Três eventos culturais realizados no Brasil serviram de cenário recentemente para a demonstração de dois graves problemas brasileiros: a discriminação e a desigualdade raciais.
Um dos eventos literários mais importantes do país, no Rio de Janeiro, e o concurso Miss Universo, em São Paulo, foram marcados por contextos de racismo. Já na capital Brasília, um seminário apontou dados impressionantes sobre a diferença que existe entre o mundo dos negros e o dos brancos no Brasil.
No episódio de racismo ocorrido durante a 15ª Bienal do Livro, no Rio de Janeiro, o funcionário da "Editora Abril" acusado de discriminar um grupo de estudantes afrodescendentes foi indiciado esta semana. O crime ocorreu quando as jovens teriam pedido um convite para uma palestra. O funcionário da editora teria negado a solicitação dizendo que as alunas não poderiam ir ao evento porque eram “negras de cabelo duro e faveladas”.
Na segunda-feira, Leila Lopes, a angolana vencedora do "Miss Universo 2011", foi alvo de ataques racistas de brasileiros em redes sociais, logo depois do concurso realizado pela primeira vez no Brasil, em São Paulo. Um usuário do "Facebook", do Rio de Janeiro, chegou a chamar Leila de “macaca”.
Os dois episódios ajudam a ilustrar a realidade que marca a vida do afrodescendente no Brasil, país de maioria populacional negra. A disparidade entre a vida do negro e do branco no território brasileiro ganhou provas científicas também esta semana em um seminário que debateu, na quarta-feira , o “Relatório Anual das Desigualdades Raciais no Brasil 2009 – 2010”, na Câmara dos Deputados, na capital Brasília.
O evento debateu o documento, desenvolvido pelo Laboratório de Estudos sobre Desigualdades Raciais da Universidade Federal do Rio de Janeiro (LAESER), considerado o mais completo já feito sobre o tema. O responsável pelo estudo é o economista e sociólogo Marcelo Paixão, um dos mais importantes pensadores negros da atualidade, especialista em relações raciais.
O professor revelou no evento em Brasília dados preocupantes: os afrodescendentes têm menor chance de acesso ao sistema de saúde no Brasil. A taxa de não cobertura ao sistema chega a 27%, enquanto entre os brancos esse índice é de14%. 42% das mulheres negras tiveram acesso ao exame de pré-natal. Entre as brancas o percentual é bem maior, 71%.
As crianças e adolescentes são mais dependentes da merenda escolar para sobreviver, 60,6%. Entre as brancas esse número cai para 48,1%. A população negra tem também menor probabilidade de acesso à previdência social. As crianças afrodescendentes têm menos chances de ingresso nas creches e instituições de ensino. Para o especialista, esses números confirmam que a cor da pele é determinante para ser melhor ou pior tratado no Brasil:
“O fato é que a variável cor da pele, a aparência física é um critério de classificação social no Brasil e ela aumenta a probabilidade de uma pessoa de pele mais escura ou mais clara ter determinadas chances ou determinadas restrições sociais dentro, seja do aparelho do Estado, seja da dinâmica da vida social no seu conjunto.”
Outro dado preocupante com relação à desigualdade racial no Brasil é observado no campo da educação superior. A grande e esmagadora maioria dos jovens negros está fora das universidades brasileiras:
“A taxa de analfabetismo hoje no Brasil ainda é o dobro da população branca. O percentual de jovens negros freqüentando a universidade é de apenas sete por cento. 93% dos jovens estão fora das universidades. É evidente que isso vai acabar se refletindo no acesso ao poder político, na capacidade de produzir intelectuais ou lideranças que sejam capazes de verbalizar as demandas dessa coletividade, de mostrar no espaço público os efeitos negativos da discriminação, do racismo,” detalha o analista.
Excluídos da educação, os negros do Brasil ficam fora da política, como destaca o professor:
“A grande maioria dos deputados brasileiros são homens brancos com nível superior, pelo menos incompleto. Perto de 86 %. E isso reflete o que é a sociedade brasileira, desigualdade de renda, desigualdades de acesso ao poder econômico e que vão se caracterizar também no que tange ao poder político,” afirma.
“Não tem um nome hoje que podemos mencionar que possa talvez ser candidato a presidente da república. Mesmo para governo dos estados, é difícil lembrar de um afrodescendente com chances de vitória. Isso é ruim porque perdemos vocação política, pessoas que teriam talento para tanto, vão ficar com as carreiras bloqueadas,” completa.
O estudo debatido no seminário, em Brasília, mostrou que em todos os setores da sociedade brasileira a disparidade entre a vida dos negros e brancos é evidente:
“Há uma lacuna de cobertura a população afrodescendente no Brasil e que vamos precisar fazer maiores esforços para produzirmos políticas que, sem a perda da dimensão universal, sejam capazes de compreender situações particulares que vão afetando cada grupo da população, entre eles o da população negra. É necessário saber que a pobreza é um fator importante na construção desse cenário, mas é importante mencionar que ele é produto também de práticas institucionais que acabam dando a população negra serviço de menor qualidade ou, muitas vezes, se quer, dando a essa população negra a qualquer coisa.”
Os dados são complexos, de respostas longas. As soluções também, mas passam por um passo inicial que deveria ser simples: “é a tal vontade política que vai ser o nosso combustível para começarmos a buscar as tentativas de superação desse quadro,” lembra o estudioso.
Mas, apesar do gravíssimo cenário, Marcelo Paixão acredita que o brasileiro possa estar sinalizando para mudanças, ainda que lentas.
