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sexta-feira, agosto 21, 2009

D. Matteo Zuppi revela mais pormenores do Acordo de Roma

Quando Raul Domingos foi Pelé

Entrevista conduzida por Mário Martins *

D. Matteo Zuppi é um amigo do nosso jornal e, sempre que pode, passa por cá para nos dar sempre mais uns detalhes sobre o caminho difícil que levou à reconciliação dos moçambicanos em 1992. Desta feita não foi connosco mas ao jornal confessional “Mensageiro” que D. Matteo partilhou mais alguns pormenores inéditos das conversações de Roma. E um dos pormenores é o equívoco de Raul Domingos ser tomado por Pelé quando era suposto de estar secretamente em Roma na companhia de Vicente Ululu
...
Como é que a Comunidade chegou a interessar-se pela situação em Moçambique ou como é que o problema da guerra em Moçambique chegou à Comunidade?
D. Matteo: Foi através da Porta Aberta. Santo Egídio não representa o início da Comunidade. Esta começou em 1968 e em 1973 é que chegámos a Santo Egídio, como lugar confiado à Comunidade. Aí começámos a fazer uma oração, todas as noites, às 20h45, aberta a quem queria entrar. Uma vez, convidámos um bispo de Moçambique, o arcebispo da Beira, a participar na oração. E começou uma amizade entre nós e ele. No início, ele falou-nos do problema existente entre o Estado e a Igreja. O Estado, no início, tinha uma imagem muito negativa da Igreja, nacionalizou todos os templos; olhava a Igreja como colaboradora do antigo regime. Mas boa parte da Igreja tinha estado do lado da independência, embora grande parte dos bispos fossem africanos, porque a Santa Sé mudou muitos deles em 1974 e 75.


Como actuaram?...

- Nós colocámos o bispo D. Jaime em contacto com o Partido Comunista Italiano. Nós não conhecíamos ninguém, mas chamámos alguns apoiantes, um pequeno grupo, e depois chegámos até ao próprio Berlinguer, o secretário-geral. O PCI era um dos mais importantes da Europa, nós pensamos que era mesmo um dos mais importantes do mundo. Na verdade, o PCI chegou a ter 45% dos votos em Itália, um pouco antes de ter assinado o compromisso histórico com a democracia cristã. Berlinguer era um homem de cultura, um homem com sensibilidade. Ele mostrou-se sensibilizado com o nosso contacto e mandou o irmão a Moçambique, porque havia uma ligação muito forte entre o Partido Comunista Italiano e a Frelimo. Muitos membros da Frelimo tinham construído laços muito fortes com o PCI durante os anos da luta de libertação. Então, o irmão de Berlinguer foi a
Moçambique dizer-lhes: Olha, vocês têm de se reunir com a Igreja para encontrar solução para alguns problemas.
Depois, ele pediu-nos ajuda, porque Moçambique vivia um problema muito grave, em 1984, com a seca. E nós começámos a enviar ajuda. Mas o problema era este: qual o sentido desta ajuda, se o país continuava em guerra? Os bispos de Moçambique fizeram algumas cartas pastorais muito importantes, nas quais defenderam a necessidade de diálogo. Depois, foram falar com o presidente de Moçambique, Joaquim Chissano, e ofereceram-se como mediadores para o diálogo com a Renamo. Nós queremos contactar a Renamo..., disseram-lhe.
Chissano respondeu-lhes: Isso é convosco. Eu não vos peço para irem falar com a Renamo, mas se vocês querem ir falar, é um problema vosso... Isto aconteceu no final de 1987, princípios de 1988.


Ainda existia o Muro de Berlim...

- Sim. Mas a situação em Moçambique era diferente da de Angola. Angola era como que um laboratório da União Soviética, até mais do que um laboratório... Em Moçambique, a Frelimo tinha ligações com Moscovo, mas também tinha boas relações com os Estados Unidos da América.
Por causa da proximidade da África do Sul?
- Porque era pragmática! Isso já era visível no tempo de Samora Machel. Recorde-se o Acordo de Incomáti, que Samora Machel assinou com o regime do apartheid sul-africano e que fez acabar com as actividades do ANC em Moçambique. Moçambique mantinha boas relações com os Estados Unidos e com muitos países europeus. A Frelimo era pragmática.
Os bispos, então...
- Até 1988 não era possível falar com a Renamo, porque era falar com os terroristas, com os bandidos armados. A partir do momento em que D. Jaime e os outros bispos moçambicanos receberam esta luz verde do presidente Chissano, D. Jaime chamou-nos imediatamente e disse: Nós temos esta luz verde, ajudai-nos a encontrar a Renamo!. E nós começámos à procura do caminho da Renamo.
Como é que fizeram? Foram a Moçambique?
- Não. A estratégia foi procurar elementos da Renamo no exterior e verificar se tinham um contacto directo com a Renamo. A Frelimo era uma estrutura muito interna, o Dhlakama estava no terreno, nunca ninguém o tinha visto. Então, apareciam pessoas que nos diziam Eu sou da Renamo, mas depois verificava-se que não tinham qualquer ligação directa à Renamo que estava a combater em Moçambique. E fomos testando contactos. Uma vez, encontrámos um moçambicano que vivia na Alemanha e que julgámos ter uma boa ligação à Renamo que estava no interior de Moçambique. E dissemos-lhe: Muito bem, tu tens de nos dar um sinal concreto. E pedimos-lhe a libertação de uma religiosa portuguesa que tinha sido raptada.


