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segunda-feira, abril 19, 2010

O povo não é propriedade de ninguém

Por João Baptista André Castande

1. Na edição de 2-4-2010 deste semanário, o compatriota Machado da Graça levantou uma questão que na minha óptica é de suma importância para a sociedade moçambicana. A questão em alusão está relacionada com as chamadas três gerações em que pretende-se dividir o povo moçambicano, segundo se alcança do discurso político oficial hoje bastante recorrente.

2. Acho que a questão merece profunda reflexão de todos os moçambicanos cônscios, tendo em atenção as suas repercussões sociais futuras bem previsíveis.

3. Segundo tal discurso político oficial, o povo moçambicano é constituído por três gerações, a saber: 1) Geração vinte e cinco de Setembro, 2) Geração oito de Março e 3) Geração da Viragem. Na sua abordagem do dia 2-4-2010, o compatriota Machado da Graça teceu várias e valorosas considerações sobre esta matéria, mas nem por isso isentas de rebate.

4. Aliás, dizer que foram várias e valorosas as contribuições tecidas por Machado da Graça, não significa a minha concordância com tudo o que este escreveu sobre o assunto em análise. É assim que um outro compatriota desta feita de nome Júlio Muthisse - pág. 7 da edição de 9-4-2010 - já rebateu algumas dessas considerações, razão pela qual no presente artigo prefiro destacar apenas a parte em que aquele considera que “(...) esta divisão, actual e simplista, em 3 gerações é, em termos teóricos, uma aberração sem ponta por onde se lhe pegue”.

5. Respeito esta opinião do compatriota Machado da Graça, pela indesmentível coragem e sobretudo honestidade que ela encerra, mas peço permissão para dizer o seguinte:

a) Atendendo e considerando que o número 1 do artigo 74 da Constituição da República de Moçambique (CRM) consagra que os partidos políticos “concorrem para a formação e manifestação da vontade popular e são instrumento fundamental para a participação democrática dos cidadãos na governação do país”, entendo que ao Presidente da República, alto dirigente político que é, assiste o direito de abordar o assunto tal como de algum tempo à esta parte o vem fazendo;

b) Ademais, nada tenho contra todos aqueles que, seguindo as tradições seculares da luta heróica e da resistência dos nossos antepassados contra o jugo colonial, formaram e juntaram-se à Frente de Libertação da Pátria moçambicana, sendo por isso que a consagração desses cidadãos no artigo 15 da CRM foi sem dúvidas ditada pelo consenso nacional;

c) No que diz respeito às ditas gerações 8 de Março e da Viragem, julgo que é assunto que compete a todos os moçambicanos, num ambiente de cordialidade e respeito pelas opiniões contrárias, analisá-lo com toda a profundidade e objectividade necessárias, buscando consenso nacional sobre a matéria, no âmbito da participação democrática dos cidadãos prevista nas partes finais do artigo 73 e do já acima citado número 1 do artigo 74, ambos da CRM;

d) Por conseguinte, é aos cidadãos nacionais, ou seja ao povo moçambicano, que compete decidir se aceita ou não a sua divisão na forma que agora se apregoa.

6. Na verdade, não está ao livre arbítrio de quem quer que seja dividir o povo, na medida em que este não é propriedade de ninguém.
Por isso, causa-me tamanha admiração sempre que oiço um concidadão a empregar no seu discurso político o advérbio possessivo “o nosso povo”. Mas afinal de contas, o povo moçambicano é propriedade de quem? Não tenho a menor dúvida que quem hoje diz “o nosso povo” amanhã pode muito bem dizer “o meu povo”.

7. Neste contexto, e com todo o respeito devido à opinião contrária, sugiro que paremos desde já com este tipo de linguagem, que só demonstra estupenda ignorância de quem a usa!

8. Além disso, há que termos presente que todos e cada um de nós, independentemente da sua época, fez a sua parte da forma que esteve ao seu alcance e com todos os sacrifícios exigidos em cada momento, pelo que tentar enaltecer hoje apenas os feitos, quais feitos?- das ditas Gerações 8 de Março e da Viragem é, a meu ver, injustiça grave.

9. Não pode haver geração nenhuma que não tenha sido gerada, alimentada, educada e feita crescer por uma outra anterior. Nesta ordem de ideias, é no mínimo ridículo que alguém goste loucamente da fruta relegando para o plano secundário a árvore que a produziu!

