para que ainda neste mês de Julho muitas coisas avancem, para que todos os motivos dos tiros cessem.

BASTA O CESSAR-FOGO

Fazer de tudo para que os tiros parem significa também o regresso de Dhlakama à cidade?

Quanto ao presidente Dhlakama, a primeira coisa que ajudaria a ele seria o cessar-fogo. Neste momento, não falo de uma possível vinda ou que fique definitivamente na Gorogonsa, apenas digo que para ele seria bom que já não houvesse tiros e as pessoas circulassem livremente no troço Save- Múxunguè, porque quando os tiros pararem tudo o resto ficará resolvido, mesmo que Dhlakama não venha a Maputo.

Para chegarmos a esse estágio é forçoso o encontro entre o Presidente Guebuza e o líder da Renamo?

As minhas opções já não passam por esse encontro, mas se essa for a solução melhor, mas o que se deve fazer é chegar a um entendimento para pararem com os tiros. Deve acontecer qualquer coisa para cessarem com os disparos. Está claro o que eu estou a dizer?

A detenção do porta-voz do líder da Renamo, António Muchanga, pode ser um entrave ao processo de diálogo?

Eu já disse que tudo que anda a suceder não serve de justificativa para que as pessoas não circulem livremente pelo troço Save-Muxunguè, porque também nada justifica que haja morte por tiros entre moçambicanos. Suceda o que suceder, deveriam cessar-fogo.

Insisto na pergunta, a prisão de Muchanga entrava o diálogo?

O diálogo iniciou antes da detenção de Muchanga. Não será isso que irá interromper o diálogo, não creio. Essa detenção também não deve justificar mais tiros.

O porta-voz do partido Frelimo disse que a decisão de deter Muchanga é sabia e pertinente, apenas peca por ser tardia. Quer comentar?

No comment.

TENHO NYUSI COMO UM FILHO

Num passado recente disse que Feliciano Gundana e José Pacheco tinham perfil para dirigir o país. A eleição de Nyusi o surpreendeu?

Conheci Filipe Nyusi há bastante tempo e muitos sabem que temos uma relação saudável. Gosto de ver a família dele, esposa e filhos. Quando ele foi eleito fiquei emocionado e com medo, como um pai que tem um filho piloto aviador. Estimo tanto a ele que nunca gostaria de lhe ver numa missão que se tornaria complicada, tal como seria para um filho, porque o pai não quer ver o seu progenitor a carregar um fardo pesado. Sendo pai, sou a pessoa menos indicada para fazer um comentário sobre ele, seria suspeito.

A Frelimo fez uma boa escolha?

Eu disse certa vez que gostaria que fosse Gundana, mas eu e ele (Gundana), que é da minha geração, devemos ficar na retaguarda, porque somos velhos. Agora escolher um novo é bom, mas isso não me inibe de lhe chamar atenção para os seus movimentos, cuidar da família, da saúde dele, não se esquecer dos amigos, procurar ser justo, desse modo vai conseguir triunfar, como fazemos a um filho quando vai ao exame.

Aonde conheceu Nyusi?

Conheci a ele faz tempo. Deve saber que estive na luta de libertação no exílio, mas sabe como é a vida, por isso vi-o com frequência quando estava em Nampula como Reitor da Universidade Católica e ele nos Caminhos de Ferro, mas conheci-o há muito. Sempre gostei de trabalhar com ele e várias vezes fui lá incomodá-lo quando precisava de transporte para ir abrir a universidade de Agricultura em Cuamba e para transportar pedra e brita por via ferroviária. Também visitamos vários locais para a escolha de um local para instalação da universidade, incluindo Nacala. Também viajamos juntos numa missão do ensino superior para os Estados Unidos da América. Sou verdadeiramente uma pessoa que conhece a ele.

Quando diz conheceu há muito tempo se refere quando esteve em Bagamoyo?

No tempo de Bagamoyo ele era estudante e eu mais velho, portanto, nos cruzávamos no caminho e me saudava, mas não havia tempo para conversas, apenas desenvolvemos uma relação quando já estávamos independentes, sobretudo após regressar dos estudos na Inglaterra. Também a sua esposa estudou na Universidade Católica.