A Renamo raptava religiosas?

- Sim, mas mais por medo que depois dos ataques chegassem as forças da Frelimo e matassem as populações, para acusar a Renamo. Esta foi, pelo menos, a justificação que depois nos deram. Nós temos de as levar connosco, caso contrário chega o Exército regular e mata, disseram-nos. E muitas vezes isso terá acontecido, porque o Governo pensava haver uma colaboração entre os camponeses e a Renamo. Então, a Renamo atacava e levava consigo a aldeia inteira, para evitar represálias sobre os habitantes.
E esse sinal foi dado?
- Sim, muito rapidamente. Levaram a religiosa portuguesa até à fronteira de Moçambique com o Malawi e nós mandámos lá um missionário para a receber. Correu tudo bem e, então, nós decidimos que aquele era o canal bom, o canal apropriado para contactar directamente a Renamo no terreno.

Estava aberto o caminho para as negociações...
- Não, porque de início a Frelimo não queria negociar. A Frelimo queria que, em primeiro lugar, a Renamo entregasse as armas. Depois, propunham uma amnistia, dizendo: Vocês são culpados, mas nós perdoamos e vocês podem regressar a casa. Mas a Renamo respondia: Nós pegámos em armas porque queremos fazer isto, isto e isto. Portanto, se vocês não fazem essas mudanças, nós continuaremos a lutar. A amnistia, para a Renamo, era um insulto, porque não se sentia culpada de nada. A guerra tinha começado não porque a Renamo fosse um bando de ladrões, mas porque do outro lado estava um poder marxista que defendia soluções políticas com as quais a Renamo não concordava. E por isso dizia Se vocês não mudam, nós continuamos a lutar. Mas a Frelimo não queria negociar. O Governo aceitava que os bispos falassem com a Renamo, mas para convencer esta a entregar as armas.

Uma situação difícil...
- Sim. Em Maio de 1988, combinámos uma viagem de D. Jaime à Gorongoza, porque o bispo era muito aceite pela Renamo. Antes, tínhamos promovido um encontro entre D. Jaime e o contacto da Renamo que vivia na Alemanha; depois, organizámos a viagem de D. Jaime à Gorongoza, com a ajuda dos sul-africanos, o que prova que estes ainda tinham laços com a Renamo. Mas o bispo não sabia que o encontro se iria realizar dentro de Moçambique, pensava que iria ser na Zâmbia. Os sul-africanos fizeram isto, segundo disseram, para não assustar D. Jaime. A viagem foi feita toda durante a noite; partiram de noite e regressaram ainda durante a noite, de avião.
Foi a oportunidade de D. Jaime falar, durante duas ou três horas, com Dhlakama. Este encontro foi fundamental, porque Dhlakama - que já confiava em D. Jaime e começava a ter confiança connosco – disse: Este é o verdadeiro caminho para a paz.
Estava cansado da guerra...
- Não. Ele disse: Se nós temos de falar, é com estes que devemos falar. Por um lado, D. Jaime é moçambicano e sempre falou de diálogo, mesmo fazendo zangar o Governo moçambicano. Depois, porque a Comunidade de Santo Egídio não tem nenhum interesse em Moçambique. E ainda havia a circunstância de D. Jaime ser da mesma tribo de Dhlakama; foi uma razão secundária, mas importante, porque falavam a mesma língua.
Tinha sido aberto o caminho do diálogo.
- Depois começaram contactos no Quénia, com a mediação de responsáveis quenianos. Mas estes contactos fracassaram, na minha opinião porque eram demasiado formais.
E vocês?...

