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domingo, abril 14, 2013

Vidas que se Cruzam: nota fúnebre a Thatcher e Leftwich, debaixo dos tiros de Muxúnguè

Por José Jaime Macuane

Enquanto ecoam nos meus ouvidos os sons dos tiros da guerra de informação e contra-informação com o epicentro na tragédia de Muxúnguè, em menos de trinta minutos desta segunda-feira, 08 de Abril, recebo no meu e-mail duas notícias trágicas, mas que inspiram reflexão: a morte da dama de Ferro, Margareth Thatcher, e do proeminente académico do desenvolvimento (de origem sul-africana), Adrian Leftwich.

O que os dois têm em comum? Cada um à sua maneira, na proporção das suas audiências e pares dos seus meios profissionais, uma vida que certamente inspirou pensamento intelectual, práticas e abordagens sobre o desenvolvimento e os seus condicionalismos e desdobramentos políticos.

Margareth Thatcher foi, sem dúvida, um ícone da ortodoxia neoliberal, que apesar de ser provavelmente uma forma de pensamento mais ideológica que científica, como viria a ser notado, diga-se de passagem de forma tardia (e assim mesmo sem grandes consequências práticas), depois do início da crise financeira que iniciou nos últimos anos da década passada e ainda se arrasta até hoje, teve e ainda tem talvez a aplicação mais ampla que um conjunto de preceitos de eficácia duvidosa já terá tido na história de humanidade. Averso ao intervencionismo estatal, qual heresia ao liberalismo económico, a prática neoliberal, a que se pode creditar a hecatombe da indústria do caju e outras menos discutidas em Moçambique, tem um quê de fundamentalismo, que desafia a realidade.

Marcante neste pensamento foi a frase infeliz do candidato à presidência norte-americana John McCain em 2008, quando às vésperas da crise pronunciou a célebre frase “the fundamentals of our economy are strong”/ (os fundamentos da nossa economia são sólidos), que certamente lhe terá custado alguns votos à favor do inexperiente mas carismático Barack Obama. Como certamente alguns estarão recordados, este ainda teria que enfrentar a oposição sem quartel dos conservadores americanos ao intervencionismo estatal que teve que se seguir para, paradoxalmente, salvar parte dos seus interesses económicos, tendo sido rotulado de uma política anti-americana, e acusado de ser socialista, outra heresia na política americana. 


Do mercado, à organização do Estado e desembocando na política, ancorada nas ideias da nova direita, turbinada pelo cansaço das políticas económicas keynesianas que ganharam corpo após a grande depressão e reinaram quase absolutas no pós-segunda guerra mundial, Margareth Thatcher foi, usando uma linguagem política mais familiar entre os moçambicanos, apóstola da supremacia do mercado sobre a intervenção governamental/estatal, que junto com Ronald Reagan, capitanearam uma verdadeira revolução que tomou contornos de hecatombe económica em muitos países em desenvolvimento. Algumas das medidas que vieram nessa leva são os programas de ajustamento estrutural, na administração pública, a chamada nova gestão pública (que Thatcher abraçou junto com a Nova Zelândia, o que contribuiu para a sua denominação como o modelo de Westminster) a entrada das formas de gestão do sector privado, a privatização do património público, a terciarização, os contratos de desempenho e outras medidas fundamentadas na ideia de que as formas de actuação do estado, particularmente pela burocracia tradicional weberiana, são inerentemente ineficientes e descambam na promoção do interesse pessoal em detrimento do público. Ao estado restou garantir os direitos e liberdades fundamentais, mantendo ainda a prerrogativa weberiana (não livre de questionamentos dos ultra e anarco-liberais) de reivindicar o monopólio do uso legítimo da violência. O pensamento é neoliberal, porque como o nome sugere, é a recauchutagem de ideias já existentes.


Escusado dizer que à ortodoxia da supremacia do mercado se contrapôs uma vasta literatura sobre o papel do Estado no desenvolvimento, epitomizada pela obra de Theda Skocpol “Bringing the State Back in” algo como “trazer o estado de volta”. Se o caro leitor me seguiu até aqui (paciência que agradeço), deve ter notado que o pensamento e a prática política do desenvolvimento se têm feito historicamente e de forma cíclica de idas, vindas, partidas e voltas do Estado e do Mercado, com a política sempre presente, apesar da retórica enganosa sobre a variabilidade do grau da sua proeminência.

Que isto tudo tem a ver com Leftwich e os tiros de Muxúnguè?

Bem tenho que dizer que tive a oportunidade de conhecer o professor Leftwich em Março de 2012, em Copenhaga, numa apresentação dos resultados de cinco programas de pesquisa sobre a economia política do desenvolvimento na África em um dos quais eu estava envolvido e produzi um artigo sobre Moçambique. Numa conversa breve, trocamos cartões e o professor Leftwich falou do grupo de pesquisa que estava a liderar sobre coalizões, liderança e desenvolvimento e falamos da possibilidade de um putativo estudo sobre o caso moçambicano. No ínterim entre as intenções e a sua efectivação, vinha recebendo “posts” do grupo de pesquisa que Leftwich lidera, o DLP (Developmental Leadership Program), até que hoje recebi o trágico e-mail comunicando o seu desaparecimento físico.

