A FACE DO DIÁLOGO
Por Viriato Caetano Dias
“A história da humanidade está marcada pela lei dos mais fortes, pela força dos mais poderosos sobre os mais fracos e, em muitas regiões do mundo, esse domínio arrasta-se até hoje” - Judite de Sousa, jornalista portuguesa.
Começo a presente reflexão com uma advertência pontual: procurarei não “lamber as feridas do passado”, tão-pouco historizar os factos. Em tempo de crise (como este em que vivemos) não se pode dar ao luxo de extenuar a mente dos leitores com factos que julgo serem de domínio de todos. Nem de criar contendas, porque paz completa entre os Homens!
Vamos então – em detrimento destas “ladainhas” – ao que mais interessa!
Reza a História que entre o século XV até ao início do século XVI, Portugal fez-se ao mar à procura de novas rotas de comércio e parceiros para sustentar o crescente capitalismo burguês europeu, tornando-se assim no primeiro país do continente europeu a “descobrir” o Caminho Marítimo para a Índia! A todo este processo chamam “descobrimentos.”
E para imortalizar esta proeza, o Governo português tem estado a promover de lésa-lés, no país e no estrangeiro, a grande aventura portuguesa no mundo. E julgo bem que o faça.
Porém, como poderão ter se apercebido, aspei o termo “descobrir” por não concordar com ele, pois, entendo por “descobrimento” uma outra coisa, e não aquela que os manuais de História de Portugal e da Europa em geral concebem. Para essas fontes, “descobrimento” significa “desenterrar” aquilo que antes estava escondido, ou ainda, acto de descobrir terras ignoradas.
Ora, ter de (trata-se de uma imposição) aceitar este conceito de “descobrimento” tal como está, seria o mesmo que dizer que fora dos europeus, nós, os restantes povos do globo, somos produtos do “descobrimento” europeu, o que não corresponde a verdade.
Que não fosse a coragem de Vasco da Gama ou de qualquer outro aventureiro, os restantes povos jamais seriam conhecidos ou até mesmo “civilizados”.
Esta afirmação também não corresponde a verdade.
Percebido assim, estes termos valem um insulto crasso à memória desses povos e, quiçá, uma aberração a verdade histórica dos factos. Nada neste mundo, para além do fogo e de outras técnicas, é fruto de descobrimento do Homem. Descobrir é diferente de achar, que significa, em síntese, encontrar. São dois termos/conceitos diferentes. Há que saber separar “alho de bugalho”, a menos que os linguistas da língua portuguesa queiram atribuir-lhe o mesmo significado. Este foi talvez o grande “erro” de Camões, que morreu sem que antes tivesse esclarecido cabalmente o sentido de alguns conceitos, entre os quais o de “descobrimento”. Aqui está mais uma razão para que o grupo de trabalho responsável pelo Acordo Ortográfico comece já a explorar.
Este mundo sempre foi conhecido. As sondas da história provam exactamente isso, que a dita aventura europeia em territórios alheios foi feita em função de informações disponíveis, sólidas ou não, sobre a existência de outros povos e lugares. Pois ninguém navega sobre o nada, ainda que não tivessem certezas absolutas. Sendo assim (é minha opinião) que no lugar de se chamar “descobrimento” passasse a usar “chegada”. A ser assim, estaríamos a colocar a verdade dos factos nos pés da História, o que seria uma recompensa justa e legitima ao passado.
Mas atenção: esta mudança de nome não tira o real valor da aventura portuguesa no mundo. Não se pode falar da História do Mundo sem falar de Portugal.
Os feitos dos portugueses, quer se queira, quer não, mudou a visão do mundo em vários domínios. Basta lembrar que a própria língua portuguesa, nascida de um pequeno povo do litoral europeu e que irradiou sobre os quatro continentes do Mundo, é um bem preciso a ter em conta. A “língua de Camões” (a verdade seja dita) funciona, no nosso país em particular, como um semáforo linguístico. Sem ela, não tenhamos dúvida, as guerras étnicas já teriam causado vítimas mortais.
Ainda sobre a utilização do termo “descobrimento” escrevi, em 2004, uma carta ao meu estimado amigo Prof. José Hermano Saraiva, cujos trechos aqui transcrevo (sem a sua permissão): “Há na sua carta um ponto que me surpreendeu: foi a sua dúvida sobre o descobridor do Caminho Marítimo para a Índia. O que eu afirmei, e todos os historiadores dizem é que o Caminho Marítimo da Europa até à Índia, foi descoberto em 1498 por Vasco da Gama. (sublinhado meu). “Colombo nunca esteve na Índia, nem sequer sabia onde era a Índia. Na sua célebre viagem de 1492, descobriu as Antilhas, ignorando o tamanho do planeta, julgou ter chegado à Índia. Comunicou isso aos Reis católicos que o premiaram, mas quando chegou a notícia que a verdadeira Índia era aquela, a que Vasco da Gama chegara, os Reis católicos mandaram prender Colombo, que regressou a Espanha com ferros nos artelhos.”
