Rosebank, Johannesburg, África do Sul
Nós abaixo-assinados somos cidadãos africanos comuns, todos imensamente condoídos e indignados, vendo que africanos como nós estão submetidos aos horrores da guerra, atacados por potências estrangeiras que claramente repudiaram a visão nobre e relevante inscrita na Carta das Nações Unidas[1].
O objectivo que nos levou a escrever esta carta é inspirado pelo nosso desejo, não de escolher lados, mas de proteger a soberania da Líbia e o direito do povo líbio de escolher os seus líderes e determinar o seu próprio destino.
A Líbia é país africano.
Dia 10 de março, o Conselho de Paz e Segurança da União Africana aprovou uma importante resolução (3) na qual se delineou o mapa do caminho para encaminhar a solução do conflito líbio, consistente com os deveres da União Africana nos termos do Capítulo VIII da Carta das Nações Unidas.
Quando o Conselho de Segurança da ONU aprovou a sua Resolução n. 1.973, sabia da decisão da União Africana, anunciada sete dias antes.
Ao decidir ignorá-la, o Conselho de Segurança deliberadamente contribuiu para subverter a lei internacional, além de comprometer a legitimidade da ONU aos olhos dos povos africanos.
Desde então, por outros caminhos, tem ajudado a promover e aprofundar um processo imensamente pernicioso de marginalizar a África entre as demais nações do mundo, também no que tem a ver com o de solucionar os problemas do continente.
Indiferente ao que determina a Carta das Nações Unidas, o Conselho de Segurança da ONU declarou a sua guerra privada contra a Líbia, dia 17/3/2011.
O Conselho de Segurança deixou-se manipular pelo que o International Crisis Group (ICG), no seu Relatório sobre a Líbia, de 6/6/2011[2], descreve como “matérias jornalísticas sensacionalistas segundo as quais o regime líbio estaria a usar a sua Força Aérea contra manifestantes”.
Assim (mal) informado, o CS-ONU aprovou a Resolução n. 1.973, que autorizava que se impusesse uma “zona aérea de exclusão” sobre a Líbia e que se tomassem “todas as medidas necessárias (...) para proteger civis e áreas populosas sob ameaça da Jamahiriya Líbia Árabe (...)”.
Assim, sobretudo, o Conselho de Segurança usou o conceito altamente controverso e sob o qual não há consenso entre os especialistas em direito internacional da “responsabilidade/direito de proteger”, chamado R2P, para justificar a intervenção militar de que trata o Capítulo VII, na Líbia.
Sob esta duvidosa cobertura, o Conselho de Segurança da ONU já cometeu uma longa lista de agressões que configuram a transformação desse Conselho num instrumento ao serviço dos desejos dos estados militarmente mais poderosos dentre os seus estados-membros.
Até agora, o Conselho de Segurança não conseguiu apresentar nenhuma evidência da sua autorização para o uso da força nos termos do Capítulo VII da Carta da ONU tenha sido resposta proporcional e adequada a uma situação que, na Líbia, e depois da intervenção militar, foi convertida em guerra civil.
Em seguida, o Conselho de Segurança ‘terceirizou’ ou ‘subcontratou’ a implementação da sua resolução para a Organização do Tratado do Atlântico Norte (NATO), admitindo que esta aliança militar agisse como uma “coaligação de vontades”.
O Conselho de Segurança não cuidou de implantar qualquer mecanismo ou processo para supervisionar os ‘serviços’ do exército ‘subcontratado’, de modo a garantir que as provisões das suas Resoluções fossem completamente e satisfatoriamente atendidas. Tampouco fez qualquer esforço para monitorar e analisar as acções da NATO ‘subcontratada’.
O Conselho de Segurança permitiu que se estabelecesse um “Grupo de Contacto” sem qualquer legitimidade e sem autorização legal formal – mais uma “coaligação de vontades” – que, de facto, desconstituiu a própria autoridade do Conselho de Segurança como autoridade competente para interferir no futuro da Líbia.
Confirmando essa desconstituição inadmissível, em reunião do dia 15/7/2011 em Istambul, esse “Grupo de Contacto” “reafirmou que o Grupo de Contacto continua como plataforma adequada e ponto focal de contacto com o povo líbio, para coordenar a política internacional e ser um fórum de discussão do apoio humanitário e apoio pós-conflito”.
