Por ANA DIAS CORDEIRO
A Frelimo afastou Chissano para não arriscar perder a corrida presidencial de 2004, diz Joseph Hanlon. Mas desde a tomada de posse de Armando Guebuza na Presidência, pouco mudou em Moçambique.
No primeiro aniversário da tomada de posse de Armando Guebuza como Presidente da República, em Fevereiro de 2005, o sentimento em Moçambique é de que este ano foi um ano perdido. A reforma da justiça e o combate à corrupção - temas centrais na campanha de Guebuza - tardam em ser aplicados.
O semanário independente Savana, na sua edição de 10 de Fevereiro, adianta duas explicações para o actual "cepticismo" dos moçambicanos: ou a campanha de Guebuza foi "um discurso de caça ao voto para marcar uma clara ruptura com o passado", ou o actual bloqueio resulta das "lutas intestinas" dentro "da Frelimo" (Frente de Libertação de Moçambique).
O jornalista e académico americano da Open University de Londres, Joseph Hanlon, privilegia a segunda hipótese. Em entrevista ao PÚBLICO, este autor de várias obras sobre Moçambique, diz: "Está a ser muito difícil para Guebuza tomar o poder. A resistência no aparelho do Estado é muito severa.
Chissano esteve na Presidência 17 anos, durante os quais se criaram feudos. Muitas pessoas aproveitavam isso para a corrupção, para pagar favores, para conseguir contratos. Permanecem em lugares muito importantes do poder e resistem às mudanças." E conclui: "Guebuza não esperava a resistência da facção de Chissano que está a encontrar.
Mesmo dentro da Presidência, houve resistência à sua tomada de poder, as coisas estão bloqueadas. Este primeiro ano foi uma perda".
Recentemente em Lisboa onde apresentou no ISCTE uma conferência sobre Moçambique como "um Estado de partido predominante" (a Frelimo), Joseph Hanlon diz que o antigo partido único só venceu as eleições de Dezembro de 2004 porque afastou Chissano da corrida presidencial: "Com Chissano, a Frelimo teria perdido. A corrupção endémica associada aos anos em que esteve no poder provocou um grande descontentamento popular, mas também um descontentamento no partido."
Armando Guebuza encarnou a mudança entendida dentro da Frelimo como necessária para recuperar o partido do mau resultado das eleições de 1999.
Eleições de 1999 foram sinal de alarme
Nessas segundas eleições multipartidárias no país - nas quais vieram a confirmar-se irregularidades sem que nunca fosse avaliado o seu impacto - o candidato presidencial da Renamo, Afonso Dhlakama, ficou a poucos pontos de Joaquim Chissano.
"O facto de a Frelimo quase ter perdido nas eleições de 1999 foi um choque para muitos militantes, que tomaram consciência de que podiam ser derrotados. Foi o próprio partido que impediu Chissano de se candidatar de novo, apesar de a Constituição lho permitir."
Em 2004, esse descontentamento já não era tão palpável. "Penso que foi porque Guebuza se apresentou como alternativa credível", continua o autor de Peace Without Benefit (James Currey, Oxford). "Antes das eleições, Guebuza passou mais de um ano a percorrer o país e voltou com uma mensagem anti-corrupção e em prol do desenvolvimento", lembra Hanlon. "A sua campanha, no fundo, não era contra Dhlakama, mas contra Chissano. A oposição era dentro do partido. Guebuza era em grande medida uma oposição [a Chissano]. Este é um bom exemplo de que existe democracia num Estado de partido predominante. O próprio partido respondeu às exigências de mudança que vinham do eleitorado".
Um ano depois, contudo, esta é ainda "uma mudança sem rumo", titula o Savana. Contrastando com a "grande expectativa quanto a uma rápida mudança", e um discurso sobre o combate à corrupção e à pobreza absoluta, "bem recebido por uma população frustrada pela falta de alternativas", a governação de Guebuza "ainda não foi capaz de produzir nada de grande impacto", conclui este jornal.
Lentidão da justiça é "intencional"
O ex-Presidente da República Joaquim Chissano permanece nos órgãos-chave da Frelimo (de que foi líder até ao ano passado) onde "tem muitos aliados e representa uma facção muito forte". Joseph Hanlon vê uma ligação entre essa influência e o facto de o sistema judicial não funcionar: "É intencional. Há pessoas na elite da Frelimo que não querem ser acusadas de corrupção", diz.