- Nós não fizemos mais nada, nessa altura, porque não considerávamos uma parte indispensável do processo de diálogo. Se as coisas estavam a andar, perfeito! Mas a verdade é que esses encontros no Quénia, em 1989, entre o Governo moçambicano e a Renamo, acabaram por fracassar. Aliás, as duas delegações nunca se encontraram.

Nunca se encontraram?!

- Foi assim... O Quénia convidou as duas delegações. Quis alojá-las no mesmo hotel, mas logo que isso se soube, os elementos da Renamo fugiram. Nós queremos negociar, não queremos ‘coisinhas’ assim de estar no mesmo hotel, disseram. Então, o Governo de Moçambique enviou uma lista de exigências. Para negociar, vocês têm de estar de acordo com isto: um, dois, três, quatro, cinco!. E a Renamo disse: Muito bem. Mas para negociarmos vocês têm de estar de acordo com isto... E enviaram 17 pontos. E o diálogo acabou, sem nunca as duas delegações se encontrarem.

Quem estava por detrás da Renamo?
- Eu penso que, na realidade, não havia nada, nem ninguém. Aliás, como penso suceder em muitas das guerras em África. No início, a Rodésia e a África do Sul apoiaram a reacção de alguns moçambicanos contra a Frelimo. Claro que a Rodésia branca, de Ian Smith, não queria ter ao lado um país marxista. E o mesmo sucedeu com a África do Sul; se havia um país que apoiava o ANC, então eles apoiavam quem se opunha ao Governo de Moçambique. Mas nunca a Rodésia nem a África do Sul foram os ‘padrinhos’ da Renamo. Eu penso que a Renamo foi sempre autónoma. Era uma reacção de moçambicanos, que contava com um certo apoio dos chefes tradicionais, que tinham sido humilhados pelas estruturas da Frelimo. E, depois, havia os erros da Frelimo, a corrupção, as nacionalizações.
Havia portugueses por detrás da Renamo?

- É difícil dizer. Haveria, certamente, alguns portugueses que olhavam bem a Renamo, os portugueses são saudosistas... E havia aqueles que tinham visto os seus bens nacionalizados. Mas eu nunca vi ninguém a dizer a Dhlakama você tem de fazer isto, fazer aquilo. Não, era mesmo o Dhlakama que decidia.

As negociações fracassaram e...

- Em 1989, nós decidimos: É preciso tomar uma iniciativa. E começámos a dizer a Dhlakama que teria de se deslocar a Roma. Pedimos autorização ao Governo italiano e este disse que sim, mas acrescentando que a deslocação teria de ser secreta. De qualquer modo, informámos o Governo moçambicano de que iríamos tomar uma atitude deste género. Dhlakama foi a Roma, secretamente, encontrou-se com alguém do Governo italiano e, então, disse que as negociações teriam lugar em Roma.

Quem estava no Governo em Itália?
- Na altura, Andreotti já era primeiro-ministro e ajudou-nos muito. Dhlakama chegou sem documentos e os serviços de segurança deixaram-no entrar, e sair de Itália, sem qualquer documento. Ou seja, o Governo italiano deu cobertura à operação.
E pagou os custos?
- Não. Os custos pagámos nós. Gastámos uma verba significativa para nós, mas que não era nada comparada com os custos da guerra.
Muito dinheiro?
- Algumas centenas de milhões de liras. Em dólares, cerca de 300 mil.
O valor de um automóvel...
- O valor de um apartamento em Roma, com dois ou três quartos, em Trastevere.
E...
- Depois dessa visita de Dhlakama a Roma, dissemos ao Governo moçambicano que era chegada a altura de se encontrar secretamente com a Renamo, em Roma. Nós
garantíamos o sigilo. O Governo moçambicano aceitou, mas a Renamo mostrou algum receio. E só em Julho de 1990 é que houve o primeiro encontro.

Na altura, decorria em Itália o Mundial de futebol...

- É verdade. E nós pensámos, entre outras loucuras que fizemos, em levar as duas delegações a um desafio de futebol do Mundial, um jogo entre as selecções dos Camarões e de Itália,
em Roma. E tivemos um problema sério, porque um dos elementos da Renamo era parecido (uma semelhança longínqua, mas uma semelhança)
com... Pelé. Eles foram para o jogo rodeados pela segurança italiana, não tinham documentos e, de um momento para o outro, no estádio, centenas de pessoas começaram a gritar Pelé! Pelé! e a segurança entrou em pânico.
Foi um problema sério [D. Matteo, que confessa nunca ter entrado num estádio de futebol, ri-se às gargalhadas]. (a delegação da Renamo era composta por Raul Domingos e Vicente Ululu).

Continua...

SAVANA – 14.08.2009

Retirado do Moçambique para todos



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