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domingo, junho 22, 2014

Do Deixa-andar ao Deixa-arder

Por Adelino Timóteo

Dizem que o país tem gente que manda, mas o que o país tem, de facto, é um Deixa-arder.

Coisas sucedem mesmo sem se esperar. Ao fim de dez anos, o país fecha um ciclo com o Deixa-arder. É o que se fala. É o que está na boca do povo: o Deixa-arder não tem feito mais do que deixar-arder, desde que assumiu as suas funções.


O seu legado é, por isso, indesmentível, nesta matéria.

Veja-se o que o Deixa-arder deixou sofisticadamente arder. Literal e reiteradamente.

Em 2007, o paiol de Malhazine, em Maputo, deflagrou, resultando em mais de cem mortos e quinhentos feridos, doze mil residências destruídas.

E em 2011, quando o paiol já estava encerrado, um novo incêndio havia de deflagrar no local.
É triste que, de episódio em episódio, o Deixa-arder deixe as coisas a arderem.

E porque esta é a virtude de quem só cruza os braços, no mesmo ano 2007 o paiol da Beira ardia.
Perece-nos uma obsessão a do Deixar-arder, de carbonizar tudo, até o próprio povo. Já em 2005 e 2010, houve duas manifestações em que populares saíram à rua queimando pneus. O segundo episódio resultou do cruzar de braços, e tivemos pneus a arder em Maputo e nalgumas capitais provinciais.

Aliás, em matéria de incêndios, temos um Deixa-arder competente. Não foi por acaso que, em 2007, se assistiu impavidamente ao Ministério da Agricultura a arder. E porque, na prática, se apostou neste modelo de governação, foi quando, em 2008, o mesmo ministério voltou a arder.

Resultados de inquéritos, que sempre servem para desviar a natureza dos incidentes e as culpas, trouxeram respostas inquietantes. Dos incêndios aos paióis, a culpa foi do Sol escaldante. Veja-se! Culpar o Sol! Já se culpou o curto-circuito, como se o Sol e o curto-circuito fossem sujeitos imputáveis. É como se conjecturasse levar o Sol e o curto-circuito ao banco dos réus, iludindo a responsabilidade dos verdadeiros culpados que deixaram o fogo andar e com a sua língua lamber o país.

Não há bela sem senão. Pensávamos que as coisas poderiam melhorar, mas estávamos errados. Iludidos. Foi quando, em 24 de Novembro de 2009, tomámos conhecimento, por via do jornal “Whampulafax”, de que estava em curso a movimentação, de Maputo para Nampula, de efectivos da Polícia e do SISE para alegada redobrada protecção dum líder membro do Conselho de Estado moçambicano. Estava-se a preparar este fogo que agora o Deixa-arder diz ser o fogo causado pelos outros, pois, quando o azar persegue a quem, em tudo o que mete a mão, arde, recorre-se a dialécticas tácticas para se esquivar da autoria do fogo que tem matado muita gente no país.

Mesmo há gente com elevado talento para a indiferença. Vai daí que, perante o fogo que se alastra pelo país, diz que o fogo é localizado.

Surpreendentemente, como o localiza, há um ano que não o debela, e o fogo mostrou a sua eficiência. Chegou já a Tete, a Nampula, à Zambézia e a Inhambane, desmentindo a ilusão ao maravilhoso povo.

E no ano passado jovens beirenses puseram pneus a arder pela cidade da Beira, num protesto contra a sua incorporação compulsiva no exército.

Não faltaram conselhos ao Deixa-arder, para estancar a sua capacidade de incendiar, mas acontece que, quando tudo no país aparentava entrar nos carris, eis que o Deixa-arder lançou achas à fogueira que se estava a extinguir, e as línguas de fogo estão a consumir muita carne humana dos filhos do maravilhoso povo.

Aquele que teve o talento de produzir o fogo, no que ao povo parece uma comédia, inventa protagonistas, inventa culpados do fogo que ele tem o melhor talento de produzir.

Em tudo isto, a nossa companhia de bandeira nacional, a LAM, não está isenta do fogo. O fogo ateou o Conselho de Administração e alastra-se pelos pilotos, que não estão satisfeitos com a direcção. A resposta é o mesmo cruzar de braços, a mesma apatia.

Até aqui não tínhamos produzido este insólito sonho, mas algumas mentes férteis têm estado a propor à academia sueca uma nova variante de Nobel, a de prémio na categoria “Deixa-arder”, para se premiar as altas qualidades do Deixa-arder nacional. São muitos anos de estrada.

Se antes nos indignávamos com a nossa moçambicana capacidade de produzir curtos-circuitos, então moçambicanamente avançamos na ciência de produzir incêndios.

Falta-nos um Nobel cá em casa. E, nesta categoria, a humanidade tem que distinguir o Deixa-arder pela sua inata vocação de incendiar.(Adelino Timóteo)



Fonte: Canalmoz - 20.06.2014

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