“O que aconteceu no Brasil no período recente foi uma mudança na forma do brasileiro responder ao Censo qual é a sua cor ou raça. Até o ano de 1995, a população que se declarava branca no Brasil era em torno de 54%. No último censo de 2010, a população que se declara branca é de 48%. Uma mudança de sete pontos percentuais. Então, houve sim uma maior sensibilidade do brasileiro médio de se ver como uma pessoa que tem origens que não são apenas européias. Esse processo de auto identidade suscita um foco diferente de o brasileiro reconhecer a sua ancestralidade. É interessante porque projeta como o cidadão no Brasil pode estar querendo se ver no futuro, num país mais equilibrado, do ponto de vista social,” finaliza.
Fonte: Voz da América - 16.09.2011
Redlectindo: Que comentários dão os meus amigos brasileiros sobre este artigo?
"Vida de negro é difícil".
ResponderEliminarZicomo
Sem dúvidas Muna, em geral duma maneira directa ou indirecta há destas coisas em todo o lado e paradoxalmente mesmo em países onde isso não podia acontecer.
ResponderEliminarEntretanto, eu fico muito preocupado com racismo e ou discriminação estrutural e ausência de uma política de combate a esse males.
"A do amarelo, nao 'e fácil também"
ResponderEliminarRisos, Karim.
ResponderEliminarNão me faça rir por favor.
Claro que o racismo existe em todo o canto, pessoalmente não alimento.
Nunca sofri uma atitude frontal de racismo, nem dou campo para que isso aconteça, simplesmente porque não tenho a capacidade de escolher, a dedo,o tipo de amizade e meio que frequento.
Mas há quem dos meus que teve de enfrentar o racismo frontal, coisa que eu, citando Deus, nunca sofri.
Também não vamos longe, as nossas praias são nossas? O nosso país é nosso?
Zicomo
Ha racistas de todas as cores e vitimas do racismo de todas as cores e o racismo revela-se de varios modos! O racismo, directo ou disfarçado, é sempre condenavel!
ResponderEliminar"simplesmente porque não tenho a capacidade de escolher"
ResponderEliminarSimplesmente porque TENHO a capacidade de escolher.
Zicomo
Karim, é o problema de alguns quererem justificar a colonizacão.
ResponderEliminarJosé, é indiscutível que haja racismo em todo o lado e de todas as cores de pele, tudo condenável. Mas uma coisa não devemos esquecer e há que termos atenção, penso mesmo especial. Por exemplo, os afrobrasileiros, o são porque um crime contra a humanidade ainda condenável - escravatura. Parece que há quem se orgulha por este acto e isso é preocupante. Existe um outro problema que é o que apontas - forma disfarçada. Uma vez, um jornalista sueco de nome Jan Josefsson apanhou alguns políticos racistas na curva e aí foi o fim da carreira política deles. Isso é gracas ao combate estrutural do racismo e discriminação na Suécia e acho ser a mesma política nos EUA.
Acredito que para a superação do racismo, o primeiro passo é admitir a sua existência, bem como pensar, refletir, buscar informação e se posicionar sempre. Na área em que atuo, a Educação Básica, num dos bairros mais carentes de Duque de Caxias, Saracuruna, estou envolvida em uma grande batalha, pois, deparei-me com mazelas tais como: repressão, perseguição, assédio moral entre outras transgressões que acontecem na escola, o que tem inviabilizado discussões, debates e proposições, assim como, a prática e o exercício da cidadania. Em razão disso, estou lendo Criminologia, de Sérgio Salomão Shecaira, a fim de me apropriar da ferramenta do direito para, enfim, compreender melhor a situação, a fim de agir com mais segurança. De maneira que, este trecho do livro pode ilustrar bem os fatos e ampliar o entendimento a respeito das desigualdades no Brasil. "A criminologia crítica distingue, pois, entre os crimes que são expressão de um sistema intrinsecamente criminoso (criminalidade do colarinho-branco, racismo, corrupção dos agentes estatais, crime organizado, belicismo) e o crime das classes mais desprotegidas.
ResponderEliminarPara aqueles, defende uma maximização da intervenção punitiva (nas origens defendeu a própria intervenção punitiva, já que muitas dessas condutas não eram criminalizadas); para estes, ao contrário, defende uma minimização da intervenção punitiva, quando não a própria descriminalização da conduta, bem como a substituição das sanções estigmatizantes por não estigmatizantes na pequena criminalidade pessoal/patrimonial".
Cara Geovania
ResponderEliminarMuito obrigado pela sua contribuição. Tanto que eu gostaria que escrevesse mais palavras, mas você foi ao que penso que é importante no combate ao racismo e a qualquer discriminação. O combate tem que ser institucionalizado de formas que os vítimas saibam a quem recorrer. Em muitos países recorre-se ao discurso para tratar duma coisa séria que há menos de meio século foi institucionalizada em alguns países, África do Sul por exemplo. O que acontece é que o discurso pode ser bonito e julgo que é por causa disso que em países que se diz ajudar outros a combater o racismo são os mais terríveis quando conseguem uma pequena oportunidade para manifestá-lo. Depois da queda do muro de Berlim, a vida foi dura para os negros na ex-Alemanha socialista (RDA). Na Rússia e outros países, ex-estados da União Soviética foi ou é o mesmo. Isso não era de muito esperar...
Em países onde o combate ao racismo e outro tipo de discriminação se leva a sério, cria-se um órgão jurídico onde o indivíduo que se sente vítima vai queixar-se. Isso é o que acontece na Suécia e outros países nórdicos, e penso também nos EUA. Não digo que o racismo e discriminação estejam erradicados, mas difícil é negar serviço a alguém dizendo eram “negras de cabelo duro e faveladas” ou mesmo chamar à Leila de macaca porque é negra, isto mesmo que fosse ao branco ou amarelo. Aí a justiça tomar-lhe-ia conta...
Abraco