Chegou a ver Nyusi e os filhos de Urias Simango juntos?

Não, não, isso não. Os filhos de Urias Simango vi-os cá depois da Independência Nacional e me relaciono bem com ambos, sobretudo com Lutero com quem converso regularmente, também falo com Daviz, embora menos.

OS OUTROS PARTIDOS SÃO RAMOS DA FRELIMO

A Renamo se bateu por uma nova lei eleitoral. Considera um aspecto fundamental para a transparência do processo em Moçambique?

O facto de as conversações entre o Governo e Renamo chegarem a uma fase onde o pacote eleitoral foi acordado é positivo, mesmo que não seja perfeito, porque certamente que os outros partidos questionam: e nós? Embora saibam que era a solução viável para se avançar. Em breve, teremos eleições, suponhamos que o MDM tenha mais deputados na próxima legislatura, terão que rever de novo a composição da Comissão Nacional de Eleições (CNE). Espero que não cheguemos ao ponto de quando tivermos de resolver isso tenhamos partidos com mão armada para fazer guerra.

No passado também disse que em Moçambique temos um partido grande e um conjunto de partidos pequenos. Continua com a mesma convicção?

Contínuo, mas devo dizer que a Frelimo é o tronco com raízes e uma árvore sem esses elementos não pode ter ramos. Com isto quero dizer que a Renamo é um ramo, o MDM é outro ramo, PDD é outro e aí por diante.
E o tronco dá seiva aos ramos e neste sentido eu acho que há gente da Frelimo que tem simpatias pela Renamo e pelo MDM o que não é mau, pois faz com que haja um clima político onde os problemas são ultrapassados com debate e argumentos e não com armas.

Mesmo com este arranjo no pacote eleitoral o MDM diz que o cidadão deve policiar o seu voto para a transparência do processo. O que diz?

A ideia do MDM completa a ideia da Renamo, isto significa que é bom que haja representatividade dos partidos políticos na CNE, até à altura que tivermos essa estrutura completamente apartidária, mas isso vai levar o seu tempo. Eu entendo que o MDM diz que o mais importante é que o cidadão saiba que as eleições correram de um modo não fraudulento, isto é, evitar a falsificação do seu voto. Penso que eles têm razão. Podemos controlar o voto sem uso de kalashnikov (AKM).

O MDM pode tirar proveito da actual tensão político-militar?

Eu creio que o MDM atrai muita gente descontente. Há gente que estava na Renamo descontente e foi para o partido do galo, como também há gente que esteve insatisfeita na Frelimo e foi para o MDM. Nenhum partido pode satisfazer plenamente a todos, por isso o multipartidarismo faz com que as pessoas escolham para onde querem ir. Todos os partidos estão assentes numa base em que ofereça a educação, saúde, alimentação e habitação. Depois temos partidos com especificidade virada para indústria pesada, agricultura, ambiente, mas o básico se mantém.

A Frelimo e a Renamo podem ser castigadas nas urnas por causa da tensão político militar?

Aqui a minha opinião é de que o eleitorado é responsável, por isso não vai castigar ninguém. O eleitor vai escolher livremente, mas nenhum partido ganhará de forma convincente e retumbante, como também não haverá nenhum humilhado nas urnas.

TENSÃO POLÍTICO MILITAR

Filipe Nyusi tem dito que não vai descansar enquanto o país não estiver em paz. Vai fazer de tudo para resolver esta situação. Quer comentar?

É bom que ele diga e faça o que puder e espero que haja gente que se alie a ele, especialmente jovens da geração dele para que mostrem a nós, mais velhos, como se faz uma política sem tiros. Ele está a dizer que não quer tiros, mortes através de bala, quer progresso, diálogo, foi bom que tenha dito isso e faça, mas para conseguir deve trabalhar convosco (jovens), porque sozinho não pode fazer tudo, também com adultos que tenham boa vontade.

A postura dele não será mal interpretada, tendo em conta que foi Ministro da Defesa?

