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sexta-feira, fevereiro 22, 2013

Insinuações de primeira classe (na íntegra)

Há alguns meses um amigo jornalista, Emídio Beúla, chamou a minha atenção para um relatório britânico sobre a exploração ilegal de madeira em Moçambique e disse-me que ia dar de falar.

Li o relatório e não fiquei muito impressionado pela sua qualidade. Entretanto, o vaticínio do Emídio Beúla confirmou-se. O relatório está a dar que falar. Muita gente até exige a demissão do Ministro da Agricultura, José Pacheco, que se sai muito mal nesse relatório. Se se confirmar que ele está envolvido num negócio ilícito e, felizmente, a Procuradoria Geral da República está a investigar, ele terá de se demitir. Por enquanto, ele devia gozar do benefício da dúvida ou, melhor ainda, da presunção de inocência que é tão importante para o Estado de direito. Digo isto na brincadeira, mas a coisa é séria: está a ficar fácil desestabilizar Moçambique. Basta uma pessoa suspeita, vamos lá, um homem de negócios chinês, dizer que... para a gente começar a gritar “demita-se!”. Percebo, mas não me parece prudente.

Vejo dois problemas. Um é o da credulidade e o outro é o da cultura de leitura crítica. O primeiro é de natureza política e, por isso, não tem solução. O segundo resolve-se, mas exige muito trabalho. O problema da credulidade consiste em acreditar apenas naquilo que nos convém. Se convém a alguém acreditar na ideia de que um Ministro está metido em negócios ilícitos não há factos, nem reservas, que lhe vão fazer mudar de ideias. Antes pelo contrário: Os factos só vão atrapalhar. Não critico esta atitude, pois é própria do registo político. A simples insinuação é suficiente para atiçar as chamas do fogo que a campanha política precisa de manter aceso. É normal, por isso não precisamos de nos deter aqui. Talvez mais uma frase para dizer que é normal, mas lamentável quando esse registo político toma a esfera pública de assalto. Receio que em muitas discussões ele seja dominante. É uma pena. Mas percebo.

O problema da cultura de leitura crítica tem solução, embora exija, num primeiro momento, que as pessoas leiam mesmo. Há gente que emite opinião sobre coisas que não leu! Na verdade, o mais difícil na leitura crítica é retirar da cultura que a envolve os elementos do registo político. Por exemplo, quando lemos coisas que dizem respeito ao nosso país e foram escritas por gente de fora temos a tendência de partir do princípio de que essas coisas têm que estar absolutamente certas. Isto é tanto mais o caso quanto mais crítico e negativo for o teor em relação a aspectos (políticos) do nosso país. A coisa funciona também inversamente, isto é acreditarmos quando se diz bem e nós formos os da auto-estima.O problema, naturalmente, é que talvez com a excepção de “está a chover” ou “Xai-Xai é a cidade mais bonita de Moçambique” há poucas coisas na vida que são tão evidentes ao ponto de merecerem o estatuto de factos incontroversos. O que traz o facto até nós é a opinião de alguém, logo, a questão é sempre de saber se podemos depender dessa pessoa ou não.

Na avaliação dessa questão crucial há muita coisa que intervém e que exige, para um debate sério e útil de ideias, mais comedimento nas conclusões que tiramos. Aliás, devíamos até deixar as conclusões para lá e concentrarmos a nossa atenção no que meteu requerimento para ser tratado como facto. Que argumentos é que nos são apresentados pelas pessoas para nós tratarmos as suas opiniões como algo mais sério? Quando li, pela primeira vez, o relatório em questão – “Appetite for Destruction: China’s trade in illegal timber”; a versão do relatório em português tem o título: “Conexões de primeira classe: Contrabando, Corte Ilegal de Madeira e Corrupção em Moçambique” – não fiquei com boa impressão. Reli-o nos últimos dias e a minha confiança afundou-se ainda mais. É uma excelente peça de jornalismo investigativo, mas por isso mesmo, padece de alguns dos males de que padece esse género. Isto é, o principal motivo é a denúncia – ou expôr algo – e quando é assim o tratamento dos dados raramente é cuidadoso no sentido de ser bastante selectivo. Junta-se a isto o facto de a agência que publicou o relatório não ser exactamente uma instituição de pesquisa científica, mas sim uma instituição com uma missão, nomeadamente a missão de salvar a natureza. Este tipo de compromisso é importante, naturalmente, mas, lá está, também não é simpático ao tratamento isento de dados.

Paranoia em relação à China

A conclusão a que o relatório chega é de que o mundo está a perder não só as suas florestas como também, e sobretudo, espécies raras e preciosas de madeira, largamente por causa do apetite voraz chinês pela madeira que é satisfeito pelo comércio ilegal. Esta é a preocupação principal do relatório. Suponho que tenha sido também o facto que os autores do relatório quiseram estabelecer quando se lançaram na investigação. Os chineses estão a delapidar as florestas! Faz parte duma paranoia em relação à China que se instalou sobretudo no Ocidente e que tem promovido instintos quase que maternos jamais vistos em relação à África. Quase toda a gente quer nos proteger dos chineses. A narrativa subjacente não é, claro, diferente do que os outros fizeram connosco ao longo dos séculos, mas isso é irrelevante neste momento. Só que já o disse! Na parte que toca Moçambique há basicamente três aspectos a destacar e que bem considerados deviam ter conduzido a um outro tipo de discussão no país. Ainda vamos a tempo.

