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quarta-feira, maio 01, 2013

Sobre as conversações entre o Governo e a RENAMO

Intróito: as conversações que estão em curso (vão já na segunda ronda) entre uma delegação do Governo, chefiada pelo ministro da Agricultura, José Pacheco, e da RENAMO, chefiada pelo respectivo secretário-geral, Manuel Bissopo, tornam pertinente clarificar o quadro em que se desenrolam, tanto para dissiparmos alguns equívocos persistentes  como para evitar, tanto quanto possível, que  outros se suscitem.

DA VIGÊNCIA OU NÃO DO AGP
O primeiro equívoco é a insistência da RENAMO de que o diálogo/conversações/negociações devem ter por objecto questões da implementação do AGP, ou mesmo de renegociação do AGP. E não se trata de equívoco apenas da RENAMO. Creio mesmo que tem arrastado alguns incautos a alinhar pelo mesmo diapasão.
Nas palavras recentes de Raul Domingos, chefe da delegação da RENAMO em Roma, e que não tenho por incauto, na “Grande Entrevista” na edição de “O País” de 24/4/13, podemos encontrar aquilo que considero a origem deste equívoco. À certa altura, e depois de reconhecer que a “a paz é um processo”, afirma que “se analisarmos aquilo que é a gestão do processo de paz, ou seja, do acordo de paz”, e mais, «...sinto que o processo não está a seguir os passos certos e que a gestão deste acordo e desta paz tem encontrado ao longo do tempo algumas dificuldades.”

Nestes pronunciamentos confunde-se, deliberadamente ou não, “gestão da paz” e “gestão do acordo (AGP)”, como se fossem uma e a mesma coisa. Ora, a gestão do AGP fez-se, exclusivamente, nos termos previstos no próprio Acordo. O Cap. II do Protocolo V, Das Garantias, estabeleceu, com a criação da Comissão de Supervisão e Controlo, CSC, um quadro bem definido para a sua interpretação, fiscalização e controlo da respectiva implementação. Esta Comissão era composta por representantes do Governo, da RENAMO, das Nações Unidas e da OUA. Era presidida pela ONU e tinha a sede em Maputo. Nos termos do Acordo, “as decisões da CSC serão tomadas por consenso de ambas as partes”, isto é, do Governo e da RENAMO. O que significa que a responsabilidade das decisões, de todas as decisões, era exclusivamente do Governo e da RENAMO. As Nações Unidas e a OUA não se substituíam às partes. Estavam lá para garantir equilíbrio, transparência e imparcialidade na implementação e respeito pelo acordado.
Portanto, “a gestão do AGP” foi feita exclusivamente por esta Comissão, a qual, nos termos do próprio AGP, cessou as suas funções com a tomada de posse do Governo saído das eleições de 1994.
Mas quanto à “gestão da paz”, este é um outro conceito, correspondente a uma outra realidade. Com efeito, a “gestão da paz” corresponde ao período post-implementação do AGP e não se desenvolve no quadro bipartido ou multilateral, determinado no Acordo para a gestão do Acordo, mas num quadro mais amplo em que são partes todas as instituições e todos os cidadãos moçambicanos. E qual é esse quadro? É justamente o quadro da Constituição, Constituição na qual o AGP, nos termos determinados pelo mesmo, foi incorporado, tal como reconhece Raul Domingos, na “Grande Entrevista”.
Com efeito, o Cap. IV do Protocolo V, Das Garantias, estabelecia, in fine,  que “(...) o Governo da República de Moçambique submeterá à Assembleia da República, para adopção, os instrumentos legais incorporando os Protocolos, as garantias, assim como o Acordo Geral de Paz, na lei moçambicana”. Durante as negociações, esta questão foi colocada, e imposta, como condição e garantia do AGP, para se conferir não só legalidade ao Acordo, como também supremacia, em tanto que lei posterior, sobre as demais leis, completando-se assim o que o n.° 1 do Protocolo I, Dos Princípios Fundamentais, já determinava, no sentido de que o Governo se comprometia “(...) a não adoptar leis ou medidas, e a não aplicar as leis vigentes que eventualmente contrariem...” o AGP. E isto foi estritamente cumprido.
Daqui decorre também a falsidade da suscitada e recorrente questão sobre a vigência ou não do AGP. Raul Domingos diz que “(...) começamos a notar sinais de perigo quando algumas vozes se levantam e dizem que o AGP já morreu ou é caduco” . A questão é colocada como se alguém, de má-fé, quisesse decretar ou tivesse decretado unilateralmente a revogação do AGP, ou declarado a sua cessação. Porém, nada mais equivocado.
É que o processo de implementação do AGP cessou formalmente com a tomada de posse do Governo saído das eleições de 1994. Daí que o instrumento dessa implementação, a Comissão de Supervisão e Controlo, tivesse também cessado na mesma altura. Ninguém decretou ou declarou essa cessação: o próprio AGP assim o determinava, expressamente, no n.° 6 do Cap. II do Protocolo V, Das Garantias, nos seguintes termos : “A CSC cessará as suas funções com a tomada de posse do novo Governo”.
Portanto, se o AGP, hoje, está vivo, ele vive nos resultados, nos frutos que produziu: a paz e a normalização da vida dos moçambicanos, assim como os Acordos de Lusaka vivem na independência de Moçambique que permitiram proclamar. Porém, a vida do país e dos moçambicanos não se rege, hoje, pelos Acordos de Lusaka, mas sim pela Constituição da República. “Mutatis mutandi”, o mesmo vale para o AGP.
É assim que a gestão da independência do país é uma questão de todos os moçambicanos e tem como único quadro de referência a Constituição e as leis da República. O mesmo vale para a gestão da paz (e não já do AGP): trata-se de uma questão fundamental de todos os moçambicanos e tem como único quadro de referência a Constituição e as leis da República.
Para concluirmos que as conversações em curso não se fazem no quadro do AGP nem podem ter por objecto o AGP. Elas podem ter por objecto a gestão da paz, mas sempre por referência ao quadro constitucional, único que legitima quer o Governo, quer a RENAMO, quer qualquer outro partido, força política, instituição ou cidadãos que a ele sejam chamados ou nele participem.
Irei ainda mais longe: mesmo porventura admitindo que haja questões decorrentes de incumprimentos do clausulado no AGP, elas teriam de ser colocadas e analisadas no quadro da Constituição e das leis, e nunca no do AGP. Sob pena de se ter de restabelecer a CSC, único instrumento criado pelo AGP para dirimir litígios decorrentes da sua implementação ( alínea do n.° 5, do Cap. II, do Protocolo V, Das Garantias), o que é evidentemente um absurdo.
Portanto, e nesta perspectiva, a agenda do diálogo ou das conversações parece-me completamente aberta.
Armando Guebuza (dir.) e Raul Domingos
Armando Guebuza (dir.) e Raul Domingos

