Páginas

sábado, dezembro 21, 2013

Da necessidade dum diálogo político nacional

Por Elísio Macamo

Na semana passada fui a Maputo participar num seminário que reuniu alguns académicos preocupados com a situação política que se vive no País. Foi um excelente encontro que me mostrou uma coisa muito importante: é possível discutir o País a partir de sensibilidades políticas e ideológicas diferentes e, mesmo assim, identificar plataformas a partir das quais sejam possíveis alguns consensos. Houve, basicamente, duas linhas de pensamento. Uma relegou o problema político geral à hostilidade da nossa cultura política às liberdades do cidadão, enquanto que a outra linha responsabilizou uma cultura de Estado pouco comprometida com o bem comum. Apesar destas posições divergentes os participantes chegaram à conclusão de que os problemas são bem maiores do que os dois interlocutores, nomeadamente o Governo e a Renamo. Seria do interesse desses actores que o diálogo fosse mais includente uma vez que ele está a tratar dum problema nacional, não dum problema entre dois partidos políticos. O Governo tem toda a legitimidade de se mostrar céptico em relação a uma conferência nacional uma vez que ele é legítimo e tem de defender, acima de tudo, a constituição. Ninguém pode pôr em causa um argumento de tanto peso quanto esse, ainda por cima quando se está a lidar com uma situação em que um partido político desafia o Estado de forma violenta. Não obstante, as mesmas razões de Estado que exigem a defesa da constituição tornam politicamente prudente uma outra postura. Há, no seio do governo, muita gente de bom senso que não vai ficar indiferente à necessidade de abertura do diálogo político.


Ontem houve uma conferência de imprensa em Maputo durante a qual os resultados desse encontro foram apresentados. No que se segue reproduzo excertos de algumas passagens importantes do texto que o encontro produziu.

“Volvidos 12 anos desde a apresentação pública da Agenda 2025, um grupo de académicos e intelectuais, propôs-se iniciar uma reflexão sobre Moçambique, analisar a actual situação do País e aventar caminhos para a construção e consolidação da democracia no país.

O encontro de reflexão assumiu um carácter tão mais pertinente, porquanto se assiste actualmente a um clima de crescente instabilidade no País, que o coloca entre os dois dos piores cenários perspectivados pela Agenda 2025 – o Cabrito e o Caranguejo. O cenário do Cabrito previa uma situação de instabilidade, de confrontação e de retorno à guerra, associados à práticas de corrupção e à prevalência de desigualdades e exclusão social. O cenário do Caranguejo referia-se à estagnação democrática, causada por atitudes de arrogância, de falta de diálogo, de falta de negociação e de desconfiança. Ademais, assiste- se a um impasse no “diálogo político” entre o Governo e Renamo que se tem revelado pouco produtivo.

Este é o contexto no qual seis organizações (FUNDE, IESE, CEDE, EISA, OMR e Gapi-SI), juntaram-se e promoveram um debate entre académicos e intelectuais moçambicanos para reflectirem sobre as razões e os factores desta conflitualidade (...)

Assim, num ambiente de debate franco e aberto, os participantes, reflectindo diferentes pontos de vista, escolas de pensamento, matizes políticas e ideológicas, identificaram virtudes e imperfeições no processo democrático em Moçambique que interpelam a nossa consciência cidadã e nos impelem a contribuir na busca de caminhos para a consolidação da democracia. A riqueza do debate que este encontro produziu, e cujas ideias principais se enumeram abaixo, deveu-se à convivência de diferenças de ideias e opiniões, sobre questões centrais como, por exemplo, o papel do Estado, com uns mais favoráveis a um papel intervencionista do Estado e outros a uma maior limitação dos poderes do Estado na esfera privada do cidadão, que reflecte diferentes opiniões na sociedade.

(...)