O primeiro diz respeito à forma como os dados foram recolhidos. Para além de se terem consultado movimentos comerciais relativos à madeira os investigadores também fingiram ser compradores de madeira e abordaram os madereiros chineses dessa maneira. Como era de supor que os chineses não fossem dar informações sobre as suas actividades a qualquer pessoa, faz muito sentido usar esta artimanha para obter dados (em jornalismo). Só que aqui as coisas se complicam um bocado. Primeiro, o leitor fica completamente à mercê do autor do relatório. Não há nenhuma maneira de verificarmos as informações que ele nos presta, é a sua palavra contra a nossa (se discordarmos). Isto parece uma ninharia, mas não é.

Os autores usam a fanfarronice dos chineses por eles contactados como “prova”, por exemplo, do envolvimento do Ministro Pacheco nos esquemas. O problema aqui é de eles nos convidarem a acreditar que tudo o que os chineses dizem é necessariamente verdade para além de descurarem o facto de que mascarados de homens de negócios qualquer comerciante, sobretudo um comerciante que se movimenta na ilegalidade, vai se sentir tentado a exagerar os seus contactos políticos. Reparem que não estou nem a dizer que os chineses não disseram isso, nem que o que eles disseram não é verdade. Estou apenas a dizer que o relatório não me proporciona, neste ponto, uma base segura para eu avaliar a qualidade das suas evidências.

Mesmo coisas aparentemente mais convincentes como a afirmação segundo a qual o ex-Ministro se teria comprometido a ajudar a desbloquear uma situação uma vez que os directores tinham estado todos abaixo dele não é tão clara como a credulidade nos pode levar a pensar. Em princípio, um membro sénior do partido no governo, ainda para mais deputado, pode ter interesse em que um investidor veja resolvidos certos problemas. Faz-se em todo o lado, é por isso que existem “corredores”. A questão, contudo, é se esse desbloqueamento é legal ou não. Portanto, embora o relatório sugira fortes indícios de envolvimento do Ministro e do ex-Ministro no negócio da madeira com os chineses, não apresenta elementos que nos permitam concluir que esse envolvimento seja à margem da lei ou que seja mesmo coisa assente. O que o relatório faz a este nível é tecer insinuações de primeira classe que encontram terreno fértil na nossa esfera pública crédula.

O segundo aspecto é ainda mais interessante. Em várias passagens do relatório – no relatório em Português há inclusivamente uma lista completa disso – fala-se de apreensão de carregamentos ilegais e aplicação de multas aos chineses. Não sei se sou o único a achar que este assunto devesse merecer maior atenção nas nossas discussões. Se há apreensões e multas é porque nem todo o sistema está corrompido, portanto, há quem faça o seu trabalho com zelo e brio. A questão é: quem são esses? Porque são assim? E, acima de tudo, como é que um Ministro e um ex-Ministro conseguem furar essa integridade? Não fazia, provavelmente, parte dos termos de referência do estudo investigar isso, muito embora o relatório não se coíba de fazer “recomendações” a Moçambique. Mas para mim este ponto é crucial e devia merecer mais destaque na discussão séria deste problema. Há gente aparentemente íntegra em Moçambique que faz o seu trabalho. Mas que tipo de gente é essa? São fieis da IURD? São da oposição? Quem são? Devo salientar aqui um aspecto notável, nomeadamente o facto de os chineses terem parado com os seus negócios por alturas do congresso da Frelimo porque o Presidente da República estava lá e não queriam problemas. Ora, a forma como se discutem estes assuntos sempre dá a entender que a corrupção do país é por inteiro. Afinal os ladrões têm medo do Presidente? Mais uma vez, o que significa isto para a discussão na esfera pública?

Finalmente, há um aspecto do pelouro da metodologia num sentido ainda mais restricto. Quando investigamos seja o que for não podemos ver tudo. Pegamos apenas numa parte normalmente representativa e inferimos a partir dela a natureza do todo. Neste sentido, uma pergunta que me coloco é se o estudo investigou a parte corrupta dos madereiros chineses ou o todo. Pelas motivações missionárias dos autores do estudo suponho que eles tenham feito a primeira coisa. Ora, pode ser que os casos por eles analisados sejam mesmo representativos das práticas dos madereiros chineses em Moçambique e no mundo, mas o relatório não diz nada sobre isso. Ou por outra, com essa falta de clareza o relatório pode nos conduzir a uma discussão importante, sem dúvidas, mas desfocada por não partir duma caracterização adequada da situação. Sei que alguns vão dizer que não é o primeiro estudo a chegar às mesmas conclusões. E eu vou dizer, em resposta, que sim, não é o primeiro, mas os anteriores também não me inspiraram muita confiança para além de que nestes meandros as pessoas gostam de repetir o que os outros já disseram. Portanto, e mais uma vez, há aqui um elemento muito importante que não está esclarecido no relatório. Numa das passagens faz-se referência ao facto de ter havido uma apreensão a partir duma denúncia feita por outros chineses. Pode ter sido por razões de concorrência como também pode ter sido porque existem madereiros chineses que preferem a legalidade e a transparência. Precisamos de melhor caracterização do problema para discutirmos melhor as nossas opções.

Vou terminar com um reparo completamente supérfluo. Não escrevo este texto para defender seja quem for. Não me surpreenderia muito se tudo quanto vem no relatório fosse verdade ou se a situação fosse pior ainda. Só que o assunto é demasiado sério para depender apenas da leitura que o meu coração faz. Só é útil discutir o país na base de informação sólida. Por mais evidente que as coisas nos pareçam, devíamos sempre fazer o esforço de ler, e ao fazê-lo, ler criticamente as coisas e, se não nos sentirmos convencidos, evitarmos tirar conclusões. Isto não se aplica aos que fazem discussão política, claro. Esses são livres de discutir conclusões, principal ocupação de quem não tem mais nada a fazer na vida."

Fonte: Jornal Notícias – 22.02.2013

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