Dada a omissão do Conselho de Segurança, as duas “coaligações de vontades” – a NATO e o “Grupo de Contacto” –, de facto e para todos os efeitos, reescreveram a Resolução n. 1.973.
Assim, as tais “coaligações de vontades” abertamente assaltaram um poder que legitimamente só o Conselho de Segurança poderia ter e puseram-se a trabalhar para derrubar o governo líbio, golpe que passou a ser designado como ‘mudança de regime’. Para esse objectivo, passaram a usar da força e de todos os meios para derrubar o governo líbio – objectivo que absolutamente nada tem a ver com as decisões do Conselho de Segurança da ONU.
Mediante estes artifícios e sem qualquer atenção às Resoluções n. 1.970 e 1.973, aquelas “coaligações de vontades” atreveram-se a declarar ilegítimo o governo da Líbia e a proclamar um ‘conselho nacional de transição’ organizado em Benghazi como “legítima autoridade governante na Líbia”.
O Conselho de Segurança da ONU é hoje absolutamente incapaz de explicar como as decisões tomadas pela NATO e pelo “Grupo de Contacto” teriam algo a ver com a questão crucial de “facilitar o diálogo com vistas às reformas políticas necessárias para encontrar uma solução pacífica e sustentável” para o conflito na Líbia.
As acções dos seus ‘subcontratados’ – a NATO e o “Grupo de Contacto” – converteram a ONU em parte beligerante no conflito líbio, desnaturando a Organização cujo papel só poderia ser de pacificador neutro e equidistante, igualmente, das duas facções armadas que disputam o poder na Líbia.
Não bastasse, o Conselho de Segurança optou por repudiar a lei internacional, ao deliberadamente ignorar o que determina o Capítulo VIII da Carta das Nações Unidas sobre o papel das instituições regionais legítimas.
A ‘guerra ao terror’ de George W. Bush contra o Iraque começou dia 20/3/2003. No dia seguinte, 21/3/2003, o jornal britânico The Guardian publicou um curto artigo assinado pelo conhecido neoconservador norte-americano Richard Perle, sob o título “Graças a Deus a ONU morreu. O seu fracasso abjecto só nos trouxe anarquia. O mundo precisa de ordem”[3].
Mas toda a arquitectura global do pós-Segunda Guerra Mundial, para manutenção da paz e da segurança internacionais centravam-se no respeito à Carta das Nações Unidas.
Hoje, o Conselho de Segurança da ONU deve saber que, pelo menos no que tenha a ver com a Líbia, actuou de modo que resultou em, e levou a, perder toda a autoridade moral para efectivamente presidir a discussão e o encaminhamento de processos criticamente importantes para que se alcance a paz global e se realize o objectivo da coexistência pacífica entre os povos do mundo.
Ao arrepio de tudo o que determina a Carta das Nações Unidas, o Conselho de Segurança autorizou e permitiu a anarquia que se abateu sobre o povo líbio.
Por final, disso tudo o que se vê é que:
– muitos foram mortos ou aleijados;
– grande parte da infraestrutura do país foi destruída, o que empobreceu ainda mais o povo líbio;
– a animosidade e as fissuras que dividem o povo líbio foram aprofundadas;
– a possibilidade de chegar-se a um acordo negociado, inclusivo e estável tornou-se menor que nunca;
– a instabilidade aumentou em todos os países vizinhos da Líbia, sobretudo nos países do Sahel africano (Sudão, Chade, Níger, Mali e Mauritânia);
– a África herdará um desafio muito maior e mais difícil no que tenha a ver com questões de paz e estabilidade e, portanto, afastar-se-á ainda mais da via do desenvolvimento sustentável; e
– os que intervieram para perpetuar a violência e a guerra na Líbia fixarão os parâmetros sob os quais os líbios poderão decidir sobre o seu próprio destino e, assim, tornarão ainda mais limitado o exíguo espaço no qual os africanos lutam pelo seu direito à autodeterminação.
