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sexta-feira, dezembro 24, 2010

ECOS DO ESTADO GERAL DA NAÇÃO

Por: Gento Roque Cheleca Jr., em Bruxelas

“A vaidade pode toldar um homem, pode muito bem retorcer os seus mais sólidos princípios e, por muito humanista que esse homem se julgue, pô-lo a sonhar com a multidão da desgraça.” Joel Neto, jornalista e escritor português
Ainda nem sequer tinha jantado quando, por volta das vinte horas locais (hora de Lisboa, finalmente em Lisboa), entre a ressaca da vitória do Benfica (é assim em Portugal, quando o Benfica ganha é conversa que nunca mais se acaba, mas quando perde o cenário muda, é como se fosse luto nacional, o país pára!) e a actual crise financeira mundial que coloca Portugal de rastos, recebia de Salicuchepa (amigo dos tempos de milho amarelo e molho de carapau (era uma autêntica totobola e bênção a quem calhasse, no prato, nacos de peixe, lá para as bandas de Moatize, na província de Tete) o informe anual do Chefe do Estado apresentado esta segunda-feira à Nação.

Digeri o informe em minutos (ignorando apenas as vénias cujo propósito, suponho, era de aumentar páginas ao documento) e cheguei à conclusão de que, do que tinha lido, nada de novo trouxe ao país que me obrigasse a palpitar a mão ao peito de alegria, tal como fazem os “madalas” (anciões) da minha terra quando são presenteados com uma garrafa de aguardente da “primeira categoria”. Nada disso aconteceu. Às vezes, muito esporadicamente, também sou consumido por algum contágio de vaidade, desde que haja “sintomas” do progresso. Sobre o informe anual do PR já lá iremos, antes um detalhe que vale a pena compartilhar com o amigo leitor.

Na mensagem recebida, o meu amigo Salicuchepa dizia o seguinte: “‘chamuale’, o discurso do PR, ao contrário do que tem sido hábito, foi breve e cauteloso, é claro, com o mesmo ritual de sempre, sem direito a perguntas dos senhores deputados.

Então, pergunto eu, presta-se contas a quem? Aos deputados ou ao povo? Se for ao povo, que o informe fosse lido na presidência da República e não na Assembleia da República. Outra questão, ‘chamuale’ tem a ver com a cerimónia, tudo na mesma, apenas uma excepção: os deputados do MDM justificaram a razão de ser os governantes do amanhã; os da Frelimo batiam palmas e traziam do pulmão a brutal força de quebrar as paredes da Casa Magna com hossanas ao chefe do Estado e este abanava a cabeça de satisfação, enquanto a Renamo batia com as portas, seguindo os velhos caminhos da perdição: abandonar a Assembleia que também é sua por direito. Naquela gente reina o infantilismo crónico, facto que mina a nossa democracia. Em suma, meu caro amigo, a montanha pariu o rato”.

Pessoalmente tenho muitas saudades daquela Renamo democrática que estava prestes a nascer mas que morreu no parto prematuro em 1992.

Numa das passagens do informe, o PR faz alusão ao seguinte facto: “O maior acontecimento do ano foi, sem dúvidas, a festa nacional pelos trinta e cinco anos da nossa Independência Nacional. Este foi um momento de exaltação da nossa auto-estima e do orgulho de ser moçambicano bem como de fazer um balanço das nossas realizações e de reiterarmos o compromisso de continuarmos a fazer mais e melhor por este Povo muito especial, o maravilhoso Povo Moçambicano.”

Este pronunciamento entra em contradição com a realidade, infelizmente, nua e crua, dos acontecimentos registados no solo pátrio ao longo da actual legislatura. Esquecer as manifestações de 1 e 3 de Setembro (como acontecimentos do ano) é pretender sonegar a História. Bem sabe o povo que “a hora exacta duma felicidade não se fixa. Só as desgraças são memoráveis ao detalhe, com horas e datas”. Pois bem, o povo não se esquece das hecatombes sobretudo quando é ele (povo) vítima dessas tragédias, porque ninguém esquece o tempo que passou, pessoas inocentes que nada tinham a ver com aquelas manifestações foram mortas pela polícia e o então ministro do Interior, ao invés de ser demitido e julgado, foi transferido para outro ministério, como quem dissesse “bom trabalho, camarada”.

A auto-estima de um povo não reside nas comemorações, mas sim no materializar das premissas com que se levou o país e o povo à liberdade. O orgulho de ser Moçambicano não se comemora, não é medido em função de festas ou datas natalícias, o orgulho de ser Moçambicano sente-se. O sentimento que o povo tem em relação ao Governo é de cansaço, de saturação, de tristeza. Se alguma vez houve momentos de exaltação do povo foi quando o Governo lhe tirou o pão e aumentou o custo de vida. Já dizia um velho amigo poeta que as abundâncias (refeições) do passado não fazem calar as crianças esfomeadas no presente.”

De facto a montanha pariu o rato.

