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quinta-feira, fevereiro 04, 2010

Por uma leitura sócio‐histórica da etnicidade em Moçambique (3)

Por Sérgio Chichava

continuacão

I‐“A Frelimo é tribalista”!
Para compreender os contornos da questão identitária em Moçambique, partir‐se‐á, antes de mais, do período da formação da Frelimo e da guerra colonial (1962‐1974). Em seguida, ir‐se‐á analisá‐la no contexto do partido único de orientação “marxista‐leninista” e, enfim, na actual era pluralista (1990‐...)

O chigondo8 só serve de “carne para canhão”

Antes de mais, é preciso recordar que a Frente de Libertação de Moçambique (Frelimo), constituída em 1962 em Dar‐es‐Salam, na Tanzânia, é, oficialmente, resultado da fusão de três movimentos: a União Nacional Democrática de Moçambique (UDENAMO); a União Nacional Africana de Moçambique (MANU) e União Nacional para Moçambique Independente (UNAMI). A UDENAMO tinha como seus fundadores emigrantes moçambicanos na antiga Rodésia do Sul, cuja maioria era originária do antigo distrito de Manica e Sofala (caso de Uria Simango), à excepção do seu presidente Adelino Gwambe, nascido em Inhambane, sul de Moçambique, mas que, antes de emigrar para a Rodésia do Sul, tinha trabalhado na Beira, antiga capital do distrito de Manica e Sofala. A MANU, cujos lideram eram Mateus Mole e Malinga Milinga, era um movimento essencialmente formado por emigrantes macondes no Quénia e na Tanzânia. A UNAMI, cujo líder era Baltazar da Costa Chagonga, originário do antigo distrito de Tete, tinha sido formada em 1961, essencialmente, por nativos do mesmo distrito. Eduardo Mondlane, um changane, originário de Chibuto na província de Gaza, sul de Moçambique, foi eleito presidente da Frelimo e Uria Simango, vice‐presidente.
Com base no discurso oficial acima apresentado, é‐nos mais fácil compreender o que vem a seguir, nomeadamente, porque razão a Frelimo ― cuja direcção era, maioritariamente, composta por indivíduos do sul de Moçambique ― foi sempre acusada de discriminar os moçambicanos do norte do rio Save9. Alguns episódios que iremos relatar a seguir são reveladores das tensões étnico‐tribais no seio deste movimento durante este período.
Pouco tempo após a sua formação, alguns Macondes ― que constituíam o grosso dos emigrantes moçambicanos na Tanzânia ― começaram a queixar‐se de que não havia nenhum maconde nos lugares direcção da Frelimo (Mateus Mole, antigo líder da MANU, que na Frelimo ocupava o posto de tesoureiro, tinha sido expulso por divergências), que não recebiam bolsas de estudo, que só serviam a Frelimo para pagar quotas e nada mais, que este movimento era apenas para gente do Sul10.
Em 1968, estudantes do Instituto Nacional Moçambicano em Dar es‐Salaam, na sua larga maioria do norte do Save, acusaram a direcção da Frelimo de tribalismo e de regionalismo, e tomaram posição contra certos professores brancos na Instituição (aparentemente, apenas contra os brancos de origem portuguesa)11. Os estudantes apontavam como exemplos daquilo que consideravam como falta de igualdade na Frelimo o facto de que, para além de a maioria dos dirigentes serem do sul de Moçambique, quando um estudante do norte reprovava nos exames finais, era enviado para os campos de treino, enquanto um estudante do sul em idêntica situação não o era12. Esta situação levou a eclosão de desacatos que levaram não só ao fecho temporário do Instituto, como também à morte de Mateus Sansão Mutemba, nascido no sul de Moçambique, na altura membro do Comité Central da Frelimo.
A crise iria atingir o seu auge após a morte do primeiro presidente da Frelimo, Eduardo Mondlane, em Fevereiro em 1969, isto porque Uria Simango, então vice‐presidente, devia substituí‐lo, mas foi descartado, e um triunvirato composto por Samora Machel, Marcelino dos Santos, e do próprio Simango, foi constituído para dirigir o movimento. Isto acentuou as divergências no seio Frelimo, sobretudo entre os membros do triunvirato, pois Simango não estava de acordo com esta nova situação. Assim, em Novembro de 1969, Uria Simango publicou um documento intitulado Gloomy Situation in Frelimo (Triste situação na Frelimo), no qual afirmava que o tribalismo dos dirigentes sulistas da Frelimo era uma dos principais responsáveis pela crise pela qual o movimento estava a passar:
“Desde 1966, tem‐se manifestado uma tendência no grupo, infelizmente composto por gentes do sul, que incluíam o falecido presidente da Frelimo, no sentido de tomarem decisões por eles próprios e impô‐las aos outros por meio das suas manobras. O falecido presidente da Frelimo foi criticado por certas pessoas do Sul pelas consequências que este método poderia trazer na causa final. Não se fez caso deste aviso. Este grupo continua com este método. Realizaram‐se vários encontros na casa de Janet [esposa de Eduardo Mondlane] tendo tomado parte neles só membros da tribo. Temos de compreender que em Moçambique não existe nenhuma tribo superior às outras...Todas as tribos devem receber um tratamento idêntico. Devem ter os seus direitos actualmente, durante a luta, e depois, na independência”13.