Uma das provas do "controlo do sistema judicial" por parte de "Chissano e dos seus aliados" é, para este professor universitário, a falta de continuidade dada ao processo autónomo contra Nyimpine Chissano (filho do ex-Presidente). Este é considerado suspeito da autoria moral do assassínio do jornalista de investigação Carlos Cardoso desde que foi acusado por uma testemunha durante o primeiro julgamento em 2003, que apenas condenou os autores materiais do crime. O processo autónomo que visa Nyimpine permanece, há mais de dois anos, no gabinete do Procurador-Geral da República, Joaquim Madeira, reconduzido para o cargo antes de Chissano deixar a Presidência.
"Penso que há muitas pessoas em redor de Chissano que prefeririam não ver esse processo ir para a frente. É mais fácil fazer isso quando se tem controlo dos ministérios do Interior e da Justiça." E a luta de influência em torno desses ministérios é notória.
Não há sinais de que outras investigações sobre corrupção e o sistema bancário avancem: um dos exemplos é o absoluto silêncio sobre a existência ou não de uma investigação ao caso do ex-director da supervisão bancária do Banco Austral, Siba-Siba Macuácua, morto em Agosto de 2001, quando investigava crimes financeiros relacionados com a privatização da instituição.
As pessoas não vêem a Renamo como oposição credível
JOSEPH HANLON
Existe pressão sobre pessoas que assumem posições de predominância nos partidos da oposição, diz Hanlon. Moçambique é um Estado de partido predominante, diz Joseph Hanlon, jornalista e académico americano da Open University de Londres. Poderá ver nos próximos anos uma oposição emergir, mas apenas em votações locais e regionais.
PÚBLICO — O que significa um Estado de partido predominante?
JOSEPH HANLON—Significa que há uma oposição, que há eleições mas há um partido que toma sempre o poder. Ao mesmo tempo, a continuada predominância desse partido significa que os seus militantes estão em todas as posições-chave do Governo e na administração.
P- Isso põe em causa o multipartidarismo?
J- É um sistema multipartidário no sentido em que há sempre a possibilidade de outro partido ser eleito. A oposição controla cinco das 33 câmaras municipais no país. Voltará a haver eleições regionais em 2007 e eleições municipais em 2008 e a Renamo vai decerto conseguir algumas vitórias. E há uma forma de democracia porque todos os cinco anos, o partido dominante tem de se apresentar [a eleições nacionais] para ser eleito e responder à vontade dos eleitores.
P- A predominância da Frellmo limita a acção da oposição?
J- Um dos aspectos mais marcantes nas eleições de 2004 foi o colapso total do voto da oposição. A Renamo [Resistência Nacional Moçambicana] praticamente desceu de dois milhões para um milhão de votos. Ficou claro que as pessoas já não a viam como oposição credível ou Dhlakama como um potencial Presidente. A campanha foi muito negativa, nunca explicou o que tencionava fazer. Mas também havia um terceiro partido, de Raul Domingos, visto como uma potencial terceira força a surgir, que teve muito poucos votos. Juntando o fracasso destas duas forças, concluímos que as pessoas não sentiram a necessidade de votar na oposição.
P- Em certas províncias moçambicanas há Intimidação de membros da oposição.
J- Eu não diria intimidação, mas discriminação. Se houver necessidade de obter qualquer coisa do Governo, é uma grande vantagem ser-se membro da Frelimo. Isso é claro. Existe discriminação contra as pessoas da Renamo. E existe alguma pressão sobre pessoas que assumem posições de predominância nos partidos da oposição com ameaças, por exemplo, de perderem os empregos. Mas existe oposição nos média, e no terreno há pessoas que contestam e se assumem como militantes da oposição.
P- Como vê o futuro da Renamo?
J- A Renamo não será oposição credível enquanto Dhlakama for líder.
Ele expulsou ou marginalizou qualquer pessoa com capacidade de organização das estruturas partidárias. Isso, em parte, explica o colapso de 2004. E também o facto de não ter conseguido mobilizar o voto. É muito semelhante ao que acontece na África do Sul, onde o ANC é visto como o partido natural do Governo. Dentro de dez a vinte anos, uma oposição surgirá a nível local, em Moçambique, mas não será a Renamo.
PÚBLICO - 13.02.2006
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