No elogio fúnebre dos seus colegas, entre as causas e circunstâncias da sua morte, destaca-se o seu entusiasmo pelo programa que vinha liderando nos últimos cinco anos e resume-se a sua vasta contribuição para o pensamento académico e prático sobre o desenvolvimento, fundamentada numa extensa base empírica, com uma frase: “bring politics back in”/”trazer a política de volta”; consubstanciando-a na ideia de que o desenvolvimento é essencialmente um processo político.

Ora, se a história mundial é feita de idas e vindas e se a política, por mais que aparentemente se ausente, sempre está presente e sempre proclama a sua volta, aclamada ou não, não nos deve espantar que a crise que o país vive neste momento não seja mais nada do que isso: uma crise essencialmente política. Por isso, fico contente de ver compatriotas e colegas de profissão, na contramão do pensamento legalista dominante e atávico, nos ecrãs da televisão, a proclamarem o fracasso da política como a causa da crise entre a Frelimo e a Renamo (porque na essência é isso mesmo, mais do que uma crise do Estado com um grupo armado), e a necessidade de a mesma ser trazida de volta. Concordo. Apenas tenho ressalvas, que não se volte à mesma política negligente e displicente, pejada de judicialismos que até aqui tem imperado (sempre com prestativos apologistas que em público lhe conferem a sua pretensa base científica, mas que não compensa o défice de sensatez), que mais do que resolver o conflito, resolve, paliativamente, o processo.

Paradoxalmente, a política que agora dá mostras de ter fracassado sempre se apresentou como ubíqua e omnipotente, subvertendo as mais elementares leis do mercado e do Estado, malgrado as reformas económicas e da administração pública de inspiração Thatcherista actualmente em curso, que ditaram a conversão oficial do país, que já vai quase trintona, ao credo neoliberal. Na verdade, nestes quase trinta anos, incluindo os 20 do Acordo Geral de Paz, a nossa elite política viveu o melhor dos mundos: sem muito esforço político, devido ao “maravilhoso povo moçambicano”, se deu ao luxo de acender uma vela para o neoliberalismo de conveniência como justificativa de acumulação económica, mas nunca se identificou com o seu substrato que é a competição e a liberdade económica, e muito menos com o Estado como um árbitro imparcial que garante os direitos e as liberdades fundamentais, instrumentais ao sistema liberal. E nem ficou no estatismo socialista. Manteve-se sim numa posição ambígua em relação ao estado e ao mercado e usou aquele de forma patrimonial, o que na essência acabou o enfraquecendo.

A existência de homens armados fora da esfera estatal, que elimina o monopólio legítimo ou legal do uso da força, que é característico do estado moderno, não é um mero traço residual do Acordo Geral da Paz, mas sim mais uma faceta de um Estado fraco; fragilizado pela má política, que em vinte anos não conseguiu esvaziar as bases sociais, económicas e políticas em que se sustenta a existência de tal força concorrente e aberrante.

Retomando a ideia weberiana do uso legítimo da força pelo estado, é aí onde está a nuance entre domínio e hegemonia, da qual vale recordar a ideia de que um estado que usa a violência para a solução dos problemas em detrimento de uma forma mais negocial ou infra-estrutural de exercício de poder e, portanto, é um estado fraco e com risco de perder a legitimidade. E a hegemonia, elemento importante para a construção do Estado e sua legitimidade, se constrói com um misto de força e construção de consensos, portanto, precisa da política, enquanto o domínio se fundamenta na força, mas a sua sustentação também depende da existência desta em proporções maiores.

Do mesmo modo, a política que pode garantir um número confortável de votos, certamente garante a dominação, mas nem sempre tem a mesma força para construir e consolidar a hegemonia. Só que é essa política que agora é chamada a resolver um problema de fundamento e é natural que se revele ineficaz, dada a sua fragilidade e inadequação para o momento. Por isso, trazer a política de volta implica trazer uma nova política e não recauchutar a que actualmente está no comando e já de comprovada ineficácia. E essa volta da política verdadeiramente renovada, muito mais do que um imperativo de desenvolvimento (como diria o saudoso professor Leftwich), é um imperativo nacional e de sobrevivência deste país como um projecto de nação viável. Muito mais do que imaginamos, nossas vidas se cruzam com as ideias destas duas figuras que hoje partiram deste mundo e nós nele ainda estamos e nele contamos permanecer ainda mais algum tempo. Thatcher e Leftwich descansem em paz.

Maputo, 08 de Abril de 2013

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