10. Julgo que ninguém ficaria preocupado se todos os concidadãos que se revêm nas referidas duas gerações constituissem as respectivas associações cívicas, ao invés de exigir algo do Estado como já começaram a fazer.

11. Então, falemos do povo moçambicano e evitemos dividí-lo em grupinhos sem nenhuma base de sustentação credível e de consenso nacional.

12. Admiravelmente, e sem o necessário consenso nacional, assistimos à institucionalização da palavra de ordem que salvo o erro constitui surpresa para a maioria dos cidadãos: Três Gerações, uma Nação, um Povo. Só resta-nos esperar que brevemente estas duas gerações (8 de Março e da Viragem) não reivindiquem a sua consagração no texto da Lei Mãe!

13. “Conquistada a independência, construídos os pilares pelos quais assenta a máquina administrativa do Estado a todos os níveis, continuamos a assistir muitos moçambicanos que vivem no limiar da pobreza, com carências a todos os níveis. O trabalho dos moçambicanos de hoje na luta contra este flagelo, pode fazer emergir no futuro o que orgulhosamente chamaremos de Geração da Viragem”, assim escreve doutamente o compatriota Júlio Muthisse.

14. Manifesto desde já o meu sincero respeito por esta sua opinião.Todavia, permita-me fazer os seguintes três reparos:

a) É repugnante verificar que contra a afirmação de Júlio Mutisse segundo a qual a Geração da Viragem é algo a emergir no futuro, para outros moçambicanos tal geração já existe, tendo sido ela que no dia 7-4-2010, no Distrito de Nangade, discursou e recebeu das mãos da Geração 8 de Março a chama dos 35 anos da independência nacional;
b) Caro compatriota Júlio Mutisse, é vergonhoso defender causas absolutamente desconhecidas!
c) Quanto ao combate à pobreza no conceito hodierno, é imperioso que sejamos honestos para connosco mesmos: Não haverá jamais um combate sério e eficaz à pobreza num País em que ao mesmo tempo promove-se o obscurantismo, a excessiva acumulação de cargos pelas mesmas pessoas (mesmo contra a proibição expressa da lei), a corrupção, a impunidade, salários mínimos injustos e de miséria, a ganância pela riqueza ilícita, ausência da justiça, o fanatismo político-partidário em detrimento do patriotismo genuíno!
d) Por outro lado, temos que ter a coragem de dizer que o combate à pobreza, no actual conceito, não é iniciativa de Moçambique mas sim dos ricos na sua globalidade, devido ao longo processo de empobrecimento a que submeteram os povos dos respectivos países. O combate à pobreza assim concebido não é obra altruísta a favor dos empobrecidos, mas sim, porque os enriquecidos estão assolados por um incontível receio de se verem afogados nas ondas da fúria popular.

15. Finalmente, escutemos o que diz Leonardo Boff, in Teologia do Cativeiro e da Libertação, pág. 226: “A pobreza é empobrecimento; a riqueza é enriquecimento. Há uma riqueza que se constitui fazendo outros pobres, debulhando-os, tirando-lhes a dignidade, roubando-lhes os bens e com isso privando-os das condições materiais para serem dignamente homens. A pobreza denuncia a presença de injustiça e a existência de uma riqueza desonesta. Semelhante pobreza que significa empobrecimento é resultado da desmesurada ganância dos ricos. Ela não é nenhum bem, porque se deriva de um mal. Que alguém, numa situação de pobre, pode ainda conservar sua dignidade humana e renunciar a todo espírito de vingança e de possuir gananciosamente, é fruto não da pobreza, mas da inesgotável grandeza humana que se torna capaz de superar tudo e ser maior do que cada situação. Não é por causa da pobreza que ele conserva sua humanidade mas apesar dela. Não é por causa desta dignidade humana vivida e conservada apesar do mal da pobreza que vamos ideologicamente justificar a pobreza. Antes pelo contrário: por causa da dignidade inviolável de cada pessoa devemos combater a pobreza, não para contrapó-la à riqueza e propor a riqueza como ideal, mas para buscar relações mais justas entre os homens que impeçam a emergência de ricos e pobres.”, sendo o bold da minha responsabilidade.

16. Tenho dito.

Fonte: SAVANA - 16.04.2010

Reflectindo: chegou a altura de eu procurar todos os textos sobre gerações e publicá-los. Textos de Egídio Vaz, Rossana Fernando, João Mosca, Machado da Graça e Júlio Mutisse serão publicados neste espaço.


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