... [O] processo de construção de uma sociedade democrática em Moçambique e suas respectivas instituições ao longo destas duas décadas tem enfrentado dificuldades, e sobretudo, tem gerado práticas que limitam o seu próprio fortalecimento. Neste quadro, destacam-se os seguintes aspectos:

1. Uma cultura política patrimonialista gera autoritarismo e paternalismo e limita as possibilidades da cidadania, constrangendo a liberdade dos indivíduos. Quais são os limites do poder legítimo do Estado sobre os seus cidadãos? Ou, dito de outro modo, quais são os limites da liberdade e dos direitos dos cidadãos dentro do Estado? Embora existam pontos de vista diferentes sobre como melhor responder a estas perguntas pode-se sugerir que a cidadania em Moçambique carece de ser melhor articulada com a questão da liberdade. Pode-se afirmar que o principal valor inspirador da nossa História foi a liberdade, que se consubstancia na procura individual e colectiva de emancipação e dignidade humana. Contudo, o patrimonialismo, o autoritarismo e o paternalismo, que permeiam a cultura política no nosso país, constituem um edifício hostil à cidadania, ao cristalizar, por exemplo, a ideia de que o protagonismo histórico de alguns conferiria qualidades especiais e uma aptidão única para interpretar a ‘vontade do povo’. Entende-se que a emancipacão do cidadão passa por uma ruptura inequívoca com tal cultura. Isso impõe uma contínua reflexão sobre as condições de possibilidade da garantia de dignidade humana no contexto duma sociedade que se constitui historicamente como a nossa sociedade o fez.

2. O princípio de gradualismo, no qual a descentralização se baseia, gera direitos diferenciados de participação. Por um lado, o quadro legal exclui uma grande parte dos moçambicanos da participação democrática concebida pela criação das autarquias locais. Por outro, olhando para os espaços de participação local criados a nível dos distritos, constata-se que a sua dinâmica de funcionamento é estruturada de um modo que não reflecte a diversidade politica do país.

3. A debilidade do vínculo institucional entre o Estado e o cidadão, produzido seja pelas práticas centralizadoras do Estado ou pelo padrão de acumulação extrativo centrado no exterior. A realização do desígnio democrático de que “a soberania reside no povo” requer ou supõe a existência de vínculos institucionais entre o Estado e o cidadão muito robustos, que está ainda muito longe de ser o caso em Moçambique. Ao histórico Estado centralizador, hoje junta-se, na economia nacional, um padrão de acumulação extrativo centrado no exterior, tendendo, ambos, a excluir o cidadão no modo como o Estado concebe e implementa políticas públicas.

4. A distância institucional entre o Estado e o cidadão, que é um legado histórico das condições da construção do Estado moderno em Mocambique e legado de uma cultura política menos libertária do que se tem proposto. O conceito de distância institucional usa-se aqui tanto para denotar a distância física entre os cidadãos e pontos de tomada de decisão (por exemplo, o acesso físico aos órgãos do Estado é diferenciado entre quem vive nas cidades de Maputo ou Matola e quem vive em Malema ou Pebane) como também a falta de harmonia nos procedimentos institucionais. A distância física provoca grandes problemas de acesso a recursos e diferenças cada vez maiores de oportunidades entre cidadãos que vivem mais próximos e aqueles que vivem mais longe dos órgãos centrais do Estado. O conceito também aborda questões de coordenação inter-institucional, ao problematizar a falta da universalidade de procedimentos de identificação e certificação de pessoas e bens no acesso a bens públicos ou quase-públicos (tramitação e validação de documentos entre banca, empresas públicas, e repartições do Estado).

5. O carácter limitado do debate público sobre as regras do jogo político, que é muitas vezes restrito aos dois maiores partidos políticos. A questão da paridade nos órgãos eleitorais, ou pelo menos o modo como foi colocada na fase inicial do “Diálogo Político” entre o Governo e a Renamo ilustra de modo muito claro uma insistente tendência da política nos últimos 20 anos, de limitar o processo decisório à Frelimo e à Renamo. Acontece porém que a gestão transparente do processo eleitoral, entre outras grandes questões da actualidade, dizem respeito não apenas aos principais protagonistas do Acordo Geral de Paz, mas a todos os partidos e à sociedade civil em geral.

6. O sistema eleitoral em vigor privilegia o vínculo entre partido e deputados eleitos em detrimento do vínculo entre deputados eleitos e seus eleitores. O crescimento significativo da abstenção eleitoral pode ser revelador de um processo de desengajamento dos cidadãos em relação ao sistema político, muito provavelmente devido ao fraco vínculo entre deputados eleitos e seus eleitores, sendo, portanto, um sintoma de crise do processo democrático. Isto é agravado pelo facto de, dado o sistema eleitoral em vigor, não existir nenhuma vinculação forte entre os deputados eleitos e os eleitores, o que impede estes últimos de se aperceberem do efeito do seu voto. Uma tal situação cria um problema na forma como a representação política é percebida e é vivida.