De uma análise atenta aos trechos pode-se tirar duas ilações. Primeira, o Prof. Saraiva é cauteloso nos factos. Prefere falar de um caminho marítimo da Europa até à Índia, que foi descoberto por Vasco da Gama em 1498. De facto, até que se prove em contrário, nenhum outro europeu tinha até então, à excepção do refinado, percorrido esta rota. Em história como na vida, quando as coisas ganham consenso, há que “dar a César o que é de César, e a Deus o que é de Deus.” Segunda, o Prof. não usa o termo “descobrimento” em relação a viagem de Da Gama à Índia, mas sim, “chegada”; porém, peca logo a seguir ao usar este mesmo termo “descobrimento” em relação a chegada de Colombo às Antilhas. Ora, as Antilhas sempre existiram e não é produto de Colombo nem de qualquer outro aventureiro.
Talvez em jeito de conclusão tentasse explicar o que seria uma descoberta. Para além do fogo que o Homem descobriu há muito, muito tempo porque (em matéria de antiguidade precisão haver não tem, disse Fernão Lopes), cito: a electricidade, o telefone, a Internet, a vacina contra o sarampo, contra a poliomielite, mas ainda falta por descobrir a vacina contra a corrupção, contra o nepotismo, o comodismo, o HIV/SIDA, a malária, etc. O que o Homem não descobriu: a Terra ou povos alheios, a ida à Lua (alguns dizem que é uma descoberta dos americanos, meu santo Deus!), as pegadas de dinossauros (porque é sabido que estes animais habitaram sobre a terra).
Para isso, recomenda-se, sempre que possível, a utilização do termo achar.
Tudo isto leva-me a concluir que a História do Mundo deve ser reescrita, caso contrário continuaremos a emitir diplomas aos nossos estudantes com realidades que muitas vezes estão ao serviço de quem as escreveu e de quem as promove, em detrimento da realidade dos factos. E deve começar agora! Já!
Zicomo kwambiri (muito obrigado).
CORREIO DA MANHÃ – 02.12.2009
Vou me meter um pouco neste debate.
ResponderEliminarParece que quando a história não está bem narrada, ela recusa-se a descansar em paz. Julgo ser o caso desta expressão “descobrimento”.
A grande questão é utilizarmos um termo cunhado no seculo XV, usando uma mentalidade e um significado do seculo XX ou XXI. Houve uma evolução semântica do termo "descobrimento" e ressalta alguma falta de ética dizer que os africanos ou índios, fomos “descobertos”. Os povos não se podem descobrir uns aos outros! Para já, julgo que eticamente não é oportuno expressar-mo-nos nestes moldes.
Se os homens do seculo XV acharam que “descobriram” povos, nós hoje não somos forçados a usar o mesmo termo, tanto mais que ele hoje tem um sentido diferente do do seculo XV. Ademais, estamos numa altura em que se pretende fomentar um dialogo mais salutar e mais construtivo entre povos, raças, culturas, países, etc.
Não sei porquê alguns segmentos insistem neste debate, defendendo uma expressão que nos ofende. Quando eu visito uma aldeia que desconhecia, eu terei “descoberto” essa aldeia?
Sei que os biólogos quando encontram uma nova espécie de microbios (virus, bacterias), planta ou animais por vezes usam o termo “descobrir”. Não quero debater com biólogos.
Mas é legitimo afirmar que Portugueses descobriram Africanos ou Indios, e ao mesmo tempo afirmar que descobrimos uma vacina contra “X” ou “Y”. O mesmo termo!? A mesma palavra serve para uma vacina (algo que não existia, e passa a existir) e para um povo ou povos (algo que existe(ia))!? Definitivamente não é legitimo.
Em nome da Ética, o meu apelo é que aceitemos que esse termo coloca os ditos povos “descobertos” numa situação similar a de meros objectos, e isso é uma ofensa tomando em conta a mentalidade e os valores actualmente em voga. Se os portugueses do seculo XV não sabiam que haviam povos em África, isso não significa que eles descobriram tais povos. Eles ENCONTRARAM tais povos. O Professor Boaventura de Sousa Santos, por exemplo, defende esta posição.
Torres