Quem esperava ouvir do PR os contornos das revelações bombásticas dos “bastidores americano” sobre Moçambique e que foram publicamente divulgadas, este mês, pela WikiLeaks (esta ‘vuvuzela intraquilizadora’) enganou-se por completo. O PR não disse uma única palavra. Não disse e nem mandou dizer, por via de um comunicado da presidência da República. De facto, o PR não está obrigado a desmentir ou em aceitar absolutamente nada. Cabe sobretudo a Justiça Moçambicana investigar ou mandar investigar. Enquanto isso não acontece, reina muita suspeição e não só as especulações não param de pulular de boca em boca, afora as consultas aos “macangueiros”, de resto um excelente cabaz de Natal para a “equipa de curandeiros” da AMETRAMO.

O PR não explicou, por exemplo, a quantas anda as relações entre Moçambique e o Malawi depois do “vendaval diplomático” em torno da construção de um porto fluvial no rio Chire (um dos tributários do grande Zambeze). Este assunto, parecendo que não, é um abcesso maligno cujo tumor ainda não foi devidamente extraído. Este assunto deveria ter merecido a atenção do PR para acalmar os rasgos nos investimentos entre os dois países que, “unidos”, seria um caso de sucesso económico gigantesco para ambos os Estados.

O PR também não mencionou uma só estratégica do Governo para adiar a morte lenta e certa da ilha de Moçambique. A questão da ilha de Moçambique preocupa-me. Não pode o PR permitir que nenhuma erosão, natural ou mental (corrupção, negligência, incompetência, etc) sejam mais fortes que o Estado. É pena que no nosso país só se intervêm na salvaguarda dos monumentos históricos e da Humanidade em função de dois critérios: o primeiro tem a ver com à inclinação do voto (se este recair a favor da Oposição, azar dos azares, anuncia-se a morte dos projectos ali iniciados) e, por outro lado, quando o património em causa estiver directamente ligado à causa da guerra de libertação nacional, daí que a intenção do partido Frelimo hoje é de comprar esses patrimónios como se fossem seus. “ É nosso,” dizem.

O informe não abordou a questão do preço do cimento e de chapas-de-zinco. É uma vergonha que um país como o nosso, com meia dúzia de fábricas de cimento e de chapas de zinco, o preço desses produtos continuam a subir.

Afinal a quem beneficiam efectivamente essas fábricas que o PR inaugura? Hoje em dia construir uma casa em Moçambique (não estou a falar de “cubículos”) é de poucos. Também não explicou, por exemplo, como é que Cahora-Bassa sendo nossa, o preço da energia não pára de subir, pior, a energia não chega para todos.

E já nos avisaram, “Cahora Bassa só será nossa (digo, do povo) nos próximos anos”. Agora percebemos porque. A culpa é da WikiLeaks, esta maldita ‘vuvuzela intranquilizadora’.

A fome continua a imperar, mas no seu informe o Chefe do Estado, Armando

Guebuza disse o contrário. Há-de ser dos meus óculos, pobres óculos, que só vêm seco em capim verde. O agora Vale do Zambeze (antigo “GPZ”) criado pelo Governo em 2005 para acabar com as fomes no país, não passa de um parto prematuro que, a avaliar pelos outros partos, morrerá na incubadora. É inútil discutir agora de quem é a culpa. É do sistema, pronto, que promove a incompetência e os incompetentes.

Não podemos dizer que o informe do PR não disse absolutamente “nada” (para além da cegueira, surdez, também estaria a ser injusto).“O bom caminho” é e será sempre relativo. Para mim, “ o bom caminho” seria (resumindo) a transformação dos discursos dourados (merecedores de prémio Nobel de Literatura) em ferramentas de trabalho para acabar com as fomes no país. Isso sim é que seria de louvar. Há que trabalhar mais a sério e com responsabilidades apuradas, como dizia o velho poeta moçambicano: “Nenhum castelo foi erguido apenas por vontade, por [discursos], porque simples vontades não são nem almoçáveis nem jantáveis ou matabicháveis.”

gentoroquechaleca@gmail.com

PS1: Gostaria de agradecer a todos os que me tem escrito para este endereço. Não sou mais do que um moçambicano na diáspora que procura, através deste espaço que se vai chamar de ‘Vuvuzela’ (se o editor do WAMPHULA FAX assim o entender), “maticar” (colocar, colar, ornamentar, etc.) algumas ideias sobre o nosso maravilhoso país. Já dizia o meu amigo escritor Alberto Viegas (de quem tenho muitas saudades, carambas!) “o ter a língua pequena não impede ninguém de se lamber.”

PS2: Finalmente desejo a TODOS os leitores do WAMPHULA FAX e aos meus compatriotas, em Moçambique e extra – muros, um NATAL FELIZ e que o ano de 2011 seja o ano de RECAUCHUTAR OS PNEUS (entenda-se as forças gastas) em 2010. ‘Kochikuro’ (Obrigado).

WAMPHULA FAX – 22.12.2010

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