Como africanos, antevimos um futuro em que seríamos actores relevantes num sistema de relações internacionais justas, confiando que a ONU realmente zelaria pelo seu direito legítimo de actuar como “as fundações da nova ordem mundial”,
O Relatório do ICG citado acima diz:
“O que se pode prever para a Líbia, mas também para todo o norte da África, é cada vez mais terrível, a menos que se encontre meio pelo qual induzir os dois lados envolvidos no conflito armado na Líbia a negociar um acordo que permita uma transição pacífica para um estado pós-Gadaffi, pós-Jamahiriya, e que seja estado considerado legítimo pelo povo líbio. Uma saída política é, de longe, a melhor solução possível, ante a dificílima situação criada pelo impasse militar.”
Quando Richard Perle escreveu em 2003 sobre o “fracasso abjecto da ONU”, reclamava contra a ONU ter-se recusado a curvar-se ante a ditadura da única superpotência mundial, os EUA.
A ONU assumiu aquela posição, porque estava consciente da, e inspirada por, sua obrigação de agir como verdadeira representante de todos os povos do mundo, nos termos de abertura da Carta das Nações Unidas: “Nós, os povos das nações unidas, resolvidos a preservar as gerações vindouras do flagelo das guerras...”
Contudo, e tragicamente, oito anos depois, em 2011, o Conselho de Segurança da ONU abandonou qualquer compromisso com essa determinação.
Açoitado pela humilhante experiência de 2003, quando os EUA demonstraram que o único poder é a violência, o Conselho de Segurança decidiu que mais fácil seria submeter-se à violência dos poderosos, que honrar o dever de respeitar o soberano desejo dos povos – também das nações africanas, é claro. Então divulgou a mensagem de que aceitava nada ser além de instrumento nas mãos dos senhores da violência mais brutal, os mais brutais no sistema das relações internacionais, e que a violência, portanto, passaria a comandar a ordenação dos negócios humanos.
Como africanos, temos de levantar-nos e reafirmar o nosso direito e o nosso dever de determinar o nosso destino, na Líbia e em qualquer outro ponto do nosso continente.
Exigimos que todos os governos, em todos os cantos do mundo, também em África, que almejem alcançar um genuíno respeito dos governados, como nós, ajam imediatamente para reafirmar “a lei pela qual todas as nações possam viver dignamente”.
Exigimos que:
– tenha fim imediatamente a guerra de agressão da NATO contra a Líbia;
– a União Africana seja apoiada para implementar o seu plano para ajudar o povo líbio a alcançar a paz, a democracia, prosperidade partilhada e a reconciliação, numa Líbia unida; e que
– o Conselho de Segurança aja imediatamente para cumprir as suas responsabilidades, como definidas na Carta das Nações Unidas.
Os que desencadearam a tempestade mortal de bombas sobre a Líbia não devem persistir na auto-ilusão de que o aparente silêncio dos milhões de africanos signifique qualquer tipo de aprovação à campanha de morte, destruição e dominação que aquela tempestade parece assegurar.
Estamos confiantes. Reemergiremos vitoriosos, por mais que façam os semeadores de morte dos mais poderosos exércitos do mundo.
Responderemos na prática da vida e como africanos. Em todos os momentos e pelos meios necessários, agiremos resoluta e deliberadamente para defender o direito de os africanos da Líbia decidirem o próprio futuro e, por essa via, defenderemos o direito e o dever de todos os africanos determinarmos nosso destino.
O Mapa do Caminho proposto pela União Africana ainda é o melhor caminho para garantir a paz ao povo da Líbia.
[seguem-se 140 assinaturas de intelectuais, artistas, professores, religiosos, políticos e personalidades africanos]
Fonte: Rádio Mocambique - 27.08.2011
Reflectindo: 1. Faltam os nomes dos subscritores da carta. 2. Não estão os tais intelectuais a agir demasiadamente tarde ou talvez em defesa de ditaduras em África. 3. O problema líbio não sendo o único e último, sou da opinião que os subscritores desta carta agissem desde já contra aqueles que oprimem os seus povos em África.
Quem escreve esta carta? Porque nao escreveu ontem qundo K estava activo? Ha dois possiveis individuos bem distintos.
ResponderEliminarQuem devem ser esses indivíduos, Heyden?
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