Da legalidade dos homens armados da RENAMO


OUTRO deliberado equívoco é o que se refere aos chamados homens armados da RENAMO, equívoco com que se pretende “normalizar” ou legitimar a sua existência, hoje, 20 anos após a assinatura do AGP.
Deliberado equívoco porque, de facto, não passa de uma sistemática tentativa de manipulação do AGP para se branquear uma grosseira violação do mesmo e flagrante ilegalidade.
A respeito desta questão, nada poderia ser mais claro e cristalino na letra e no espírito do AGP, senão vejamos:
Após prolongadas e difíceis discussões em Roma, acabou sendo assumida por todos a necessidade de que a RENAMO, a sair das matas onde garantia a sua própria segurança, pudesse continuar a confiar nos seus próprios meios no ambiente urbano dominado pelas forças do Governo, as FPLM e a PRM.
O carácter excepcional e transitório desta situação está claro na forma como foi concebida, regulada e definida a sua duração no tempo. Com efeito, o Protocolo V, das Garantias, no Cap. III, GARANTIAS ESPECÍFICAS PARA O PERÍODO QUE VAI DO CESSAR-FOGO Á REALIZAÇÃO DAS ELEIÇÕES, estabelecia no seu n.° 8 que “A RENAMO será responsável pela segurança pessoal imediata dos seus mais altos dirigentes. O Governo da República de Moçambique concederá estatuto policial aos elementos da RENAMO encarregados de garantir aquela segurança.”
Porque é evidente que nenhum Governo saído de eleições, nos termos do AGP, fosse ele da FRELIMO, fosse da RENAMO, iria admitir ou legitimar a existência de homens armados fora das FADM ou das Forças Policiais, essa situação foi regulada com todas as cautelas necessárias.
Por um lado, limitou-se esta situação excepcional expressamente ao período que vai do cessar-fogo até à realização das eleições. Quer dizer que, com a tomada de posse do novo Governo, automaticamente cessaria esta situação. Por outro lado, concedia-se estatuto policial aos elementos em causa como forma de os integrar e subordinar à legalidade, isto é, ao Estado. Quer dizer que passavam a ser polícias, pura e simplesmente, e não já forças de um partido.
A recusa da RENAMO de submeter as listas desses homens visou precisamente subtraí-los dessa subordinação. Mas ao subtraí-los dessa integração e subordinação transformou-os em milícia privada, fora da letra e do espírito do AGP e, definitivamente, fora da legalidade. E é nesta situação que se mantêm há já 20 anos, situação que, sublinhamos, configura uma clara, directa e grosseira violação da Constituição e dos fundamentos do Estado de Direito Democrático.
Aldo Ajello
Aldo Ajello