7. Uma discussão ainda muito circunscrita sobre como o País pode melhor lidar com o dilema da eficiência e da equidade na produção e distribuição de riqueza. O conflito entre diferentes grupos, interesses e perspectivas socias de desenvolvimento na luta pela apropriação ou influência sobre as decisões de política pública e sua implementação não tem sido publicamente debatido e não tem sido considerado.
8. Um padrão de crescimento excludente da maioria dos agentes económicos (pequenos produtores agrários, sector informal, PME’s de capital nacional) gera inequidades sociais. A economia nacional, medida pelo tamanho do PIB, tem crescido rapidamente ao longo das últimas duas décadas, mas este crescimento pouco contribui para promover e organizar, por exemplo, a produção alimentar para o Mercado interno em grande escala e a baixo preço, nem tem resultado na articulação doméstica das actividades produtivas.

(...)
As discussões do seminário revelaram diferentes perspectivas sobre o processo político no País tendo, contudo, convergido na ideia de que a actual instabilidade político- militar tem as suas causas prováveis na cultura política dominante baseada na limitação da cidadania e no modelo económico extractivo que enfraquece o vínculo entre o Estado e o cidadão. Nesta ordem de ideias a actual situação exige uma reflexão mais abrangente, includente e virada para a identificação de elementos que possam assegurar um processo político mais estável. A limitação deste processo a apenas dois partidos políticos pode se revelar problemática para uma solução sustentável da instabilidade.

Neste contexto, sugere-se uma reflexão sobre outros caminhos, dos quais destaca-se o seguinte:

1. Alargar o debate a outros sectores, partidos políticos, os diferentes grupos sociais, religiosos e profissionais, para reforçar a cidadania e consolidar a democracia, tornando-o mais inclusivo. Uma possibilidade seria a realização duma Convenção Nacional, um mecanismo que tem alguma experiência de sucesso em contextos de crise em outros quadrantes, mesmo no continente africano. Um tal debate poderia valer-se de dois instrumentos-chave como a Agenda 2025 e o MARP que oferecem quadros de participação abrangentes e não limitados a um domínio político- partidário e poderia ter como alvo a construção de um Pacto Nacional da Paz e Roteiro de Reconciliação Sólida.

2. Debater sobre o sistema de representação, reflectindo sobre as possibilidades de adopção de um sistema eleitoral misto, com a introdução de listas uninominais com o objectivo de alargar a base de participação e também a promoção da cidadania. A crescente e muito elevada abstenção nas eleições presidenciais e legislativas é particularmente preocupante e contrasta com a tendência inversa observada em muitos municípios. A experiência mostra, pois, que a proximidade dos candidatos em relação aos eleitores é um factor de mobilização e um caminho para a melhoria da qualidade de representação. Assim, uma via identificada para facilitar uma maior participação cidadã e ao mesmo tempo uma maior responsabilidade dos eleitos perante os cidadãos eleitores seria o aprimoramento do sistema de representação política introduzindo uma forma de representação local e personalizada ao actual sistema de eleição dos deputados da Assembleia da República, ou seja o estabelecimento de um sistema eleitoral misto proporcional em que uma parte dos deputados continuaria a ser eleita nos moldes actuais e os restantes seriam eleitos em círculos eleitorais uninominais.

3. Ampliar o espaço de exercício da cidadania, agindo sobre os factores que a constrangem, por exemplo, eliminando o gradualismo no processo de municipalização e devolvendo mais poderes do Estado para os níveis locais.

Os participantes no encontro de 10 a 11 de Dezembro, em Maputo, académicos e intelectuais e as organizações que promoveram o referido encontro, comprometem- se a continuar, individual e/ou colectivamente a contribuir para esta reflexão sobre os caminhos para a consolidação do processo democrático no nosso País bem como a participar e estimular a participação em outras iniciativas em prol da Paz, da Cidadania, da Democracia e do Desenvolvimento.

Sem comentários:

Enviar um comentário