Oficialmente, foi na sequência deste texto que Uria Simango foi expulso da Frelimo.
Também, foi se queixando de discriminação que alguns antigos membros da Frelimo e do Coremo ― Amós Sumane, Matias Tenda, Mazunzo Bobo ― criaram um movimento separatista em 1968, a União Nacional da Rombézia (UNAR). Segundo os dirigentes deste movimento ― que pretendia a independência da região que vai do Rovuma até ao Zambeze (Cabo Delgado, Niassa, Nampula, Tete e Zambézia), ― os dirigentes sulistas da Frelimo, movidos meramente por intuitos “tribais”, para além de usar os nortenhos como “carne para canhão” ― ficando eles nos gabinetes ou indo estudar no estrangeiro ―, moviam a guerra apenas no Norte de Moçambique, castigando duramente as populações desta região14. De acordo com os dirigentes da UNAR, o tribalismo da Frelimo, ilustrado pelo seu presidente, Eduardo Mondlane, que se tinha rodeado apenas por pessoas do Sul, tinha criado discórdia e divisões no seio dos moçambicanos. Mas, um tanto paradoxalmente, a UNAR propunha eliminar o tribalismo e o regionalismo da Frelimo, considerados como obstáculos à unidade nacional, defendendo...a divisão de Moçambique. Como explicar isso?
De certa maneira, a UNAR representa um dos exemplos clássicos da negação do Moçambique‐tal‐como‐foi‐“fabricado” pelos Portugueses, isto é, de um espaço não necessariamente vivido por todos os moçambicanos. O estudo da UNAR põe a lume as dificuldades que há de se falar de “uma nação moçambicana”. A confortar esta posição, está o facto de que, ainda durante a guerra colonial, muitos moçambicanos do Norte e Centro do país abandonaram a Frelimo, acusando este movimento de ser “tribalista”.
Mas se nos atermos apenas à tese “tribalista” para explicar estas deserções ou o desconforto de muitos moçambicanos do Norte do Save no seio da Frelimo, ficaríamos numa análise superficial da questão. Em primeiro lugar, é preciso dizer que estas deserções se explicam mais pela diferença de trajectórias socioculturais do que por meras questões “tribais”. Os moçambicanos idos das diferentes regiões não se conheciam, e pouco fora o contacto existente entre eles durante a colonização. Moçambique como nação não existia, e provavelmente ainda não existe, porque não é necessariamente vivido como tal por todos os moçambicanos15.
A maneira como foi organizada a economia de Moçambique nos finais do século XIX, com a emergência do capitalismo colonial, é outro factor de explicação. Nessa altura, a economia de Moçambique foi transformada numa “economia de serviços”, baseada na exploração dos portos e caminhos-de-ferro que serviam essencialmente os países vizinhos, nomeadamente as antigas Rodésias (do Norte e do Sul) e a África do Sul. O antigo distrito de Manica e Sofala (correspondente as actuais províncias com o mesmo nome), foi ligado, no centro, às Rodésias e a Lourenço Marques (actual Maputo), e, no extremo sul, à África do Sul. Nenhuma ligação ferroviária Norte‐Sul foi construída, como teria sido importante numa óptica de estruturação do espaço moçambicano. A economia de Moçambique estava então dependente dos seus vizinhos exportadores. Este período corresponde, também, a emergência de desequilíbrios regionais entre as três regiões do país (norte, Centro e Sul). Lourenço Marques, no extremo sul, que gozava da grande ascensão económica da África do Sul, tornou-se a nova capital e o novo “coração” económico de Moçambique, em substituição da Ilha de Moçambique, no norte. Se Beira aproveitou um pouco da sua ligação com as Rodésias, o mesmo não se pode dizer doutras regiões do país, onde o Estado português, na impossibilidade de rentabilizá-las, teve que cedê-las a companhias concessionárias dotadas na sua maioria de capitais estrangeiros, que também não trouxeram nenhum progresso. Podemos, pois, datar dessa época (finais do século XIX), a origem dos ressentimentos das elites dessas regiões em relação ao Sul. A hegemonia do Sul sobre as outras regiões vem daí, e exprime as mudanças regionais decorrentes do desenvolvimento económico do Rand e do Transval. De certa maneira, a marginalidade ou a marginalização dessas regiões e das suas respectivas elites vem daí.

Continua!

Nota do Reflectindo: 1) recomendo sempre que leiam todo o artigo  aqui, pois aí vêm as notas do autor. 2) leiam aqui o artigo de Uria Simango sob o títuto "Gloomy Situation in Frelimo".

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