Sobre o AGP e a composição das FADM


Outro equívoco tem consistido na pretensão de que existem pendentes do AGP no concernente à formação e composição das FADM. Revisitemos então as disposições pertinentes do AGP que constam do Protocolo IV, Das Questões Militares.
A alínea b) do n.° 2, do Cap. I, Formação das Forças Armadas de Defesa de Moçambique, Princípios Gerais, dispõe que “As FADM....serão apartidárias, de carreira, profissionalmente idóneas, competentes, exclusivamente formadas por cidadãos moçambicanos voluntários, provenientes das forças de ambas as partes...”
O n.° 3 do Cap. I estabelece que “O processo de formação das FADM iniciar-se-á depois da entrada em vigor do cessar-fogo, imediatamente após a tomada de posse da... Comissão de Supervisão e Controlo (CSC). Este processo terá o seu termo antes do início da campanha eleitoral.”
Sobre os efectivos, o Cap. II do Protocolo IV previa que fossem constituídos por 24.000 para o Exército, 4000 para a Força Aérea e 2000 para a Marinha, sendo “(...) fornecidos em cada um destes ramos pelas FAM e pelas forças da RENAMO, na razão de 50% para cada lado.”
Em relação ao carácter apartidário da natureza e composição das FADM poderia parecer que o AGP se contradiz ao estabelecer que os voluntários deviam provir de ambas as partes na proporção de 50% para cada lado. Naquelas circunstâncias de fim da guerra e da necessidade de formação imediata de novas forças armadas, não podia haver outro ponto de partida senão o de se lançar mão dos efectivos dos ex-beligerantes.
Seria contraditório se o AGP estabelecesse o princípio de que esse seria para sempre o método de formação das FADM.
Por outro lado, a Assembleia da República, mais tarde, ao legislar sobre esta matéria, criando o SMO, não violou o princípio da voluntariedade, pois este princípio referia-se apenas àqueles cidadãos “provenientes das forças de ambas as partes”. O AGP não estabeleceu, nem podia estabelecer, que para o futuro, ou seja para todo o sempre, as FADM teriam de ser formadas na base da voluntariedade dos cidadãos e que estes teriam de provir dos desmobilizados de “ambas as partes”. Porque aí, sim, estaríamos perante a partidarização das FADM, violando o princípio da igualdade dos cidadãos perante a lei.
Pretender que os efectivos das FADM reflictam, hoje, os critérios estabelecidos no AGP exclusivamente para a sua composição inicial é o mesmo que tentar fazer a história andar para trás e parar no tempo.
O que se pode discutir hoje é se estão a ser rigorosamente observados os princípios e normas estabelecidos na Lei do SMO na incorporação de novos efectivos, por um lado, e, por outro, se na desmobilização ou na passagem à reserva se está a observar igualmente o estabelecido na lei que a regula, a qual não é certamente discriminatória.
Em relação à formação das FADM, resulta claro que o processo foi levado a cabo sob direcção e supervisão da CSC, na qual estavam representados o Governo e a RENAMO, Comissão que decidia por consenso das duas partes. A cada parte cabia preencher a quota correspondente aos 50% do total dos efectivos. Nenhuma das partes conseguiu preencher, mas cada qual sabe que não foi impedido por ninguém de o fazer. O facto é que isso nunca foi colocado como problema à CSC, nem deu causa a nenhum litígio. Portanto, é no mínimo ridículo tentar hoje assacar a uma das partes a incompletude do processo, quando ele foi conduzido a dois e por consenso.
Este foi apenas um esforço para dissiparmos alguns equívocos e evitarmos que a leitura das conversações em curso, na opinião pública, seja por eles prejudicada ou viciada. No entendimento de que, para tratarmos do nosso presente e do futuro, para tratarmos da paz, para falarmos e para consolidá-la, não precisamos de distorcer, de manipular ou de esquecer o passado.
  • Teodato Hunguana, Membro da delegação do Governo às conversações de paz em Roma
Fonte: Jornal Notícias - 02.05.2013 

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