Não! O facto de alguém ser soldado não implica que seja belicista. Conhecendo os problemas dos soldados e da defesa pode ser favorável a fazer uma educação militar saudável, sem espingarda, militar para a paz, saúde e educação. Há exemplos de generais que quando chegaram ao poder foram promotores da paz. Habitue-se a saber quem foi militar geralmente não gosta de guerra, embora haja um e outro que se desvia para se tornar mercenário.

Certa vez disse que não tinha cartão de membro do partido Frelimo. Como é ser da Frelimo sem ter cartão de membro?

Eu não tenho cartão de membro, mas sou da Frente de Libertação de Moçambique, veterano da luta armada e antigo combatente do qual tenho cartão de membro com indicação da data de ingresso e da desmobilização, mas nunca tive cartão de membro do partido Frelimo, porque, primeiro sempre considerei que todos somos desta família, não só os com boa cabeça, assim como os malucos, não só os bons, como também os maus. Eu sou da Frente de Libertação de Moçambique, por isso, vejo na Renamo, MDM, PIMO alguma coisa da Frente.

Como distinguir a Frente de Libertação do partido Frelimo?

Só quem não viveu essa realidade não consegue discernir essas duas realidades. Eu sou daquele tempo em que se dizia que a Frente deve tomar conta de qualquer pessoa, por isso em Londres recebi Sebastião Temporário que era membro da Renamo na companhia do Embaixador Panguene a quem convenci a recebermos um moçambicano. Por essa razão, o General Chipande disse na Beira que temos que dialogar com a Renamo. Também fui pedido pela Renamo para entrar como mediador e aceitei defender os interesses deles até à altura que deixará de ser um partido armado.

Acredita que vão deixar de ser um partido armado?

Acredito e vai deixar. Claro que vai deixar, pena que tarda  a fazê-lo, porque os moçambicanos não permitirão que haja partido com braço armado, pois só existe um exército debaixo da Constituição da República. Os partidos que aceitam a Constituição, o Presidente, Justiça, Polícia, Defesa estão abaixo do Estado e não de um partido político.

Qual foi a última vez que falou com Afonso Dhlakama?

Nos finais do mês de Maio, nós, os mediadores (eu, Dom Dinis Segulane, Pastor Anastácio e Sheik Abibo) fomos à sede da Renamo falar com os membros daquele partido e eles conseguiram uma ligação para interagirmos com Dhlakama. Nessa ocasião, ele manifestou desejo de voltar sob algumas condições como a presença de mediadores internacionais.

Quer voltar por vontade de pacificação ou porque está a perder terreno na preparação das eleições?

Eu tenho ainda o sentimento de que ele quer vir, porque acho que não é um sanguinário, embora tenha entrado nessa dinâmica da guerra dos 16 anos e agora da tensão na zona centro, mas creio que no fundo ele quer a paz. Porém, está dentro de um mecanismo em que num conflito deste calibre, as causas não dependem só de um indivíduo, Dhlakama ou Guebuza, mas sim de uma conjuntura de factores.
Seria bom que vocês jovens estudassem melhor como é que surgem as guerras no mundo, porque elas não são resultado de um processo simples como uma briga por um pedaço de pão, é mais profundo, fruto de uma estrutura feita por nós que depois condiciona a nós e também aos nossos pensamentos e sentimentos.

Governo e Renamo podem  alcançar consensos amanhã

Governo e Renamo poderão alcançar alguns consensos amanhã em torno de matéria relacionada ao desarmamento do movimento de Afonso Dhlakama , escondido algures nas matas de Gorongosa.
As duas partes expressaram optimismo na última ronda negocial realizada no Centro Internacional de Conferências Joaquim Chissano, em Maputo. Gabriel Muthisse, chefe-adjunto da delegação do Governo, disse que a “perdiz” trouxe à mesa novas propostas que podem estabelecer uma boa base de partida.
O Governo está a estudá-las na perspectiva de verificar se ferem ou não a Constituição da República e demais leis vigentes. “O que estivemos a discutir hoje são propostas completamente novas”, disse Muthisse.
Saimone Macuiana, chefe da delegação da “perdiz”, fala de avanços na mesa de diálogo, todavia não conclusivos, tendo expectativa de que amanhã haja mais consensos.

Fonte: Jornal Domingo – 20.07.2014

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